The Economist: Chile, que já foi comparado à Finlândia, enfrenta crise 


Os acontecimentos mais recentes mostram que o Chile, na verdade, se parece mais com seus vizinhos disfuncionais da América Latina

Por The Economist

“Queremos o fim do capitalismo e do neoliberalismo”, afirma Catalina (nome fictício), uma manifestante de 37 anos, cercada de um grupo de homens encapuzados com porretes nas mãos. Ela é uma das muitas centenas de pessoas que, desde que o Chile aliviou restrições relativas à covid-19, têm tomado as ruas para protestar contra o governo. 

Alguns manifestantes saquearam supermercados e farmácias. Outros, usando balaclavas negras, arremessaram coquetéis molotov contra os “pacos”, os policiais. Por uma semana, a principal via da capital Santiago esteve repleta de pilhas de lixo incendiado. A área do centro da cidade foi coberta de pichações. “Morte ao governo, viva a anarquia”, afirma uma delas.

O Chile costumava ser uma das histórias de sucesso da América Latina. A renda per capita quase triplicou entre 1990 e 2015; passando a ser atualmente a mais alta da região. O número de estudantes universitários quintuplicou no mesmo período. A desigualdade de renda caiu e agora está abaixo da média da região (apesar de muito maior do que a dos membros da OCDE, o clube dos países mais ricos). 

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Protesto contra o governo de Sebastián Piñera em Santiago Foto: REUTERS/Ivan Alvarado

Ainda assim, desde que enormes protestos ocorreram, em outubro de 2019, nos quais pelo menos 30 pessoas morreram e estações de metrô e igrejas foram depredadas, a violência ficou muito mais comum. Nas semanas recentes, três pessoas morreram durante protestos, e centenas de manifestantes foram presos.

Depois dos protestos de 2019, o governo concordou em criar uma Assembleia Constituinte – com a ideia de que, ao eleger um organismo representativo dos chilenos, para escrever uma Constituição que substitua a Carta redigida na ditadura de Augusto Pinochet, o descontentamento seria canalizado para respostas melhores do que o populismo e a anarquia. 

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Mas, dois anos depois desse experimento democrático ser desencadeado (com participação de apenas 43% do eleitorado na votação que elegeu os 155 membros da Constituinte, em maio), o Chile parece em pior situação do que em qualquer outro momento desde a volta da democracia ao país, três décadas atrás.

Eleição

Para começar, políticos extremistas estão ganhando terreno. Em novembro, serão realizadas eleições gerais das quais o presidente de centro-direita, Sebastián Piñera, não pode participar (separadamente, ele também está sofrendo um processo de impeachment). Os dois políticos que lideram as pesquisas são Gabriel Boric, de 35 anos, aliado ao Partido Comunista, e José Antonio Kast, candidato de extrema direita que já afirmou que, se Pinochet estivesse vivo, “votaria em mim”. 

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Kast quer cavar “uma vala” ao longo da fronteira norte do Chile para impedir que imigrantes entrem ilegalmente no país. A equipe de Boric argumenta que suas políticas não são mais extremas do que as politicas de, digamos, Bernie Sanders, que buscou se candidatar à presidência dos EUA. Mesmo assim, ele e o senador americano parecem ser vistos como esquerdistas radicais.

Outro entrave é que muitos dos problemas que fizeram as pessoas saírem às ruas dois anos atrás ainda não desapareceram. No início dos anos 2000, durante o boom do preço das commodities, uma nova classe média emergiu, mas a desigualdade continuou acentuada. 

De acordo com um estudo publicado em 2019 pela revista científica médica The Lancet, a expectativa de vida de uma mulher nascida no bairro mais pobre de Santiago é quase 18 anos mais baixa do que a de uma mulher nascida em um bairro rico da capital, o que representa um lapso muito maior do que o de outras cinco cidades latino-americanas pesquisadas, incluindo Cidade do México e Buenos Aires (apesar de a expectativa de vida no Chile, em geral, continuar mais alta). 

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As mensalidades das universidades são caras, mas as formações são com frequência de qualidade inferior. Mais de 80% dos aposentados recebem pagamentos abaixo do salário mínimo, de 337 mil pesos (US$ 418) ao mês. 

Enormes manifestações ocorreram em 2006, 2011 e 2016 pedindo reformas nessas áreas, mas muitos têm a sensação de que quase nada mudou. Quem consegue pagar busca instituições privadas de ensino e assistência médica. Este ano, o cientista político Cristóbal Rovira Kaltwasser publicou uma pesquisa com 137 gerentes e diretores das 500 maiores empresas do país. Pouco menos da metade afirmou que seus pais foram educados em escolas particulares, mas 96% afirmaram que seus filhos estudaram em instituições privadas.

Ocupantes do poder com frequência parecem indiferentes ao abismo entre ricos e pobres. Após aumentar o preço da passagem de metrô em horários de pico, em outubro de 2019, o ministro da Economia, Juan Andrés Fontaine, afirmou que os chilenos poderiam “acordar mais cedo” se quisessem evitar as tarifas mais altas. Poucos chilenos dão grande valor ao sistema político do país. A confiança nas instituições é baixa. A participação eleitoral é excepcionalmente diminuta.

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“A Constituição da era Pinochet, adotada em 1980, foi projetada para conceder atribuições desproporcionais para a direita”, argumenta Claudia Heiss, da Universidade do Chile. Assentos no Senado eram reservados para os militares (o que continuou até 2005), enquanto mecanismos exigentes foram estabelecidos para mudar leis que poderiam exigir do Estado maior responsabilidade na provisão de certos serviços, como educação. 

Descrença

Apesar do fato de uma maioria de presidentes de centro-esquerda ter ocupado o poder nos anos recentes, eles tiveram de negociar com a oposição. “Isso fez a política parecer um cartel”, afirmou Steven Levitksy, da Universidade Harvard.

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Inicialmente, parecia que redigir uma nova Constituição poderia ajudar a trazer mais legitimidade para um sistema desacreditado. No ano passado, o comparecimento dos eleitores ao referendo que lhes perguntou se uma nova Constituição deveria ou não ser redigida foi de 51%, entre os maiores desde que o voto deixou de ser obrigatório, em 2012 (78% responderam que sim). 

A participação de jovens e pobres foi a que mais aumentou. Apesar da confiança dos chilenos na Constituinte ter caído recentemente, esse índice é ainda muito maior do que em relação ao Congresso e os partidos políticos. O cientista político Juan Pablo Luna, da Universidade Católica do Chile, afirma que a Constituinte levou à “reivindicação da política” por parte dos jovens.

Mas os liberais estão cada vez mais alarmados pela direção que a Constituinte, repleta de novatos na política, está tomando. No início de outubro, a assembleia concluiu a aprovação de suas regras de procedimento. Uma delas impõe punições a “negações ou omissões” a respeito de violações de direitos humanos cometidas tanto pela ditadura quanto pelo governo, no contexto do levante de 2019. A inespecificidade da regra é preocupante, segundo o constitucionalista Sergio Verdugo. A preocupação dele é que a abordagem indiferente em relação a liberdade de expressão esteja refletida no texto final da Carta.

Prejuízos

Similarmente, um grupo liderado pelo Partido Comunista está tentando contornar as regras que determinam que todos os artigos da Constituição devem ser aprovados por maioria de dois terços da assembleia. De fato, os esquerdistas detêm mais influência sobre a Constituinte. “Esta será a primeira Constituição lacradora do mundo”, disse o cientista político Robert Funk, da Universidade do Chile.

Tudo isso vai afetar a economia, que foi prejudicada por um longo lockdown. Regras ambientais mais rígidas – que quase certamente serão incluídas na nova Constituição – poderão inibir as exportações de cobre, que sustenta a economia do país. Os senadores estão prestes a aprovar um projeto de lei que permitirá aos chilenos sacar 10% do valor de suas aposentadorias. Seria a quarta vez que uma medida de emergência desse tipo é aprovada desde que a covid-19 começou a espremer os orçamentos familiares. Isso deverá elevar a inflação anual, que, em uma alta recorde nos sete anos recentes, registrou 5,3% no mês passado.

Enquanto isso, a violência tende a continuar. Em 8 de outubro, uma deputada constituinte esquerdista foi perseguida por uma turba enfurecida em Santiago, que a atacou arremessando pedras e gritando que ela tinha “se vendido”, por considerar trabalhar conjuntamente com colegas constituintes de centro. Os mais ambiciosos políticos do Chile comparavam seu país frequentemente com a Finlândia. Mas os eventos das últimas semanas sugerem que o Chile, na verdade, é mais parecido com seus vizinhos disfuncionais./TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

“Queremos o fim do capitalismo e do neoliberalismo”, afirma Catalina (nome fictício), uma manifestante de 37 anos, cercada de um grupo de homens encapuzados com porretes nas mãos. Ela é uma das muitas centenas de pessoas que, desde que o Chile aliviou restrições relativas à covid-19, têm tomado as ruas para protestar contra o governo. 

Alguns manifestantes saquearam supermercados e farmácias. Outros, usando balaclavas negras, arremessaram coquetéis molotov contra os “pacos”, os policiais. Por uma semana, a principal via da capital Santiago esteve repleta de pilhas de lixo incendiado. A área do centro da cidade foi coberta de pichações. “Morte ao governo, viva a anarquia”, afirma uma delas.

O Chile costumava ser uma das histórias de sucesso da América Latina. A renda per capita quase triplicou entre 1990 e 2015; passando a ser atualmente a mais alta da região. O número de estudantes universitários quintuplicou no mesmo período. A desigualdade de renda caiu e agora está abaixo da média da região (apesar de muito maior do que a dos membros da OCDE, o clube dos países mais ricos). 

Protesto contra o governo de Sebastián Piñera em Santiago Foto: REUTERS/Ivan Alvarado

Ainda assim, desde que enormes protestos ocorreram, em outubro de 2019, nos quais pelo menos 30 pessoas morreram e estações de metrô e igrejas foram depredadas, a violência ficou muito mais comum. Nas semanas recentes, três pessoas morreram durante protestos, e centenas de manifestantes foram presos.

Depois dos protestos de 2019, o governo concordou em criar uma Assembleia Constituinte – com a ideia de que, ao eleger um organismo representativo dos chilenos, para escrever uma Constituição que substitua a Carta redigida na ditadura de Augusto Pinochet, o descontentamento seria canalizado para respostas melhores do que o populismo e a anarquia. 

Mas, dois anos depois desse experimento democrático ser desencadeado (com participação de apenas 43% do eleitorado na votação que elegeu os 155 membros da Constituinte, em maio), o Chile parece em pior situação do que em qualquer outro momento desde a volta da democracia ao país, três décadas atrás.

Eleição

Para começar, políticos extremistas estão ganhando terreno. Em novembro, serão realizadas eleições gerais das quais o presidente de centro-direita, Sebastián Piñera, não pode participar (separadamente, ele também está sofrendo um processo de impeachment). Os dois políticos que lideram as pesquisas são Gabriel Boric, de 35 anos, aliado ao Partido Comunista, e José Antonio Kast, candidato de extrema direita que já afirmou que, se Pinochet estivesse vivo, “votaria em mim”. 

Kast quer cavar “uma vala” ao longo da fronteira norte do Chile para impedir que imigrantes entrem ilegalmente no país. A equipe de Boric argumenta que suas políticas não são mais extremas do que as politicas de, digamos, Bernie Sanders, que buscou se candidatar à presidência dos EUA. Mesmo assim, ele e o senador americano parecem ser vistos como esquerdistas radicais.

Outro entrave é que muitos dos problemas que fizeram as pessoas saírem às ruas dois anos atrás ainda não desapareceram. No início dos anos 2000, durante o boom do preço das commodities, uma nova classe média emergiu, mas a desigualdade continuou acentuada. 

De acordo com um estudo publicado em 2019 pela revista científica médica The Lancet, a expectativa de vida de uma mulher nascida no bairro mais pobre de Santiago é quase 18 anos mais baixa do que a de uma mulher nascida em um bairro rico da capital, o que representa um lapso muito maior do que o de outras cinco cidades latino-americanas pesquisadas, incluindo Cidade do México e Buenos Aires (apesar de a expectativa de vida no Chile, em geral, continuar mais alta). 

As mensalidades das universidades são caras, mas as formações são com frequência de qualidade inferior. Mais de 80% dos aposentados recebem pagamentos abaixo do salário mínimo, de 337 mil pesos (US$ 418) ao mês. 

Enormes manifestações ocorreram em 2006, 2011 e 2016 pedindo reformas nessas áreas, mas muitos têm a sensação de que quase nada mudou. Quem consegue pagar busca instituições privadas de ensino e assistência médica. Este ano, o cientista político Cristóbal Rovira Kaltwasser publicou uma pesquisa com 137 gerentes e diretores das 500 maiores empresas do país. Pouco menos da metade afirmou que seus pais foram educados em escolas particulares, mas 96% afirmaram que seus filhos estudaram em instituições privadas.

Ocupantes do poder com frequência parecem indiferentes ao abismo entre ricos e pobres. Após aumentar o preço da passagem de metrô em horários de pico, em outubro de 2019, o ministro da Economia, Juan Andrés Fontaine, afirmou que os chilenos poderiam “acordar mais cedo” se quisessem evitar as tarifas mais altas. Poucos chilenos dão grande valor ao sistema político do país. A confiança nas instituições é baixa. A participação eleitoral é excepcionalmente diminuta.

“A Constituição da era Pinochet, adotada em 1980, foi projetada para conceder atribuições desproporcionais para a direita”, argumenta Claudia Heiss, da Universidade do Chile. Assentos no Senado eram reservados para os militares (o que continuou até 2005), enquanto mecanismos exigentes foram estabelecidos para mudar leis que poderiam exigir do Estado maior responsabilidade na provisão de certos serviços, como educação. 

Descrença

Apesar do fato de uma maioria de presidentes de centro-esquerda ter ocupado o poder nos anos recentes, eles tiveram de negociar com a oposição. “Isso fez a política parecer um cartel”, afirmou Steven Levitksy, da Universidade Harvard.

Inicialmente, parecia que redigir uma nova Constituição poderia ajudar a trazer mais legitimidade para um sistema desacreditado. No ano passado, o comparecimento dos eleitores ao referendo que lhes perguntou se uma nova Constituição deveria ou não ser redigida foi de 51%, entre os maiores desde que o voto deixou de ser obrigatório, em 2012 (78% responderam que sim). 

A participação de jovens e pobres foi a que mais aumentou. Apesar da confiança dos chilenos na Constituinte ter caído recentemente, esse índice é ainda muito maior do que em relação ao Congresso e os partidos políticos. O cientista político Juan Pablo Luna, da Universidade Católica do Chile, afirma que a Constituinte levou à “reivindicação da política” por parte dos jovens.

Mas os liberais estão cada vez mais alarmados pela direção que a Constituinte, repleta de novatos na política, está tomando. No início de outubro, a assembleia concluiu a aprovação de suas regras de procedimento. Uma delas impõe punições a “negações ou omissões” a respeito de violações de direitos humanos cometidas tanto pela ditadura quanto pelo governo, no contexto do levante de 2019. A inespecificidade da regra é preocupante, segundo o constitucionalista Sergio Verdugo. A preocupação dele é que a abordagem indiferente em relação a liberdade de expressão esteja refletida no texto final da Carta.

Prejuízos

Similarmente, um grupo liderado pelo Partido Comunista está tentando contornar as regras que determinam que todos os artigos da Constituição devem ser aprovados por maioria de dois terços da assembleia. De fato, os esquerdistas detêm mais influência sobre a Constituinte. “Esta será a primeira Constituição lacradora do mundo”, disse o cientista político Robert Funk, da Universidade do Chile.

Tudo isso vai afetar a economia, que foi prejudicada por um longo lockdown. Regras ambientais mais rígidas – que quase certamente serão incluídas na nova Constituição – poderão inibir as exportações de cobre, que sustenta a economia do país. Os senadores estão prestes a aprovar um projeto de lei que permitirá aos chilenos sacar 10% do valor de suas aposentadorias. Seria a quarta vez que uma medida de emergência desse tipo é aprovada desde que a covid-19 começou a espremer os orçamentos familiares. Isso deverá elevar a inflação anual, que, em uma alta recorde nos sete anos recentes, registrou 5,3% no mês passado.

Enquanto isso, a violência tende a continuar. Em 8 de outubro, uma deputada constituinte esquerdista foi perseguida por uma turba enfurecida em Santiago, que a atacou arremessando pedras e gritando que ela tinha “se vendido”, por considerar trabalhar conjuntamente com colegas constituintes de centro. Os mais ambiciosos políticos do Chile comparavam seu país frequentemente com a Finlândia. Mas os eventos das últimas semanas sugerem que o Chile, na verdade, é mais parecido com seus vizinhos disfuncionais./TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

“Queremos o fim do capitalismo e do neoliberalismo”, afirma Catalina (nome fictício), uma manifestante de 37 anos, cercada de um grupo de homens encapuzados com porretes nas mãos. Ela é uma das muitas centenas de pessoas que, desde que o Chile aliviou restrições relativas à covid-19, têm tomado as ruas para protestar contra o governo. 

Alguns manifestantes saquearam supermercados e farmácias. Outros, usando balaclavas negras, arremessaram coquetéis molotov contra os “pacos”, os policiais. Por uma semana, a principal via da capital Santiago esteve repleta de pilhas de lixo incendiado. A área do centro da cidade foi coberta de pichações. “Morte ao governo, viva a anarquia”, afirma uma delas.

O Chile costumava ser uma das histórias de sucesso da América Latina. A renda per capita quase triplicou entre 1990 e 2015; passando a ser atualmente a mais alta da região. O número de estudantes universitários quintuplicou no mesmo período. A desigualdade de renda caiu e agora está abaixo da média da região (apesar de muito maior do que a dos membros da OCDE, o clube dos países mais ricos). 

Protesto contra o governo de Sebastián Piñera em Santiago Foto: REUTERS/Ivan Alvarado

Ainda assim, desde que enormes protestos ocorreram, em outubro de 2019, nos quais pelo menos 30 pessoas morreram e estações de metrô e igrejas foram depredadas, a violência ficou muito mais comum. Nas semanas recentes, três pessoas morreram durante protestos, e centenas de manifestantes foram presos.

Depois dos protestos de 2019, o governo concordou em criar uma Assembleia Constituinte – com a ideia de que, ao eleger um organismo representativo dos chilenos, para escrever uma Constituição que substitua a Carta redigida na ditadura de Augusto Pinochet, o descontentamento seria canalizado para respostas melhores do que o populismo e a anarquia. 

Mas, dois anos depois desse experimento democrático ser desencadeado (com participação de apenas 43% do eleitorado na votação que elegeu os 155 membros da Constituinte, em maio), o Chile parece em pior situação do que em qualquer outro momento desde a volta da democracia ao país, três décadas atrás.

Eleição

Para começar, políticos extremistas estão ganhando terreno. Em novembro, serão realizadas eleições gerais das quais o presidente de centro-direita, Sebastián Piñera, não pode participar (separadamente, ele também está sofrendo um processo de impeachment). Os dois políticos que lideram as pesquisas são Gabriel Boric, de 35 anos, aliado ao Partido Comunista, e José Antonio Kast, candidato de extrema direita que já afirmou que, se Pinochet estivesse vivo, “votaria em mim”. 

Kast quer cavar “uma vala” ao longo da fronteira norte do Chile para impedir que imigrantes entrem ilegalmente no país. A equipe de Boric argumenta que suas políticas não são mais extremas do que as politicas de, digamos, Bernie Sanders, que buscou se candidatar à presidência dos EUA. Mesmo assim, ele e o senador americano parecem ser vistos como esquerdistas radicais.

Outro entrave é que muitos dos problemas que fizeram as pessoas saírem às ruas dois anos atrás ainda não desapareceram. No início dos anos 2000, durante o boom do preço das commodities, uma nova classe média emergiu, mas a desigualdade continuou acentuada. 

De acordo com um estudo publicado em 2019 pela revista científica médica The Lancet, a expectativa de vida de uma mulher nascida no bairro mais pobre de Santiago é quase 18 anos mais baixa do que a de uma mulher nascida em um bairro rico da capital, o que representa um lapso muito maior do que o de outras cinco cidades latino-americanas pesquisadas, incluindo Cidade do México e Buenos Aires (apesar de a expectativa de vida no Chile, em geral, continuar mais alta). 

As mensalidades das universidades são caras, mas as formações são com frequência de qualidade inferior. Mais de 80% dos aposentados recebem pagamentos abaixo do salário mínimo, de 337 mil pesos (US$ 418) ao mês. 

Enormes manifestações ocorreram em 2006, 2011 e 2016 pedindo reformas nessas áreas, mas muitos têm a sensação de que quase nada mudou. Quem consegue pagar busca instituições privadas de ensino e assistência médica. Este ano, o cientista político Cristóbal Rovira Kaltwasser publicou uma pesquisa com 137 gerentes e diretores das 500 maiores empresas do país. Pouco menos da metade afirmou que seus pais foram educados em escolas particulares, mas 96% afirmaram que seus filhos estudaram em instituições privadas.

Ocupantes do poder com frequência parecem indiferentes ao abismo entre ricos e pobres. Após aumentar o preço da passagem de metrô em horários de pico, em outubro de 2019, o ministro da Economia, Juan Andrés Fontaine, afirmou que os chilenos poderiam “acordar mais cedo” se quisessem evitar as tarifas mais altas. Poucos chilenos dão grande valor ao sistema político do país. A confiança nas instituições é baixa. A participação eleitoral é excepcionalmente diminuta.

“A Constituição da era Pinochet, adotada em 1980, foi projetada para conceder atribuições desproporcionais para a direita”, argumenta Claudia Heiss, da Universidade do Chile. Assentos no Senado eram reservados para os militares (o que continuou até 2005), enquanto mecanismos exigentes foram estabelecidos para mudar leis que poderiam exigir do Estado maior responsabilidade na provisão de certos serviços, como educação. 

Descrença

Apesar do fato de uma maioria de presidentes de centro-esquerda ter ocupado o poder nos anos recentes, eles tiveram de negociar com a oposição. “Isso fez a política parecer um cartel”, afirmou Steven Levitksy, da Universidade Harvard.

Inicialmente, parecia que redigir uma nova Constituição poderia ajudar a trazer mais legitimidade para um sistema desacreditado. No ano passado, o comparecimento dos eleitores ao referendo que lhes perguntou se uma nova Constituição deveria ou não ser redigida foi de 51%, entre os maiores desde que o voto deixou de ser obrigatório, em 2012 (78% responderam que sim). 

A participação de jovens e pobres foi a que mais aumentou. Apesar da confiança dos chilenos na Constituinte ter caído recentemente, esse índice é ainda muito maior do que em relação ao Congresso e os partidos políticos. O cientista político Juan Pablo Luna, da Universidade Católica do Chile, afirma que a Constituinte levou à “reivindicação da política” por parte dos jovens.

Mas os liberais estão cada vez mais alarmados pela direção que a Constituinte, repleta de novatos na política, está tomando. No início de outubro, a assembleia concluiu a aprovação de suas regras de procedimento. Uma delas impõe punições a “negações ou omissões” a respeito de violações de direitos humanos cometidas tanto pela ditadura quanto pelo governo, no contexto do levante de 2019. A inespecificidade da regra é preocupante, segundo o constitucionalista Sergio Verdugo. A preocupação dele é que a abordagem indiferente em relação a liberdade de expressão esteja refletida no texto final da Carta.

Prejuízos

Similarmente, um grupo liderado pelo Partido Comunista está tentando contornar as regras que determinam que todos os artigos da Constituição devem ser aprovados por maioria de dois terços da assembleia. De fato, os esquerdistas detêm mais influência sobre a Constituinte. “Esta será a primeira Constituição lacradora do mundo”, disse o cientista político Robert Funk, da Universidade do Chile.

Tudo isso vai afetar a economia, que foi prejudicada por um longo lockdown. Regras ambientais mais rígidas – que quase certamente serão incluídas na nova Constituição – poderão inibir as exportações de cobre, que sustenta a economia do país. Os senadores estão prestes a aprovar um projeto de lei que permitirá aos chilenos sacar 10% do valor de suas aposentadorias. Seria a quarta vez que uma medida de emergência desse tipo é aprovada desde que a covid-19 começou a espremer os orçamentos familiares. Isso deverá elevar a inflação anual, que, em uma alta recorde nos sete anos recentes, registrou 5,3% no mês passado.

Enquanto isso, a violência tende a continuar. Em 8 de outubro, uma deputada constituinte esquerdista foi perseguida por uma turba enfurecida em Santiago, que a atacou arremessando pedras e gritando que ela tinha “se vendido”, por considerar trabalhar conjuntamente com colegas constituintes de centro. Os mais ambiciosos políticos do Chile comparavam seu país frequentemente com a Finlândia. Mas os eventos das últimas semanas sugerem que o Chile, na verdade, é mais parecido com seus vizinhos disfuncionais./TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

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