No Texas, um inimigo inesperado recebe grande atenção. Em um anúncio de TV destinado ao vice-governador, transmitido no ano passado, Dan Patrick, que conquistou o cargo representando o Partido Republicano, olhou com firmeza para a câmera e alertou a respeito de um grave perigo.
“A verdade é que os democratas querem transformar o Texas na Califórnia”, afirmou. “Bem, eu não vou deixar isso acontecer. E vocês?”. O governador republicano do Texas, Greg Abbott, também expressa a preocupação.
Ele prevê que regulações excessivas podem “transformar o sonho texano no pesadelo californiano”. “Não transforme meu Texas em uma Califórnia” virou um grito de união para os republicanos do Estado. Há até adesivos de carros com a expressão para comprar.
Algum entrevero competitivo entre ambos é inevitável. Califórnia, com 40 milhões de habitantes, e Texas, com 29 milhões, são os Estados mais populosos dos EUA, lar de mais de um quinto dos americanos. São também as maiores economias. Se fossem países, seriam as 5.ª e a 10.ª maiores economias do mundo, com PIBs de aproximadamente US$ 3 trilhões e US$ 1,8 trilhão, respectivamente.
O Texas é o maior exportador do país, e a Califórnia está na segunda posição. Nos últimos 20 anos, cerca de um terço dos empregos nos EUA foi gerado apenas nesses dois Estados. Combinados, eles constituem aproximadamente um quarto do PIB americano.
Os dois educam cerca de um quarto das crianças dos EUA. Portanto, seus investimentos e abordagens em educação pública afetam diretamente a competitividade nacional. As economias de ambos também estão crescendo.
Entre 2010 e 2018, duas das três áreas com cobertura de metrô que mais cresceram nos EUA se localizaram no Texas: as regiões metropolitanas de Dallas e de Houston ganharam mais de 1 milhão de habitantes cada. O Estado possui uma indústria de petróleo e gás natural robusta e foi bem-sucedido em diversificar sua economia.
Boom tecnológico
A Califórnia desfruta dos diversos desdobramentos do boom tecnológico, possui um mercado de ações em crescimento e abriga algumas das melhores universidades dos EUA. Mas ambos os Estados são igualmente importantes também por causa das visões e dos modelos opostos de governo que defendem.
De fato, sua rivalidade é com frequência expressão dessas diferenças. A Califórnia é guardiã do padrão de experimentações progressistas, pioneira e líder em políticas para lidar com mudanças climáticas, direitos dos gays, descriminalização de drogas, licença-família remunerada, imigração inclusiva e além.
Quando Donald Trump assumiu a presidência, a Califórnia se tornou um Estado de resistência, processando na Justiça o governo federal em cerca de 50 ações. A Califórnia é o maior Estado democrata do país, no qual a fatia de eleitores republicanos registrados atinge uma baixa histórica e os democratas controlam todos os três níveis de governo.
O modelo californiano pode ser resumido como impostos altos, serviços de boa qualidade e regulações profusas. A Califórnia projeta um papel forte para o governo e se vale pesadamente de seus afluentes moradores para financiar uma rede de seguridade social.
O Texas, em contraste, tem sido conservador socialmente há décadas. Apesar de os democratas terem avançado na legislatura estadual, em 2018, nenhum é eleito para cargos estaduais há mais de 25 anos.
O modelo texano é de impostos baixos, serviços simples e regulações tênues. “Governe sabiamente – e o menos possível”, foi como Sam Houston, o primeiro presidente da República do Texas, descreveu, em 1836, a filosofia de baixa intervenção do Estado.
Séria a respeito de evitar excessos de governo, a legislatura se reúne apenas a cada dois anos. Em 2017, o Texas se colocou na 49.ª posição, entre os 50 estados americanos em investimento per capita, gastando cerca de US$ 3.925 por cidadão, 52% menos que a média nacional e 68% menos do que a Califórnia.
A cara dos EUA
Demograficamente, ambos os Estados já vivem o futuro dos EUA. Suas populações não brancas começaram a superar as brancas há muito tempo. A Califórnia se tornou um Estado “majoritariamente-minoritário” em 2000. O Texas, em 2005. Hoje, ambos são aproximadamente 40% hispânicos, mais do que o dobro da média nacional.
Com populações que crescem rapidamente, jovens e etnicamente diversas, a cara da Califórnia e do Texas será a cara do país em 2050. De acordo com Stephen Klineberg, professor da Universidade Rice, em Houston, “Estados como Califórnia e Texas são onde o futuro dos EUA será engendrado”.
Ambos os Estados têm vulnerabilidades. “A questão crítica para a Califórnia é o quanto um Estado consegue assumir, e para o Texas é quão pouco um governo pode continuar assumindo”, afirma Ken Miller, da Faculdade Claremont McKenna.
Suas diferenças podem ser percebidas de maneiras tanto dramáticas quanto sutis. Para financiar suas operações, a Califórnia se vale de um dos impostos sobre renda mais altos nos EUA. Em contraste, a Constituição do Texas proíbe taxação estadual sobre a renda.
Os sindicatos são uma força poderosa na política e nos locais de trabalho californianos, e o Texas é conhecido como Estado do “direito ao trabalho”, o que significa que trabalhadores não precisam pertencer a nenhum sindicato – portanto, essa infraestrutura é fraca.
A Califórnia, provavelmente, possui as regulações ambientais mais fortes do país, enquanto o Texas protege sua indústria de petróleo e gás natural e considera a natureza algo a ser subjugado. O Estado coloca restrições mínimas sobre manter animais exóticos como bichos de estimação e, por isso, acredita-se que haja mais tigres em cativeiro no Texas do que tigres selvagens na Índia.
Seus líderes encarnam as divergentes filosofias de ambos os Estados. O governador da Califórnia, Gavin Newsom, que assumiu o cargo em janeiro, foi prefeito de São Francisco e ficou conhecido por legalizar o casamento gay na cidade, em 2004, e impulsionar um movimento nacional.
O governador do Texas, Greg Abbott, é um conservador ferrenho, que ocupou anteriormente o cargo de procurador-geral e se orgulha de ter aberto 31 processos contra o governo de Barack Obama em razão de suas políticas, incluindo regulações de assistência de saúde e meio ambiente.
Este ano, Newsom ordenou uma moratória para a pena de morte ao mesmo tempo em que a legislatura do Texas debatia se o Estado deveria instalar ar-condicionado em prisões durante os verões escaldantes – um conforto caro aos olhos de alguns.
Pena de morte
Desde 1976, o Texas executou mais detentos do que qualquer outro Estado americano, cerca de cinco vezes mais do que o segundo colocado, a Virgínia.
Suas naturezas independentes podem ser explicadas em parte pela história. De maneira reveladora, os texanos celebram 1836 como seu ano de fundação, quando o Estado tornou-se independente do México após uma insurreição armada, e não 1845, quando o Texas virou oficialmente um Estado americano.
Na época, o escravagista Texas recebeu boas-vindas ambíguas no país, que se preocupava a respeito do equilíbrio entre Estados que permitiam escravidão e os que não permitiam.
A Califórnia, que também tinha pertencido ao México antes de se juntar aos EUA, em 1850, nunca permitiu a escravidão, o que significou em uma recepção mais calorosa. Essa experiência forjou suas atitudes políticas. A distância da capital Washington alimentou a vocação para o experimento.
Ambos os Estados costumavam apoiar outro partido. Os republicanos venceram na Califórnia em quase todas as eleições presidenciais, entre 1952 e 1988, e Ronald Reagan governou o Estado antes de virar presidente. Mas a política do Estado guinou em resposta à crescente população de imigrantes – incomodados com a retórica e políticas intolerantes dos republicanos.
O Texas era fortemente democrata e produziu Lyndon Johnson, que se tornou presidente após John Kennedy ser assassinado em Dallas. O legado de Johnson inclui o lançamento de muitos dos programas dos quais políticos texanos escarnecem, incluindo a guerra contra a pobreza e assistência médica financiada pelo governo federal para pobres e idosos. Seu comprometimento com serviços sociais e direitos civis ajudou a entregar o Estado e o Sul para os republicanos.
Americanos e imigrantes viajam há décadas para ambos os Estados para construir um futuro livre de tradições. O “Triângulo do Texas”, formado pelas quatro grandes cidades de Austin, Dallas, Houston e San Antonio, abriga três quartos da população do Estado, é responsável por três quartos de seu crescimento populacional desde 2010 e produz 82% de seu PIB.
A ameaça de o Texas virar Califórnia, conforme teme a liderança do Estado, é exagerada. Contudo, levanta a dúvida a respeito do polo para o qual os EUA penderão – a esquerda progressista representada pela Califórnia ou a direita representada pelo Texas.
“O fato de os EUA serem capazes de conter forças assertivas e contrárias, tais como Texas e Califórnia, é prova do nosso dinamismo político, mas cada vez mais eu sinto que os EUA estão sendo compelidos a escolher entre os modelos que esses Estados encarnam”, escreveu Lawrence Wright em seu livro God Save Texas. “Sob o governo de Trump, o Texas é claramente o arquétipo vencedor.”
Isso pode não se perpetuar. O Texas já está mudando. “Forasteiros acham que Austin é uma bolha democrata e o restante do Texas é árido”, afirma Ann Beeson, do Centro para Prioridades de Política Pública, um instituto de análise de esquerda. “Escapa enormemente às pessoas quão gigantescas, progressistas e diversas nossas cidades são.”
Tampouco deve-se subestimar a Califórnia, que frequentemente cria ventos políticos que varrem o país. O Estado testemunhou reações contra os impostos, nos anos 70, e contra a imigração, nos 90, e ambos se espalharam nacionalmente. E legalizou o aborto seis anos antes de Roe versus Wade, a histórica decisão da Suprema Corte, em uma legislação sancionada pelo então governador, Reagan.
“Muito do que nós aspiramos enquanto país reside na Califórnia”, afirma o ex-empresário Austin Beutner, hoje superintendente do Distrito Escolar Unificado de Los Angeles. “As leis viajam do Leste para o Oeste. Os valores, do Oeste para o Leste dos EUA.”
Grande parte do futuro dos EUA dependerá do sucesso da Califórnia e do Texas. “Existem 50 laboratórios (Estados) nos EUA, e nós podemos assistir os experimentos da Califórnia e do Texas”, afirma o bem-sucedido empresário texano Ross Perot Jr. “É o estilo americano.”/ TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL