Erdogan finalmente deixará o poder? Eleição na Turquia terá impacto em todo o mundo


Derrota de Erdogan não seria apenas o fim de uma era, ela iniciaria um enorme rebuliço na Turquia, com ruidosas reverberações na região e em todo o mundo

Por The Economist
Atualização:

Ele foi preso e impedido de assumir cargos públicos, mas conseguiu reverter o banimento e veio a dominar a política turca. Venceu cinco eleições parlamentares, duas eleições presidenciais e três referendos. Até enfrentou e impediu um golpe militar. Mas em 14 de maio, o poder de Recep Tayyip Erdogan sobre a Turquia poderá lhe escapar. As pesquisas sugerem que a oposição unida poderia retirar o controle do Parlamento do partido Justiça e Desenvolvimento (AK), de Erdogan, e seus aliados. Além disso, o próprio presidente parece estar sendo superado na disputa que ocorre no mesmo dia.

A derrota de Erdogan não seria apenas o fim de uma era, ela iniciaria um enorme rebuliço na Turquia, com ruidosas reverberações na região e em todo o mundo. A Turquia é, afinal, a 11.ª maior economia do planeta após ajuste em função do custo de vida, à frente de Canadá, Itália e Coreia do Sul. A Turquia é membro determinante e improvável da Otan, próxima das linhas de frente da guerra na Ucrânia e, sob Erdogan, desconcertantemente íntima do regime do presidente russo, Vladimir Putin. A Turquia encontra-se entre a Europa e o caos do Oriente Médio e desempenha um papel crucial na moderação do fluxo de refugiados para a União Europeia. É também uma das poucas democracias genuínas no mundo muçulmano, apesar de Erdogan vir minando as instituições turcas há cerca de uma década.

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A importância do momento se espelha no drama shakespeareano do governo de Erdogan. Ele começou na política como um dissidente azarão, perseguido pelo establishment secular por fazer campanha pela suspensão das restrições às expressões de religiosidade na vida pública. Agora ele se tornou o perseguidor, prendendo oponentes sob acusações inconsistentes, intimidando meios de comunicação e destituindo autoridades eleitas. Na opinião de muitos observadores, a Turquia mal merece ser classificada como democracia.

A gestão econômica de Erdogan também completou um ciclo. A primeira década de seu governo testemunhou o fim da inflação e as rendas se elevarem às alturas. Na segunda, a inflação voltou e o PIB per capita em dólar caiu 15%

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Erdogan deu uma virada similar em relação à grande minoria curda da Turquia, a qual ele cortejou durante seus primeiros anos no poder, mas cujos líderes políticos ele passou a qualificar como lacaios do terrorismo. E se desentendeu com os Estados Unidos e a União Europeia, que inicialmente o saudavam por ajudar a fortalecer a democracia turca, mas agora o criticam por enfraquecê-la. Em todos esses campos — preservar a democracia, consertar a economia, administrar questões sociais e conduzir política externa — a eleição oferece uma escolha diametral entre uma oposição reformista ou um Erdogan cada vez mais entrincheirado e intransigente.

Campanha eleitoral entra na reta final na Turquia e reeleição de Erdogan está ameaçada  Foto: Sergey Ponomarev/The New York Times

Palácios e lamentações

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Diante dos fatos, é estranho que Erdogan e o partido AK estejam na disputa, dado o estado da economia. A lira perdeu 60% de seu valor em relação ao dólar nos dois anos recentes. O capital está fugindo do país: apenas cinco anos atrás, investidores estrangeiros eram donos de 64% das ações turcas, e de 25% dos títulos do governo, mas hoje possuem somente 29% das ações e 1% dos papéis da dívida pública. O atual déficit em conta-corrente da Turquia atingiu o recorde de US$ 10 bilhões em janeiro. A inflação descontrolada — que atingiu 86% ao ano no outono e permanece acima de 40% — empobreceu milhões de turcos. Além disso, a queda da inflação nos meses recentes ocorreu em parte porque o banco central controla a taxa de câmbio de forma insustentável. A instituição financeira está vendendo talvez até US$ 1 bilhão diariamente, grande parte disso vinda de empréstimos, para diminuir o ritmo de desvalorização da lira. Levando-se em conta os dólares que o BC turco deve para outros bancos centrais e para a maioria dos bancos comerciais da Turquia, percebe-se que a instituição tem reservas negativas em moeda estrangeira, quase -70 bilhões de dólares. Uma desvalorização maior da lira e, portanto, inflação mais alta, parece inevitável quando o banco central turco ficar sem dólares para vender.

Erdogan está tentando desviar as atenções disso tudo apontando para os muitos avanços que a Turquia conquistou em seu mandato. Somente ao longo do mês passado, ele inaugurou a primeira usina nuclear do país, celebrou a exploração de um grande depósito de gás natural no Mar Negro, dirigiu o primeiro carro elétrico fabricado na Turquia e revelou o primeiro porta-aviões do país. A mensagem que esses projetos têm objetivo de invocar é que Erdogan desafiou o Ocidente para transformar a Turquia numa potência mundial e que o melhor ainda está por vir. “Se você imagina por que ele ainda figura com mais de 40% (nas pesquisas)”, afirma o analista Galip Dalay, “uma razão é essa ideia e linguagem de grandeza”.

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Não se trata de uma retórica vazia. Erdogan chegou ao poder em 2003, na esteira de uma espiral inflacionária e uma crise bancária que tinha esmagado a economia. Inicialmente, ele governou durante um crescimento estável, na economia como um todo e na classe média. Muitos turcos se beneficiaram enormemente e, como resultado, permanecem fiéis a Erdogan.

Rodopiando como um derviche

Erdogan tem usado sua influência sobre os meios de comunicação para persuadir apoiadores de que os problemas da economia turca têm a ver mais com conspirações estrangeiras para manter a Turquia inferior do que com equívocos de seu governo. Ele também é adepto de explorar divisões internas da sociedade turca. Muitos dos que se beneficiaram de suas políticas econômicas iniciais eram tipos conservadores, de classe média e provincianos que, havia muito, se sentiam ignorados ou desdenhados pela elite secular das metrópoles. Por anos, ele tem lhes dito que as liberdades que eles conquistaram durante seu mandato, incluindo o direito de usar o véu islâmico dentro de universidades e entidades públicas, dependem de sua permanência no poder. Ele caracteriza a eleição como uma disputa entre turcos nacionalistas orgulhosamente religiosos e uma turba de elitistas bebedores de uísque e ateus, separatistas curdos e pessoas degeneradas sexualmente, todos escravos da busca por valores importados do Ocidente.

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Mas nada disso pode esconder o problema fundamental: Erdogan está sabotando a economia. Ele crê, através de sua lente distorcida, que taxas de juros altas alimentam inflação e baixar os custos dos empréstimos ajudará a estabilizar os preços. Ao aparelhar o banco central com bajuladores, ele impôs sua visão sobre o país, ocasionando uma inflação febril. E já que taxas de juros baixas tornam o crédito absurdamente barato (a principal taxa para empréstimos é mais de 35% menor do que o índice de inflação), ele tem de ser racionado por meio de regulações do governo. Críticos consideram isso uma receita para o clientelismo. “O banco central decide quem pode comprar dólares, a autoridade financeira decide quem se qualifica para obter empréstimos, e o governo decide quais dívidas são perdoadas ou proteladas”, reclama Kerim Rota, ex-banqueiro e vice-presidente do Futuro, um pequeno partido de oposição.

Os únicos remédios de Erdogan não passam de remendos. A descoberta recente de um grande depósito de gás natural no Mar Negro, afirma Numan Kurtulmus, vice-presidente do AK, cortará a conta de importações da Turquia, aliviando a pressão sobre a lira. Enquanto isso, desde o fim de 2021, o governo aumentou a pensão básica do Estado em cinco vezes, para 7,5 mil liras (US$ 385) e triplicou o salário mínimo, para 8,5 mil liras, aproximando-o da renda média. O governo promete aumentar o salário mínimo novamente em julho, depois da eleição.

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A oposição, em contraste, promete um retorno à ortodoxia econômica. Ela é liderada por Kemal Kilicdaroglu, ex-autoridade do Ministério das Finanças e diretor da agência de pensões do Estado, cuja personalidade trivial oferece um contraponto marcante em relação à extroversão de Erdogan (enquanto Erdogan inaugura consecutivos megaprojetos, Kilicdaroglu grava vídeos em sua modesta cozinha, com o puxador do fogão envolvido em um paninho de cozinha e uma cebola solitária como objeto de cena para falar da inflação).

Kilicdaroglu afirma que restituirá a independência do banco central, o que inevitavelmente ocasionará elevações acentuadas nas taxas de juros. Isso, por sua vez, deverá diminuir o ritmo da economia e até ocasionar recessão. Enquanto isso, levará algum tempo para a inflação ser contida. Sob Erdogan, esse problema se complicou tanto que a oposição teve de revisar seu cronograma para fazer a inflação cair para um só dígito, de um ano para dois.

Políticos de oposição afirmam que gastos sociais aliviarão parte da dor, assim como o capital estrangeiro, que, esperam eles, inundará os mercados turcos de ações e obrigações assim que uma nova equipe econômica assumir e os juros começarem a subir. Investimentos diretos em firmas e fábricas vão demorar mais, mas também retornarão, argumenta a oposição. Afinal, a Turquia é a maior economia entre a Índia e a Alemanha e se beneficia de união aduaneira com a União Europeia, o que a torna uma base excelente para exportar para a Europa. Conversas com gerentes de fundos a caminho de Istambul anteriormente às eleições sugerem que tais esperanças não são infundadas. “Eu sei o que é necessário ser feito”, afirma Bilge Yilmaz, um possível ministro da Economia se a oposição vencer, “e adiar isso apenas aumentará a dor no longo prazo”.

Em termos de reformas institucionais, também, governo e oposição oferecem pautas diametralmente distintas. Erdogan centralizou fortemente o poder na presidência, que anteriormente era uma função amplamente cerimonial, ao abolir o cargo de primeiro-ministro e diminuir as atribuições do Parlamento. Ele também usou o poder do Estado de maneiras extremamente parciais e punitivas, endureceu os termos de uma lei contra insultos ao presidente e abusou de sua aplicação — o delito passou a ser punível com até 4 anos de prisão. Cerca de 200 mil investigações foram abertas para apurar a ocorrência desse crime durante seu mandato. Em um eco assombroso do banimento dos partidos e políticos islamistas anterior à sua ascensão ao poder, seus promotores de Justiça estão pressionando pela dissolução do Partido Democrático dos Povos (HDP), o principal partido curdo. Enquanto isso, Erdogan despojou da função vários prefeitos curdos eleitos legitimamente. Dezenas de milhares de seguidores de Fethullah Gulen, clérigo ao qual Erdogan se aliou politicamente no passado, foram destituídos de cargos no governo ou presos sob acusações inconsistentes, fundamentadas por evidências risíveis, após Gulen ser acusado de instigar uma tentativa de golpe em 2016.

Kilicdaroglu promete reverter grande parte disso. Ele afirma que restituirá a independência do Judiciário, devolverá poder ao Parlamento e abolirá a lei contra insultos ao presidente. A oposição também promete acabar com a política de Erdogan de destituir da função prefeitos eleitos e compensar os políticos que foram destituídos injustamente após o golpe de Estado. A oposição afirma, também, que perseguirá autoridades corruptas, incluindo indivíduos suspeitos de manipular índices inflacionários e conceder contratos lucrativos para amigos do governo.

Apoio sublime

Um dos prováveis beneficiários de tais políticas seria Selahattin Demirtas, ex-líder do HDP que está preso. Desde o rompimento das negociações com o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), um grupo insurgente curdo, em 2015, o AK tornou-se cada vez mais hostil à minoria curda da Turquia, que constitui de 15% a 20% da população do país. Desde 2018, o AK tem governado com o apoio do Partido do Movimento Nacionalista (MHP), que se opõe ferozmente a qualquer concessão aos curdos.

A aliança de oposição também contém uma legenda nacionalista, o Partido Bom, formado após uma cisão no MHP. Seu manifesto, portanto, apresenta poucas concessões claras ao sentimento curdo. Mas enquanto Erdogan rejeita os partidos políticos curdos qualificando-os como fachada para os discursos do PKK, Kilicdaroglu critica Erdogan por caricaturar todos os curdos como extremistas. Simplesmente ao restaurar o estado de direito, a oposição facilitaria muito a coisa para os ativistas curdos. O HDP apoiou formalmente Kilicdaroglu. Apesar de sua eleição não resolver todas as aflições curdas, Kilicdaroglu aliviaria marcadamente as tensões.

Em relação à política externa, governo e oposição também diferem dramaticamente, pelo menos no tom. O desprezo de Erdogan por liberdades civis e seu tom estridentemente nacionalista dificultam as relações com o Ocidente, apesar de um esforço de reaproximação em ambos os lados. Erdogan bloqueou a candidatura da Suécia para adesão à Otan argumentando que o país abriga terroristas curdos. E seu governo depende de Putin para todo tipo de ajuda econômica, entre importações de gás barato, empréstimos e a consultoria para a construção da usina nuclear que Erdogan inaugurou recentemente.

Kemal Kilicdaroglu, candidato à presidência da Turquia, participa de comício em Kocaeli  Foto: YASIN AKGUL / AFP

Entrada da Suécia na Otan

Um assessor de Kilicdaroglu afirma que a Suécia poderia aderir à Otan em um mês se seu chefe vencer. A oposição promete melhorar as relações também com a União Europeia — apesar disso depender tanto da Europa superar seus temores de imigração de turcos quanto da Turquia melhorar seu histórico de respeito aos direitos humanos. A oposição é quase tão cética quanto Erdogan a respeito de um apoio irrestrito à Ucrânia, argumentando que a guerra só poderá acabar por meio de negociação. A Turquia, em suma, ainda verá a si mesma como potência regional merecedora de certa deferência caso Kilicdaroglu vire presidente, mas deverá expressar menos irritações e belicosidades.

Todas essas mudanças, porém, só serão possíveis se a oposição vencer. A coalizão é heterogênea. O Partido Republicano do Povo (CHP), de Kilicdaroglu, aferra-se há décadas ao legado de estadismo secular do fundador da Turquia moderna, Kemal Ataturk, e se opunha a qualquer expressão pública de fé islâmica. A líder do Partido Bom, Meral Aksener, atuou brevemente como ministra do Interior nos anos 90, época que testemunhou os piores abusos de direitos humanos no sudeste curdo. Outros líderes proeminentes da oposição incluem o ex-primeiro-ministro de Erdogan, seu antigo czar da economia e um reconhecido islamista que poucos anos atrás argumentava que a Turquia deveria desfazer seus laços com a Europa em favor de uma união islâmica.

Essa convenção diversa deixou suas diferenças de lado gradualmente e moderou seus pontos de vista. Aksener requalificou o Partido Bom como uma legenda de centro-direita. Kilicdaroglu começou a transformar o fóssil kemalista que era o CHP em um partido social-democrata moderno (o que ajudou a torná-lo mais palatável para os eleitores curdos). Por insistência de Kilicdaroglu, a aliança de oposição redigiu um manifesto de 200 páginas, depois de meses de negociações. E também aprovou Kilicdaroglu como candidato comum à presidência, apesar de inquietações a respeito de sua falta de carisma.

A oposição é certamente capaz de vencer as eleições. Quatro anos atrás, em parte graças ao voto dos curdos, seus candidatos a cargos majoritários impingiram uma derrota dolorosa a Erdogan, derrotando o AK em quatro das cinco maiores cidades da Turquia. A pesquisa mais recente sugere disputas apertadas para o Parlamento e a presidência.

Para vencer a eleição presidencial no primeiro turno, um candidato tem de conquistar mais de 50% dos votos. Com outros dois candidatos na disputa além dos senhores Erdogan e Kilicdaroglu, isso é improvável. Portanto, a eleição deverá ter segundo turno, em 28 de maio.

Alguns apoiadores da oposição temem que Erdogan se recuse a entregar o poder caso perca. “Meu povo não entregará o país para um presidente apoiado pelo (PKK)”, trovejou ele em 1.º de maio. Poucos dias antes, o ministro do Interior alertou sobre “uma tentativa de golpe político apoiada pelo Ocidente” no dia da eleição.

Essa retórica gera preocupações a respeito da possibilidade de Erdogan, talvez atendendo a um apelo dos membros de seu alto-escalão, subverter a eleição ou contestar seus resultados, especialmente no advento de uma derrota por pouca margem. Afinal, o AK já tentou isso nas eleições majoritárias mais recentes em Istambul, persuadindo o Judiciário a ordenar uma nova votação. O AK perdeu novamente — e por margem maior. Três anos depois, o candidato vitorioso foi condenado por insultar autoridades do governo.

Os políticos da oposição, contudo, descartam tais preocupações, afirmando que confiam na integridade da eleição e que Erdogan não ousaria contestar a vontade do povo, da qual sua legitimidade depende. “Ele pode tentar qualquer coisa”, afirma Kilicdaroglu. “Não importa o que ele fará, esta nação já tomou sua decisão”. Se Kilicdaroglu estiver correto, esta eleição será um divisor de águas para a Turquia e o mundo. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

Ele foi preso e impedido de assumir cargos públicos, mas conseguiu reverter o banimento e veio a dominar a política turca. Venceu cinco eleições parlamentares, duas eleições presidenciais e três referendos. Até enfrentou e impediu um golpe militar. Mas em 14 de maio, o poder de Recep Tayyip Erdogan sobre a Turquia poderá lhe escapar. As pesquisas sugerem que a oposição unida poderia retirar o controle do Parlamento do partido Justiça e Desenvolvimento (AK), de Erdogan, e seus aliados. Além disso, o próprio presidente parece estar sendo superado na disputa que ocorre no mesmo dia.

A derrota de Erdogan não seria apenas o fim de uma era, ela iniciaria um enorme rebuliço na Turquia, com ruidosas reverberações na região e em todo o mundo. A Turquia é, afinal, a 11.ª maior economia do planeta após ajuste em função do custo de vida, à frente de Canadá, Itália e Coreia do Sul. A Turquia é membro determinante e improvável da Otan, próxima das linhas de frente da guerra na Ucrânia e, sob Erdogan, desconcertantemente íntima do regime do presidente russo, Vladimir Putin. A Turquia encontra-se entre a Europa e o caos do Oriente Médio e desempenha um papel crucial na moderação do fluxo de refugiados para a União Europeia. É também uma das poucas democracias genuínas no mundo muçulmano, apesar de Erdogan vir minando as instituições turcas há cerca de uma década.

A importância do momento se espelha no drama shakespeareano do governo de Erdogan. Ele começou na política como um dissidente azarão, perseguido pelo establishment secular por fazer campanha pela suspensão das restrições às expressões de religiosidade na vida pública. Agora ele se tornou o perseguidor, prendendo oponentes sob acusações inconsistentes, intimidando meios de comunicação e destituindo autoridades eleitas. Na opinião de muitos observadores, a Turquia mal merece ser classificada como democracia.

A gestão econômica de Erdogan também completou um ciclo. A primeira década de seu governo testemunhou o fim da inflação e as rendas se elevarem às alturas. Na segunda, a inflação voltou e o PIB per capita em dólar caiu 15%

Erdogan deu uma virada similar em relação à grande minoria curda da Turquia, a qual ele cortejou durante seus primeiros anos no poder, mas cujos líderes políticos ele passou a qualificar como lacaios do terrorismo. E se desentendeu com os Estados Unidos e a União Europeia, que inicialmente o saudavam por ajudar a fortalecer a democracia turca, mas agora o criticam por enfraquecê-la. Em todos esses campos — preservar a democracia, consertar a economia, administrar questões sociais e conduzir política externa — a eleição oferece uma escolha diametral entre uma oposição reformista ou um Erdogan cada vez mais entrincheirado e intransigente.

Campanha eleitoral entra na reta final na Turquia e reeleição de Erdogan está ameaçada  Foto: Sergey Ponomarev/The New York Times

Palácios e lamentações

Diante dos fatos, é estranho que Erdogan e o partido AK estejam na disputa, dado o estado da economia. A lira perdeu 60% de seu valor em relação ao dólar nos dois anos recentes. O capital está fugindo do país: apenas cinco anos atrás, investidores estrangeiros eram donos de 64% das ações turcas, e de 25% dos títulos do governo, mas hoje possuem somente 29% das ações e 1% dos papéis da dívida pública. O atual déficit em conta-corrente da Turquia atingiu o recorde de US$ 10 bilhões em janeiro. A inflação descontrolada — que atingiu 86% ao ano no outono e permanece acima de 40% — empobreceu milhões de turcos. Além disso, a queda da inflação nos meses recentes ocorreu em parte porque o banco central controla a taxa de câmbio de forma insustentável. A instituição financeira está vendendo talvez até US$ 1 bilhão diariamente, grande parte disso vinda de empréstimos, para diminuir o ritmo de desvalorização da lira. Levando-se em conta os dólares que o BC turco deve para outros bancos centrais e para a maioria dos bancos comerciais da Turquia, percebe-se que a instituição tem reservas negativas em moeda estrangeira, quase -70 bilhões de dólares. Uma desvalorização maior da lira e, portanto, inflação mais alta, parece inevitável quando o banco central turco ficar sem dólares para vender.

Erdogan está tentando desviar as atenções disso tudo apontando para os muitos avanços que a Turquia conquistou em seu mandato. Somente ao longo do mês passado, ele inaugurou a primeira usina nuclear do país, celebrou a exploração de um grande depósito de gás natural no Mar Negro, dirigiu o primeiro carro elétrico fabricado na Turquia e revelou o primeiro porta-aviões do país. A mensagem que esses projetos têm objetivo de invocar é que Erdogan desafiou o Ocidente para transformar a Turquia numa potência mundial e que o melhor ainda está por vir. “Se você imagina por que ele ainda figura com mais de 40% (nas pesquisas)”, afirma o analista Galip Dalay, “uma razão é essa ideia e linguagem de grandeza”.

Não se trata de uma retórica vazia. Erdogan chegou ao poder em 2003, na esteira de uma espiral inflacionária e uma crise bancária que tinha esmagado a economia. Inicialmente, ele governou durante um crescimento estável, na economia como um todo e na classe média. Muitos turcos se beneficiaram enormemente e, como resultado, permanecem fiéis a Erdogan.

Rodopiando como um derviche

Erdogan tem usado sua influência sobre os meios de comunicação para persuadir apoiadores de que os problemas da economia turca têm a ver mais com conspirações estrangeiras para manter a Turquia inferior do que com equívocos de seu governo. Ele também é adepto de explorar divisões internas da sociedade turca. Muitos dos que se beneficiaram de suas políticas econômicas iniciais eram tipos conservadores, de classe média e provincianos que, havia muito, se sentiam ignorados ou desdenhados pela elite secular das metrópoles. Por anos, ele tem lhes dito que as liberdades que eles conquistaram durante seu mandato, incluindo o direito de usar o véu islâmico dentro de universidades e entidades públicas, dependem de sua permanência no poder. Ele caracteriza a eleição como uma disputa entre turcos nacionalistas orgulhosamente religiosos e uma turba de elitistas bebedores de uísque e ateus, separatistas curdos e pessoas degeneradas sexualmente, todos escravos da busca por valores importados do Ocidente.

Mas nada disso pode esconder o problema fundamental: Erdogan está sabotando a economia. Ele crê, através de sua lente distorcida, que taxas de juros altas alimentam inflação e baixar os custos dos empréstimos ajudará a estabilizar os preços. Ao aparelhar o banco central com bajuladores, ele impôs sua visão sobre o país, ocasionando uma inflação febril. E já que taxas de juros baixas tornam o crédito absurdamente barato (a principal taxa para empréstimos é mais de 35% menor do que o índice de inflação), ele tem de ser racionado por meio de regulações do governo. Críticos consideram isso uma receita para o clientelismo. “O banco central decide quem pode comprar dólares, a autoridade financeira decide quem se qualifica para obter empréstimos, e o governo decide quais dívidas são perdoadas ou proteladas”, reclama Kerim Rota, ex-banqueiro e vice-presidente do Futuro, um pequeno partido de oposição.

Os únicos remédios de Erdogan não passam de remendos. A descoberta recente de um grande depósito de gás natural no Mar Negro, afirma Numan Kurtulmus, vice-presidente do AK, cortará a conta de importações da Turquia, aliviando a pressão sobre a lira. Enquanto isso, desde o fim de 2021, o governo aumentou a pensão básica do Estado em cinco vezes, para 7,5 mil liras (US$ 385) e triplicou o salário mínimo, para 8,5 mil liras, aproximando-o da renda média. O governo promete aumentar o salário mínimo novamente em julho, depois da eleição.

A oposição, em contraste, promete um retorno à ortodoxia econômica. Ela é liderada por Kemal Kilicdaroglu, ex-autoridade do Ministério das Finanças e diretor da agência de pensões do Estado, cuja personalidade trivial oferece um contraponto marcante em relação à extroversão de Erdogan (enquanto Erdogan inaugura consecutivos megaprojetos, Kilicdaroglu grava vídeos em sua modesta cozinha, com o puxador do fogão envolvido em um paninho de cozinha e uma cebola solitária como objeto de cena para falar da inflação).

Kilicdaroglu afirma que restituirá a independência do banco central, o que inevitavelmente ocasionará elevações acentuadas nas taxas de juros. Isso, por sua vez, deverá diminuir o ritmo da economia e até ocasionar recessão. Enquanto isso, levará algum tempo para a inflação ser contida. Sob Erdogan, esse problema se complicou tanto que a oposição teve de revisar seu cronograma para fazer a inflação cair para um só dígito, de um ano para dois.

Políticos de oposição afirmam que gastos sociais aliviarão parte da dor, assim como o capital estrangeiro, que, esperam eles, inundará os mercados turcos de ações e obrigações assim que uma nova equipe econômica assumir e os juros começarem a subir. Investimentos diretos em firmas e fábricas vão demorar mais, mas também retornarão, argumenta a oposição. Afinal, a Turquia é a maior economia entre a Índia e a Alemanha e se beneficia de união aduaneira com a União Europeia, o que a torna uma base excelente para exportar para a Europa. Conversas com gerentes de fundos a caminho de Istambul anteriormente às eleições sugerem que tais esperanças não são infundadas. “Eu sei o que é necessário ser feito”, afirma Bilge Yilmaz, um possível ministro da Economia se a oposição vencer, “e adiar isso apenas aumentará a dor no longo prazo”.

Em termos de reformas institucionais, também, governo e oposição oferecem pautas diametralmente distintas. Erdogan centralizou fortemente o poder na presidência, que anteriormente era uma função amplamente cerimonial, ao abolir o cargo de primeiro-ministro e diminuir as atribuições do Parlamento. Ele também usou o poder do Estado de maneiras extremamente parciais e punitivas, endureceu os termos de uma lei contra insultos ao presidente e abusou de sua aplicação — o delito passou a ser punível com até 4 anos de prisão. Cerca de 200 mil investigações foram abertas para apurar a ocorrência desse crime durante seu mandato. Em um eco assombroso do banimento dos partidos e políticos islamistas anterior à sua ascensão ao poder, seus promotores de Justiça estão pressionando pela dissolução do Partido Democrático dos Povos (HDP), o principal partido curdo. Enquanto isso, Erdogan despojou da função vários prefeitos curdos eleitos legitimamente. Dezenas de milhares de seguidores de Fethullah Gulen, clérigo ao qual Erdogan se aliou politicamente no passado, foram destituídos de cargos no governo ou presos sob acusações inconsistentes, fundamentadas por evidências risíveis, após Gulen ser acusado de instigar uma tentativa de golpe em 2016.

Kilicdaroglu promete reverter grande parte disso. Ele afirma que restituirá a independência do Judiciário, devolverá poder ao Parlamento e abolirá a lei contra insultos ao presidente. A oposição também promete acabar com a política de Erdogan de destituir da função prefeitos eleitos e compensar os políticos que foram destituídos injustamente após o golpe de Estado. A oposição afirma, também, que perseguirá autoridades corruptas, incluindo indivíduos suspeitos de manipular índices inflacionários e conceder contratos lucrativos para amigos do governo.

Apoio sublime

Um dos prováveis beneficiários de tais políticas seria Selahattin Demirtas, ex-líder do HDP que está preso. Desde o rompimento das negociações com o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), um grupo insurgente curdo, em 2015, o AK tornou-se cada vez mais hostil à minoria curda da Turquia, que constitui de 15% a 20% da população do país. Desde 2018, o AK tem governado com o apoio do Partido do Movimento Nacionalista (MHP), que se opõe ferozmente a qualquer concessão aos curdos.

A aliança de oposição também contém uma legenda nacionalista, o Partido Bom, formado após uma cisão no MHP. Seu manifesto, portanto, apresenta poucas concessões claras ao sentimento curdo. Mas enquanto Erdogan rejeita os partidos políticos curdos qualificando-os como fachada para os discursos do PKK, Kilicdaroglu critica Erdogan por caricaturar todos os curdos como extremistas. Simplesmente ao restaurar o estado de direito, a oposição facilitaria muito a coisa para os ativistas curdos. O HDP apoiou formalmente Kilicdaroglu. Apesar de sua eleição não resolver todas as aflições curdas, Kilicdaroglu aliviaria marcadamente as tensões.

Em relação à política externa, governo e oposição também diferem dramaticamente, pelo menos no tom. O desprezo de Erdogan por liberdades civis e seu tom estridentemente nacionalista dificultam as relações com o Ocidente, apesar de um esforço de reaproximação em ambos os lados. Erdogan bloqueou a candidatura da Suécia para adesão à Otan argumentando que o país abriga terroristas curdos. E seu governo depende de Putin para todo tipo de ajuda econômica, entre importações de gás barato, empréstimos e a consultoria para a construção da usina nuclear que Erdogan inaugurou recentemente.

Kemal Kilicdaroglu, candidato à presidência da Turquia, participa de comício em Kocaeli  Foto: YASIN AKGUL / AFP

Entrada da Suécia na Otan

Um assessor de Kilicdaroglu afirma que a Suécia poderia aderir à Otan em um mês se seu chefe vencer. A oposição promete melhorar as relações também com a União Europeia — apesar disso depender tanto da Europa superar seus temores de imigração de turcos quanto da Turquia melhorar seu histórico de respeito aos direitos humanos. A oposição é quase tão cética quanto Erdogan a respeito de um apoio irrestrito à Ucrânia, argumentando que a guerra só poderá acabar por meio de negociação. A Turquia, em suma, ainda verá a si mesma como potência regional merecedora de certa deferência caso Kilicdaroglu vire presidente, mas deverá expressar menos irritações e belicosidades.

Todas essas mudanças, porém, só serão possíveis se a oposição vencer. A coalizão é heterogênea. O Partido Republicano do Povo (CHP), de Kilicdaroglu, aferra-se há décadas ao legado de estadismo secular do fundador da Turquia moderna, Kemal Ataturk, e se opunha a qualquer expressão pública de fé islâmica. A líder do Partido Bom, Meral Aksener, atuou brevemente como ministra do Interior nos anos 90, época que testemunhou os piores abusos de direitos humanos no sudeste curdo. Outros líderes proeminentes da oposição incluem o ex-primeiro-ministro de Erdogan, seu antigo czar da economia e um reconhecido islamista que poucos anos atrás argumentava que a Turquia deveria desfazer seus laços com a Europa em favor de uma união islâmica.

Essa convenção diversa deixou suas diferenças de lado gradualmente e moderou seus pontos de vista. Aksener requalificou o Partido Bom como uma legenda de centro-direita. Kilicdaroglu começou a transformar o fóssil kemalista que era o CHP em um partido social-democrata moderno (o que ajudou a torná-lo mais palatável para os eleitores curdos). Por insistência de Kilicdaroglu, a aliança de oposição redigiu um manifesto de 200 páginas, depois de meses de negociações. E também aprovou Kilicdaroglu como candidato comum à presidência, apesar de inquietações a respeito de sua falta de carisma.

A oposição é certamente capaz de vencer as eleições. Quatro anos atrás, em parte graças ao voto dos curdos, seus candidatos a cargos majoritários impingiram uma derrota dolorosa a Erdogan, derrotando o AK em quatro das cinco maiores cidades da Turquia. A pesquisa mais recente sugere disputas apertadas para o Parlamento e a presidência.

Para vencer a eleição presidencial no primeiro turno, um candidato tem de conquistar mais de 50% dos votos. Com outros dois candidatos na disputa além dos senhores Erdogan e Kilicdaroglu, isso é improvável. Portanto, a eleição deverá ter segundo turno, em 28 de maio.

Alguns apoiadores da oposição temem que Erdogan se recuse a entregar o poder caso perca. “Meu povo não entregará o país para um presidente apoiado pelo (PKK)”, trovejou ele em 1.º de maio. Poucos dias antes, o ministro do Interior alertou sobre “uma tentativa de golpe político apoiada pelo Ocidente” no dia da eleição.

Essa retórica gera preocupações a respeito da possibilidade de Erdogan, talvez atendendo a um apelo dos membros de seu alto-escalão, subverter a eleição ou contestar seus resultados, especialmente no advento de uma derrota por pouca margem. Afinal, o AK já tentou isso nas eleições majoritárias mais recentes em Istambul, persuadindo o Judiciário a ordenar uma nova votação. O AK perdeu novamente — e por margem maior. Três anos depois, o candidato vitorioso foi condenado por insultar autoridades do governo.

Os políticos da oposição, contudo, descartam tais preocupações, afirmando que confiam na integridade da eleição e que Erdogan não ousaria contestar a vontade do povo, da qual sua legitimidade depende. “Ele pode tentar qualquer coisa”, afirma Kilicdaroglu. “Não importa o que ele fará, esta nação já tomou sua decisão”. Se Kilicdaroglu estiver correto, esta eleição será um divisor de águas para a Turquia e o mundo. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

Ele foi preso e impedido de assumir cargos públicos, mas conseguiu reverter o banimento e veio a dominar a política turca. Venceu cinco eleições parlamentares, duas eleições presidenciais e três referendos. Até enfrentou e impediu um golpe militar. Mas em 14 de maio, o poder de Recep Tayyip Erdogan sobre a Turquia poderá lhe escapar. As pesquisas sugerem que a oposição unida poderia retirar o controle do Parlamento do partido Justiça e Desenvolvimento (AK), de Erdogan, e seus aliados. Além disso, o próprio presidente parece estar sendo superado na disputa que ocorre no mesmo dia.

A derrota de Erdogan não seria apenas o fim de uma era, ela iniciaria um enorme rebuliço na Turquia, com ruidosas reverberações na região e em todo o mundo. A Turquia é, afinal, a 11.ª maior economia do planeta após ajuste em função do custo de vida, à frente de Canadá, Itália e Coreia do Sul. A Turquia é membro determinante e improvável da Otan, próxima das linhas de frente da guerra na Ucrânia e, sob Erdogan, desconcertantemente íntima do regime do presidente russo, Vladimir Putin. A Turquia encontra-se entre a Europa e o caos do Oriente Médio e desempenha um papel crucial na moderação do fluxo de refugiados para a União Europeia. É também uma das poucas democracias genuínas no mundo muçulmano, apesar de Erdogan vir minando as instituições turcas há cerca de uma década.

A importância do momento se espelha no drama shakespeareano do governo de Erdogan. Ele começou na política como um dissidente azarão, perseguido pelo establishment secular por fazer campanha pela suspensão das restrições às expressões de religiosidade na vida pública. Agora ele se tornou o perseguidor, prendendo oponentes sob acusações inconsistentes, intimidando meios de comunicação e destituindo autoridades eleitas. Na opinião de muitos observadores, a Turquia mal merece ser classificada como democracia.

A gestão econômica de Erdogan também completou um ciclo. A primeira década de seu governo testemunhou o fim da inflação e as rendas se elevarem às alturas. Na segunda, a inflação voltou e o PIB per capita em dólar caiu 15%

Erdogan deu uma virada similar em relação à grande minoria curda da Turquia, a qual ele cortejou durante seus primeiros anos no poder, mas cujos líderes políticos ele passou a qualificar como lacaios do terrorismo. E se desentendeu com os Estados Unidos e a União Europeia, que inicialmente o saudavam por ajudar a fortalecer a democracia turca, mas agora o criticam por enfraquecê-la. Em todos esses campos — preservar a democracia, consertar a economia, administrar questões sociais e conduzir política externa — a eleição oferece uma escolha diametral entre uma oposição reformista ou um Erdogan cada vez mais entrincheirado e intransigente.

Campanha eleitoral entra na reta final na Turquia e reeleição de Erdogan está ameaçada  Foto: Sergey Ponomarev/The New York Times

Palácios e lamentações

Diante dos fatos, é estranho que Erdogan e o partido AK estejam na disputa, dado o estado da economia. A lira perdeu 60% de seu valor em relação ao dólar nos dois anos recentes. O capital está fugindo do país: apenas cinco anos atrás, investidores estrangeiros eram donos de 64% das ações turcas, e de 25% dos títulos do governo, mas hoje possuem somente 29% das ações e 1% dos papéis da dívida pública. O atual déficit em conta-corrente da Turquia atingiu o recorde de US$ 10 bilhões em janeiro. A inflação descontrolada — que atingiu 86% ao ano no outono e permanece acima de 40% — empobreceu milhões de turcos. Além disso, a queda da inflação nos meses recentes ocorreu em parte porque o banco central controla a taxa de câmbio de forma insustentável. A instituição financeira está vendendo talvez até US$ 1 bilhão diariamente, grande parte disso vinda de empréstimos, para diminuir o ritmo de desvalorização da lira. Levando-se em conta os dólares que o BC turco deve para outros bancos centrais e para a maioria dos bancos comerciais da Turquia, percebe-se que a instituição tem reservas negativas em moeda estrangeira, quase -70 bilhões de dólares. Uma desvalorização maior da lira e, portanto, inflação mais alta, parece inevitável quando o banco central turco ficar sem dólares para vender.

Erdogan está tentando desviar as atenções disso tudo apontando para os muitos avanços que a Turquia conquistou em seu mandato. Somente ao longo do mês passado, ele inaugurou a primeira usina nuclear do país, celebrou a exploração de um grande depósito de gás natural no Mar Negro, dirigiu o primeiro carro elétrico fabricado na Turquia e revelou o primeiro porta-aviões do país. A mensagem que esses projetos têm objetivo de invocar é que Erdogan desafiou o Ocidente para transformar a Turquia numa potência mundial e que o melhor ainda está por vir. “Se você imagina por que ele ainda figura com mais de 40% (nas pesquisas)”, afirma o analista Galip Dalay, “uma razão é essa ideia e linguagem de grandeza”.

Não se trata de uma retórica vazia. Erdogan chegou ao poder em 2003, na esteira de uma espiral inflacionária e uma crise bancária que tinha esmagado a economia. Inicialmente, ele governou durante um crescimento estável, na economia como um todo e na classe média. Muitos turcos se beneficiaram enormemente e, como resultado, permanecem fiéis a Erdogan.

Rodopiando como um derviche

Erdogan tem usado sua influência sobre os meios de comunicação para persuadir apoiadores de que os problemas da economia turca têm a ver mais com conspirações estrangeiras para manter a Turquia inferior do que com equívocos de seu governo. Ele também é adepto de explorar divisões internas da sociedade turca. Muitos dos que se beneficiaram de suas políticas econômicas iniciais eram tipos conservadores, de classe média e provincianos que, havia muito, se sentiam ignorados ou desdenhados pela elite secular das metrópoles. Por anos, ele tem lhes dito que as liberdades que eles conquistaram durante seu mandato, incluindo o direito de usar o véu islâmico dentro de universidades e entidades públicas, dependem de sua permanência no poder. Ele caracteriza a eleição como uma disputa entre turcos nacionalistas orgulhosamente religiosos e uma turba de elitistas bebedores de uísque e ateus, separatistas curdos e pessoas degeneradas sexualmente, todos escravos da busca por valores importados do Ocidente.

Mas nada disso pode esconder o problema fundamental: Erdogan está sabotando a economia. Ele crê, através de sua lente distorcida, que taxas de juros altas alimentam inflação e baixar os custos dos empréstimos ajudará a estabilizar os preços. Ao aparelhar o banco central com bajuladores, ele impôs sua visão sobre o país, ocasionando uma inflação febril. E já que taxas de juros baixas tornam o crédito absurdamente barato (a principal taxa para empréstimos é mais de 35% menor do que o índice de inflação), ele tem de ser racionado por meio de regulações do governo. Críticos consideram isso uma receita para o clientelismo. “O banco central decide quem pode comprar dólares, a autoridade financeira decide quem se qualifica para obter empréstimos, e o governo decide quais dívidas são perdoadas ou proteladas”, reclama Kerim Rota, ex-banqueiro e vice-presidente do Futuro, um pequeno partido de oposição.

Os únicos remédios de Erdogan não passam de remendos. A descoberta recente de um grande depósito de gás natural no Mar Negro, afirma Numan Kurtulmus, vice-presidente do AK, cortará a conta de importações da Turquia, aliviando a pressão sobre a lira. Enquanto isso, desde o fim de 2021, o governo aumentou a pensão básica do Estado em cinco vezes, para 7,5 mil liras (US$ 385) e triplicou o salário mínimo, para 8,5 mil liras, aproximando-o da renda média. O governo promete aumentar o salário mínimo novamente em julho, depois da eleição.

A oposição, em contraste, promete um retorno à ortodoxia econômica. Ela é liderada por Kemal Kilicdaroglu, ex-autoridade do Ministério das Finanças e diretor da agência de pensões do Estado, cuja personalidade trivial oferece um contraponto marcante em relação à extroversão de Erdogan (enquanto Erdogan inaugura consecutivos megaprojetos, Kilicdaroglu grava vídeos em sua modesta cozinha, com o puxador do fogão envolvido em um paninho de cozinha e uma cebola solitária como objeto de cena para falar da inflação).

Kilicdaroglu afirma que restituirá a independência do banco central, o que inevitavelmente ocasionará elevações acentuadas nas taxas de juros. Isso, por sua vez, deverá diminuir o ritmo da economia e até ocasionar recessão. Enquanto isso, levará algum tempo para a inflação ser contida. Sob Erdogan, esse problema se complicou tanto que a oposição teve de revisar seu cronograma para fazer a inflação cair para um só dígito, de um ano para dois.

Políticos de oposição afirmam que gastos sociais aliviarão parte da dor, assim como o capital estrangeiro, que, esperam eles, inundará os mercados turcos de ações e obrigações assim que uma nova equipe econômica assumir e os juros começarem a subir. Investimentos diretos em firmas e fábricas vão demorar mais, mas também retornarão, argumenta a oposição. Afinal, a Turquia é a maior economia entre a Índia e a Alemanha e se beneficia de união aduaneira com a União Europeia, o que a torna uma base excelente para exportar para a Europa. Conversas com gerentes de fundos a caminho de Istambul anteriormente às eleições sugerem que tais esperanças não são infundadas. “Eu sei o que é necessário ser feito”, afirma Bilge Yilmaz, um possível ministro da Economia se a oposição vencer, “e adiar isso apenas aumentará a dor no longo prazo”.

Em termos de reformas institucionais, também, governo e oposição oferecem pautas diametralmente distintas. Erdogan centralizou fortemente o poder na presidência, que anteriormente era uma função amplamente cerimonial, ao abolir o cargo de primeiro-ministro e diminuir as atribuições do Parlamento. Ele também usou o poder do Estado de maneiras extremamente parciais e punitivas, endureceu os termos de uma lei contra insultos ao presidente e abusou de sua aplicação — o delito passou a ser punível com até 4 anos de prisão. Cerca de 200 mil investigações foram abertas para apurar a ocorrência desse crime durante seu mandato. Em um eco assombroso do banimento dos partidos e políticos islamistas anterior à sua ascensão ao poder, seus promotores de Justiça estão pressionando pela dissolução do Partido Democrático dos Povos (HDP), o principal partido curdo. Enquanto isso, Erdogan despojou da função vários prefeitos curdos eleitos legitimamente. Dezenas de milhares de seguidores de Fethullah Gulen, clérigo ao qual Erdogan se aliou politicamente no passado, foram destituídos de cargos no governo ou presos sob acusações inconsistentes, fundamentadas por evidências risíveis, após Gulen ser acusado de instigar uma tentativa de golpe em 2016.

Kilicdaroglu promete reverter grande parte disso. Ele afirma que restituirá a independência do Judiciário, devolverá poder ao Parlamento e abolirá a lei contra insultos ao presidente. A oposição também promete acabar com a política de Erdogan de destituir da função prefeitos eleitos e compensar os políticos que foram destituídos injustamente após o golpe de Estado. A oposição afirma, também, que perseguirá autoridades corruptas, incluindo indivíduos suspeitos de manipular índices inflacionários e conceder contratos lucrativos para amigos do governo.

Apoio sublime

Um dos prováveis beneficiários de tais políticas seria Selahattin Demirtas, ex-líder do HDP que está preso. Desde o rompimento das negociações com o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), um grupo insurgente curdo, em 2015, o AK tornou-se cada vez mais hostil à minoria curda da Turquia, que constitui de 15% a 20% da população do país. Desde 2018, o AK tem governado com o apoio do Partido do Movimento Nacionalista (MHP), que se opõe ferozmente a qualquer concessão aos curdos.

A aliança de oposição também contém uma legenda nacionalista, o Partido Bom, formado após uma cisão no MHP. Seu manifesto, portanto, apresenta poucas concessões claras ao sentimento curdo. Mas enquanto Erdogan rejeita os partidos políticos curdos qualificando-os como fachada para os discursos do PKK, Kilicdaroglu critica Erdogan por caricaturar todos os curdos como extremistas. Simplesmente ao restaurar o estado de direito, a oposição facilitaria muito a coisa para os ativistas curdos. O HDP apoiou formalmente Kilicdaroglu. Apesar de sua eleição não resolver todas as aflições curdas, Kilicdaroglu aliviaria marcadamente as tensões.

Em relação à política externa, governo e oposição também diferem dramaticamente, pelo menos no tom. O desprezo de Erdogan por liberdades civis e seu tom estridentemente nacionalista dificultam as relações com o Ocidente, apesar de um esforço de reaproximação em ambos os lados. Erdogan bloqueou a candidatura da Suécia para adesão à Otan argumentando que o país abriga terroristas curdos. E seu governo depende de Putin para todo tipo de ajuda econômica, entre importações de gás barato, empréstimos e a consultoria para a construção da usina nuclear que Erdogan inaugurou recentemente.

Kemal Kilicdaroglu, candidato à presidência da Turquia, participa de comício em Kocaeli  Foto: YASIN AKGUL / AFP

Entrada da Suécia na Otan

Um assessor de Kilicdaroglu afirma que a Suécia poderia aderir à Otan em um mês se seu chefe vencer. A oposição promete melhorar as relações também com a União Europeia — apesar disso depender tanto da Europa superar seus temores de imigração de turcos quanto da Turquia melhorar seu histórico de respeito aos direitos humanos. A oposição é quase tão cética quanto Erdogan a respeito de um apoio irrestrito à Ucrânia, argumentando que a guerra só poderá acabar por meio de negociação. A Turquia, em suma, ainda verá a si mesma como potência regional merecedora de certa deferência caso Kilicdaroglu vire presidente, mas deverá expressar menos irritações e belicosidades.

Todas essas mudanças, porém, só serão possíveis se a oposição vencer. A coalizão é heterogênea. O Partido Republicano do Povo (CHP), de Kilicdaroglu, aferra-se há décadas ao legado de estadismo secular do fundador da Turquia moderna, Kemal Ataturk, e se opunha a qualquer expressão pública de fé islâmica. A líder do Partido Bom, Meral Aksener, atuou brevemente como ministra do Interior nos anos 90, época que testemunhou os piores abusos de direitos humanos no sudeste curdo. Outros líderes proeminentes da oposição incluem o ex-primeiro-ministro de Erdogan, seu antigo czar da economia e um reconhecido islamista que poucos anos atrás argumentava que a Turquia deveria desfazer seus laços com a Europa em favor de uma união islâmica.

Essa convenção diversa deixou suas diferenças de lado gradualmente e moderou seus pontos de vista. Aksener requalificou o Partido Bom como uma legenda de centro-direita. Kilicdaroglu começou a transformar o fóssil kemalista que era o CHP em um partido social-democrata moderno (o que ajudou a torná-lo mais palatável para os eleitores curdos). Por insistência de Kilicdaroglu, a aliança de oposição redigiu um manifesto de 200 páginas, depois de meses de negociações. E também aprovou Kilicdaroglu como candidato comum à presidência, apesar de inquietações a respeito de sua falta de carisma.

A oposição é certamente capaz de vencer as eleições. Quatro anos atrás, em parte graças ao voto dos curdos, seus candidatos a cargos majoritários impingiram uma derrota dolorosa a Erdogan, derrotando o AK em quatro das cinco maiores cidades da Turquia. A pesquisa mais recente sugere disputas apertadas para o Parlamento e a presidência.

Para vencer a eleição presidencial no primeiro turno, um candidato tem de conquistar mais de 50% dos votos. Com outros dois candidatos na disputa além dos senhores Erdogan e Kilicdaroglu, isso é improvável. Portanto, a eleição deverá ter segundo turno, em 28 de maio.

Alguns apoiadores da oposição temem que Erdogan se recuse a entregar o poder caso perca. “Meu povo não entregará o país para um presidente apoiado pelo (PKK)”, trovejou ele em 1.º de maio. Poucos dias antes, o ministro do Interior alertou sobre “uma tentativa de golpe político apoiada pelo Ocidente” no dia da eleição.

Essa retórica gera preocupações a respeito da possibilidade de Erdogan, talvez atendendo a um apelo dos membros de seu alto-escalão, subverter a eleição ou contestar seus resultados, especialmente no advento de uma derrota por pouca margem. Afinal, o AK já tentou isso nas eleições majoritárias mais recentes em Istambul, persuadindo o Judiciário a ordenar uma nova votação. O AK perdeu novamente — e por margem maior. Três anos depois, o candidato vitorioso foi condenado por insultar autoridades do governo.

Os políticos da oposição, contudo, descartam tais preocupações, afirmando que confiam na integridade da eleição e que Erdogan não ousaria contestar a vontade do povo, da qual sua legitimidade depende. “Ele pode tentar qualquer coisa”, afirma Kilicdaroglu. “Não importa o que ele fará, esta nação já tomou sua decisão”. Se Kilicdaroglu estiver correto, esta eleição será um divisor de águas para a Turquia e o mundo. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

Ele foi preso e impedido de assumir cargos públicos, mas conseguiu reverter o banimento e veio a dominar a política turca. Venceu cinco eleições parlamentares, duas eleições presidenciais e três referendos. Até enfrentou e impediu um golpe militar. Mas em 14 de maio, o poder de Recep Tayyip Erdogan sobre a Turquia poderá lhe escapar. As pesquisas sugerem que a oposição unida poderia retirar o controle do Parlamento do partido Justiça e Desenvolvimento (AK), de Erdogan, e seus aliados. Além disso, o próprio presidente parece estar sendo superado na disputa que ocorre no mesmo dia.

A derrota de Erdogan não seria apenas o fim de uma era, ela iniciaria um enorme rebuliço na Turquia, com ruidosas reverberações na região e em todo o mundo. A Turquia é, afinal, a 11.ª maior economia do planeta após ajuste em função do custo de vida, à frente de Canadá, Itália e Coreia do Sul. A Turquia é membro determinante e improvável da Otan, próxima das linhas de frente da guerra na Ucrânia e, sob Erdogan, desconcertantemente íntima do regime do presidente russo, Vladimir Putin. A Turquia encontra-se entre a Europa e o caos do Oriente Médio e desempenha um papel crucial na moderação do fluxo de refugiados para a União Europeia. É também uma das poucas democracias genuínas no mundo muçulmano, apesar de Erdogan vir minando as instituições turcas há cerca de uma década.

A importância do momento se espelha no drama shakespeareano do governo de Erdogan. Ele começou na política como um dissidente azarão, perseguido pelo establishment secular por fazer campanha pela suspensão das restrições às expressões de religiosidade na vida pública. Agora ele se tornou o perseguidor, prendendo oponentes sob acusações inconsistentes, intimidando meios de comunicação e destituindo autoridades eleitas. Na opinião de muitos observadores, a Turquia mal merece ser classificada como democracia.

A gestão econômica de Erdogan também completou um ciclo. A primeira década de seu governo testemunhou o fim da inflação e as rendas se elevarem às alturas. Na segunda, a inflação voltou e o PIB per capita em dólar caiu 15%

Erdogan deu uma virada similar em relação à grande minoria curda da Turquia, a qual ele cortejou durante seus primeiros anos no poder, mas cujos líderes políticos ele passou a qualificar como lacaios do terrorismo. E se desentendeu com os Estados Unidos e a União Europeia, que inicialmente o saudavam por ajudar a fortalecer a democracia turca, mas agora o criticam por enfraquecê-la. Em todos esses campos — preservar a democracia, consertar a economia, administrar questões sociais e conduzir política externa — a eleição oferece uma escolha diametral entre uma oposição reformista ou um Erdogan cada vez mais entrincheirado e intransigente.

Campanha eleitoral entra na reta final na Turquia e reeleição de Erdogan está ameaçada  Foto: Sergey Ponomarev/The New York Times

Palácios e lamentações

Diante dos fatos, é estranho que Erdogan e o partido AK estejam na disputa, dado o estado da economia. A lira perdeu 60% de seu valor em relação ao dólar nos dois anos recentes. O capital está fugindo do país: apenas cinco anos atrás, investidores estrangeiros eram donos de 64% das ações turcas, e de 25% dos títulos do governo, mas hoje possuem somente 29% das ações e 1% dos papéis da dívida pública. O atual déficit em conta-corrente da Turquia atingiu o recorde de US$ 10 bilhões em janeiro. A inflação descontrolada — que atingiu 86% ao ano no outono e permanece acima de 40% — empobreceu milhões de turcos. Além disso, a queda da inflação nos meses recentes ocorreu em parte porque o banco central controla a taxa de câmbio de forma insustentável. A instituição financeira está vendendo talvez até US$ 1 bilhão diariamente, grande parte disso vinda de empréstimos, para diminuir o ritmo de desvalorização da lira. Levando-se em conta os dólares que o BC turco deve para outros bancos centrais e para a maioria dos bancos comerciais da Turquia, percebe-se que a instituição tem reservas negativas em moeda estrangeira, quase -70 bilhões de dólares. Uma desvalorização maior da lira e, portanto, inflação mais alta, parece inevitável quando o banco central turco ficar sem dólares para vender.

Erdogan está tentando desviar as atenções disso tudo apontando para os muitos avanços que a Turquia conquistou em seu mandato. Somente ao longo do mês passado, ele inaugurou a primeira usina nuclear do país, celebrou a exploração de um grande depósito de gás natural no Mar Negro, dirigiu o primeiro carro elétrico fabricado na Turquia e revelou o primeiro porta-aviões do país. A mensagem que esses projetos têm objetivo de invocar é que Erdogan desafiou o Ocidente para transformar a Turquia numa potência mundial e que o melhor ainda está por vir. “Se você imagina por que ele ainda figura com mais de 40% (nas pesquisas)”, afirma o analista Galip Dalay, “uma razão é essa ideia e linguagem de grandeza”.

Não se trata de uma retórica vazia. Erdogan chegou ao poder em 2003, na esteira de uma espiral inflacionária e uma crise bancária que tinha esmagado a economia. Inicialmente, ele governou durante um crescimento estável, na economia como um todo e na classe média. Muitos turcos se beneficiaram enormemente e, como resultado, permanecem fiéis a Erdogan.

Rodopiando como um derviche

Erdogan tem usado sua influência sobre os meios de comunicação para persuadir apoiadores de que os problemas da economia turca têm a ver mais com conspirações estrangeiras para manter a Turquia inferior do que com equívocos de seu governo. Ele também é adepto de explorar divisões internas da sociedade turca. Muitos dos que se beneficiaram de suas políticas econômicas iniciais eram tipos conservadores, de classe média e provincianos que, havia muito, se sentiam ignorados ou desdenhados pela elite secular das metrópoles. Por anos, ele tem lhes dito que as liberdades que eles conquistaram durante seu mandato, incluindo o direito de usar o véu islâmico dentro de universidades e entidades públicas, dependem de sua permanência no poder. Ele caracteriza a eleição como uma disputa entre turcos nacionalistas orgulhosamente religiosos e uma turba de elitistas bebedores de uísque e ateus, separatistas curdos e pessoas degeneradas sexualmente, todos escravos da busca por valores importados do Ocidente.

Mas nada disso pode esconder o problema fundamental: Erdogan está sabotando a economia. Ele crê, através de sua lente distorcida, que taxas de juros altas alimentam inflação e baixar os custos dos empréstimos ajudará a estabilizar os preços. Ao aparelhar o banco central com bajuladores, ele impôs sua visão sobre o país, ocasionando uma inflação febril. E já que taxas de juros baixas tornam o crédito absurdamente barato (a principal taxa para empréstimos é mais de 35% menor do que o índice de inflação), ele tem de ser racionado por meio de regulações do governo. Críticos consideram isso uma receita para o clientelismo. “O banco central decide quem pode comprar dólares, a autoridade financeira decide quem se qualifica para obter empréstimos, e o governo decide quais dívidas são perdoadas ou proteladas”, reclama Kerim Rota, ex-banqueiro e vice-presidente do Futuro, um pequeno partido de oposição.

Os únicos remédios de Erdogan não passam de remendos. A descoberta recente de um grande depósito de gás natural no Mar Negro, afirma Numan Kurtulmus, vice-presidente do AK, cortará a conta de importações da Turquia, aliviando a pressão sobre a lira. Enquanto isso, desde o fim de 2021, o governo aumentou a pensão básica do Estado em cinco vezes, para 7,5 mil liras (US$ 385) e triplicou o salário mínimo, para 8,5 mil liras, aproximando-o da renda média. O governo promete aumentar o salário mínimo novamente em julho, depois da eleição.

A oposição, em contraste, promete um retorno à ortodoxia econômica. Ela é liderada por Kemal Kilicdaroglu, ex-autoridade do Ministério das Finanças e diretor da agência de pensões do Estado, cuja personalidade trivial oferece um contraponto marcante em relação à extroversão de Erdogan (enquanto Erdogan inaugura consecutivos megaprojetos, Kilicdaroglu grava vídeos em sua modesta cozinha, com o puxador do fogão envolvido em um paninho de cozinha e uma cebola solitária como objeto de cena para falar da inflação).

Kilicdaroglu afirma que restituirá a independência do banco central, o que inevitavelmente ocasionará elevações acentuadas nas taxas de juros. Isso, por sua vez, deverá diminuir o ritmo da economia e até ocasionar recessão. Enquanto isso, levará algum tempo para a inflação ser contida. Sob Erdogan, esse problema se complicou tanto que a oposição teve de revisar seu cronograma para fazer a inflação cair para um só dígito, de um ano para dois.

Políticos de oposição afirmam que gastos sociais aliviarão parte da dor, assim como o capital estrangeiro, que, esperam eles, inundará os mercados turcos de ações e obrigações assim que uma nova equipe econômica assumir e os juros começarem a subir. Investimentos diretos em firmas e fábricas vão demorar mais, mas também retornarão, argumenta a oposição. Afinal, a Turquia é a maior economia entre a Índia e a Alemanha e se beneficia de união aduaneira com a União Europeia, o que a torna uma base excelente para exportar para a Europa. Conversas com gerentes de fundos a caminho de Istambul anteriormente às eleições sugerem que tais esperanças não são infundadas. “Eu sei o que é necessário ser feito”, afirma Bilge Yilmaz, um possível ministro da Economia se a oposição vencer, “e adiar isso apenas aumentará a dor no longo prazo”.

Em termos de reformas institucionais, também, governo e oposição oferecem pautas diametralmente distintas. Erdogan centralizou fortemente o poder na presidência, que anteriormente era uma função amplamente cerimonial, ao abolir o cargo de primeiro-ministro e diminuir as atribuições do Parlamento. Ele também usou o poder do Estado de maneiras extremamente parciais e punitivas, endureceu os termos de uma lei contra insultos ao presidente e abusou de sua aplicação — o delito passou a ser punível com até 4 anos de prisão. Cerca de 200 mil investigações foram abertas para apurar a ocorrência desse crime durante seu mandato. Em um eco assombroso do banimento dos partidos e políticos islamistas anterior à sua ascensão ao poder, seus promotores de Justiça estão pressionando pela dissolução do Partido Democrático dos Povos (HDP), o principal partido curdo. Enquanto isso, Erdogan despojou da função vários prefeitos curdos eleitos legitimamente. Dezenas de milhares de seguidores de Fethullah Gulen, clérigo ao qual Erdogan se aliou politicamente no passado, foram destituídos de cargos no governo ou presos sob acusações inconsistentes, fundamentadas por evidências risíveis, após Gulen ser acusado de instigar uma tentativa de golpe em 2016.

Kilicdaroglu promete reverter grande parte disso. Ele afirma que restituirá a independência do Judiciário, devolverá poder ao Parlamento e abolirá a lei contra insultos ao presidente. A oposição também promete acabar com a política de Erdogan de destituir da função prefeitos eleitos e compensar os políticos que foram destituídos injustamente após o golpe de Estado. A oposição afirma, também, que perseguirá autoridades corruptas, incluindo indivíduos suspeitos de manipular índices inflacionários e conceder contratos lucrativos para amigos do governo.

Apoio sublime

Um dos prováveis beneficiários de tais políticas seria Selahattin Demirtas, ex-líder do HDP que está preso. Desde o rompimento das negociações com o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), um grupo insurgente curdo, em 2015, o AK tornou-se cada vez mais hostil à minoria curda da Turquia, que constitui de 15% a 20% da população do país. Desde 2018, o AK tem governado com o apoio do Partido do Movimento Nacionalista (MHP), que se opõe ferozmente a qualquer concessão aos curdos.

A aliança de oposição também contém uma legenda nacionalista, o Partido Bom, formado após uma cisão no MHP. Seu manifesto, portanto, apresenta poucas concessões claras ao sentimento curdo. Mas enquanto Erdogan rejeita os partidos políticos curdos qualificando-os como fachada para os discursos do PKK, Kilicdaroglu critica Erdogan por caricaturar todos os curdos como extremistas. Simplesmente ao restaurar o estado de direito, a oposição facilitaria muito a coisa para os ativistas curdos. O HDP apoiou formalmente Kilicdaroglu. Apesar de sua eleição não resolver todas as aflições curdas, Kilicdaroglu aliviaria marcadamente as tensões.

Em relação à política externa, governo e oposição também diferem dramaticamente, pelo menos no tom. O desprezo de Erdogan por liberdades civis e seu tom estridentemente nacionalista dificultam as relações com o Ocidente, apesar de um esforço de reaproximação em ambos os lados. Erdogan bloqueou a candidatura da Suécia para adesão à Otan argumentando que o país abriga terroristas curdos. E seu governo depende de Putin para todo tipo de ajuda econômica, entre importações de gás barato, empréstimos e a consultoria para a construção da usina nuclear que Erdogan inaugurou recentemente.

Kemal Kilicdaroglu, candidato à presidência da Turquia, participa de comício em Kocaeli  Foto: YASIN AKGUL / AFP

Entrada da Suécia na Otan

Um assessor de Kilicdaroglu afirma que a Suécia poderia aderir à Otan em um mês se seu chefe vencer. A oposição promete melhorar as relações também com a União Europeia — apesar disso depender tanto da Europa superar seus temores de imigração de turcos quanto da Turquia melhorar seu histórico de respeito aos direitos humanos. A oposição é quase tão cética quanto Erdogan a respeito de um apoio irrestrito à Ucrânia, argumentando que a guerra só poderá acabar por meio de negociação. A Turquia, em suma, ainda verá a si mesma como potência regional merecedora de certa deferência caso Kilicdaroglu vire presidente, mas deverá expressar menos irritações e belicosidades.

Todas essas mudanças, porém, só serão possíveis se a oposição vencer. A coalizão é heterogênea. O Partido Republicano do Povo (CHP), de Kilicdaroglu, aferra-se há décadas ao legado de estadismo secular do fundador da Turquia moderna, Kemal Ataturk, e se opunha a qualquer expressão pública de fé islâmica. A líder do Partido Bom, Meral Aksener, atuou brevemente como ministra do Interior nos anos 90, época que testemunhou os piores abusos de direitos humanos no sudeste curdo. Outros líderes proeminentes da oposição incluem o ex-primeiro-ministro de Erdogan, seu antigo czar da economia e um reconhecido islamista que poucos anos atrás argumentava que a Turquia deveria desfazer seus laços com a Europa em favor de uma união islâmica.

Essa convenção diversa deixou suas diferenças de lado gradualmente e moderou seus pontos de vista. Aksener requalificou o Partido Bom como uma legenda de centro-direita. Kilicdaroglu começou a transformar o fóssil kemalista que era o CHP em um partido social-democrata moderno (o que ajudou a torná-lo mais palatável para os eleitores curdos). Por insistência de Kilicdaroglu, a aliança de oposição redigiu um manifesto de 200 páginas, depois de meses de negociações. E também aprovou Kilicdaroglu como candidato comum à presidência, apesar de inquietações a respeito de sua falta de carisma.

A oposição é certamente capaz de vencer as eleições. Quatro anos atrás, em parte graças ao voto dos curdos, seus candidatos a cargos majoritários impingiram uma derrota dolorosa a Erdogan, derrotando o AK em quatro das cinco maiores cidades da Turquia. A pesquisa mais recente sugere disputas apertadas para o Parlamento e a presidência.

Para vencer a eleição presidencial no primeiro turno, um candidato tem de conquistar mais de 50% dos votos. Com outros dois candidatos na disputa além dos senhores Erdogan e Kilicdaroglu, isso é improvável. Portanto, a eleição deverá ter segundo turno, em 28 de maio.

Alguns apoiadores da oposição temem que Erdogan se recuse a entregar o poder caso perca. “Meu povo não entregará o país para um presidente apoiado pelo (PKK)”, trovejou ele em 1.º de maio. Poucos dias antes, o ministro do Interior alertou sobre “uma tentativa de golpe político apoiada pelo Ocidente” no dia da eleição.

Essa retórica gera preocupações a respeito da possibilidade de Erdogan, talvez atendendo a um apelo dos membros de seu alto-escalão, subverter a eleição ou contestar seus resultados, especialmente no advento de uma derrota por pouca margem. Afinal, o AK já tentou isso nas eleições majoritárias mais recentes em Istambul, persuadindo o Judiciário a ordenar uma nova votação. O AK perdeu novamente — e por margem maior. Três anos depois, o candidato vitorioso foi condenado por insultar autoridades do governo.

Os políticos da oposição, contudo, descartam tais preocupações, afirmando que confiam na integridade da eleição e que Erdogan não ousaria contestar a vontade do povo, da qual sua legitimidade depende. “Ele pode tentar qualquer coisa”, afirma Kilicdaroglu. “Não importa o que ele fará, esta nação já tomou sua decisão”. Se Kilicdaroglu estiver correto, esta eleição será um divisor de águas para a Turquia e o mundo. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

Ele foi preso e impedido de assumir cargos públicos, mas conseguiu reverter o banimento e veio a dominar a política turca. Venceu cinco eleições parlamentares, duas eleições presidenciais e três referendos. Até enfrentou e impediu um golpe militar. Mas em 14 de maio, o poder de Recep Tayyip Erdogan sobre a Turquia poderá lhe escapar. As pesquisas sugerem que a oposição unida poderia retirar o controle do Parlamento do partido Justiça e Desenvolvimento (AK), de Erdogan, e seus aliados. Além disso, o próprio presidente parece estar sendo superado na disputa que ocorre no mesmo dia.

A derrota de Erdogan não seria apenas o fim de uma era, ela iniciaria um enorme rebuliço na Turquia, com ruidosas reverberações na região e em todo o mundo. A Turquia é, afinal, a 11.ª maior economia do planeta após ajuste em função do custo de vida, à frente de Canadá, Itália e Coreia do Sul. A Turquia é membro determinante e improvável da Otan, próxima das linhas de frente da guerra na Ucrânia e, sob Erdogan, desconcertantemente íntima do regime do presidente russo, Vladimir Putin. A Turquia encontra-se entre a Europa e o caos do Oriente Médio e desempenha um papel crucial na moderação do fluxo de refugiados para a União Europeia. É também uma das poucas democracias genuínas no mundo muçulmano, apesar de Erdogan vir minando as instituições turcas há cerca de uma década.

A importância do momento se espelha no drama shakespeareano do governo de Erdogan. Ele começou na política como um dissidente azarão, perseguido pelo establishment secular por fazer campanha pela suspensão das restrições às expressões de religiosidade na vida pública. Agora ele se tornou o perseguidor, prendendo oponentes sob acusações inconsistentes, intimidando meios de comunicação e destituindo autoridades eleitas. Na opinião de muitos observadores, a Turquia mal merece ser classificada como democracia.

A gestão econômica de Erdogan também completou um ciclo. A primeira década de seu governo testemunhou o fim da inflação e as rendas se elevarem às alturas. Na segunda, a inflação voltou e o PIB per capita em dólar caiu 15%

Erdogan deu uma virada similar em relação à grande minoria curda da Turquia, a qual ele cortejou durante seus primeiros anos no poder, mas cujos líderes políticos ele passou a qualificar como lacaios do terrorismo. E se desentendeu com os Estados Unidos e a União Europeia, que inicialmente o saudavam por ajudar a fortalecer a democracia turca, mas agora o criticam por enfraquecê-la. Em todos esses campos — preservar a democracia, consertar a economia, administrar questões sociais e conduzir política externa — a eleição oferece uma escolha diametral entre uma oposição reformista ou um Erdogan cada vez mais entrincheirado e intransigente.

Campanha eleitoral entra na reta final na Turquia e reeleição de Erdogan está ameaçada  Foto: Sergey Ponomarev/The New York Times

Palácios e lamentações

Diante dos fatos, é estranho que Erdogan e o partido AK estejam na disputa, dado o estado da economia. A lira perdeu 60% de seu valor em relação ao dólar nos dois anos recentes. O capital está fugindo do país: apenas cinco anos atrás, investidores estrangeiros eram donos de 64% das ações turcas, e de 25% dos títulos do governo, mas hoje possuem somente 29% das ações e 1% dos papéis da dívida pública. O atual déficit em conta-corrente da Turquia atingiu o recorde de US$ 10 bilhões em janeiro. A inflação descontrolada — que atingiu 86% ao ano no outono e permanece acima de 40% — empobreceu milhões de turcos. Além disso, a queda da inflação nos meses recentes ocorreu em parte porque o banco central controla a taxa de câmbio de forma insustentável. A instituição financeira está vendendo talvez até US$ 1 bilhão diariamente, grande parte disso vinda de empréstimos, para diminuir o ritmo de desvalorização da lira. Levando-se em conta os dólares que o BC turco deve para outros bancos centrais e para a maioria dos bancos comerciais da Turquia, percebe-se que a instituição tem reservas negativas em moeda estrangeira, quase -70 bilhões de dólares. Uma desvalorização maior da lira e, portanto, inflação mais alta, parece inevitável quando o banco central turco ficar sem dólares para vender.

Erdogan está tentando desviar as atenções disso tudo apontando para os muitos avanços que a Turquia conquistou em seu mandato. Somente ao longo do mês passado, ele inaugurou a primeira usina nuclear do país, celebrou a exploração de um grande depósito de gás natural no Mar Negro, dirigiu o primeiro carro elétrico fabricado na Turquia e revelou o primeiro porta-aviões do país. A mensagem que esses projetos têm objetivo de invocar é que Erdogan desafiou o Ocidente para transformar a Turquia numa potência mundial e que o melhor ainda está por vir. “Se você imagina por que ele ainda figura com mais de 40% (nas pesquisas)”, afirma o analista Galip Dalay, “uma razão é essa ideia e linguagem de grandeza”.

Não se trata de uma retórica vazia. Erdogan chegou ao poder em 2003, na esteira de uma espiral inflacionária e uma crise bancária que tinha esmagado a economia. Inicialmente, ele governou durante um crescimento estável, na economia como um todo e na classe média. Muitos turcos se beneficiaram enormemente e, como resultado, permanecem fiéis a Erdogan.

Rodopiando como um derviche

Erdogan tem usado sua influência sobre os meios de comunicação para persuadir apoiadores de que os problemas da economia turca têm a ver mais com conspirações estrangeiras para manter a Turquia inferior do que com equívocos de seu governo. Ele também é adepto de explorar divisões internas da sociedade turca. Muitos dos que se beneficiaram de suas políticas econômicas iniciais eram tipos conservadores, de classe média e provincianos que, havia muito, se sentiam ignorados ou desdenhados pela elite secular das metrópoles. Por anos, ele tem lhes dito que as liberdades que eles conquistaram durante seu mandato, incluindo o direito de usar o véu islâmico dentro de universidades e entidades públicas, dependem de sua permanência no poder. Ele caracteriza a eleição como uma disputa entre turcos nacionalistas orgulhosamente religiosos e uma turba de elitistas bebedores de uísque e ateus, separatistas curdos e pessoas degeneradas sexualmente, todos escravos da busca por valores importados do Ocidente.

Mas nada disso pode esconder o problema fundamental: Erdogan está sabotando a economia. Ele crê, através de sua lente distorcida, que taxas de juros altas alimentam inflação e baixar os custos dos empréstimos ajudará a estabilizar os preços. Ao aparelhar o banco central com bajuladores, ele impôs sua visão sobre o país, ocasionando uma inflação febril. E já que taxas de juros baixas tornam o crédito absurdamente barato (a principal taxa para empréstimos é mais de 35% menor do que o índice de inflação), ele tem de ser racionado por meio de regulações do governo. Críticos consideram isso uma receita para o clientelismo. “O banco central decide quem pode comprar dólares, a autoridade financeira decide quem se qualifica para obter empréstimos, e o governo decide quais dívidas são perdoadas ou proteladas”, reclama Kerim Rota, ex-banqueiro e vice-presidente do Futuro, um pequeno partido de oposição.

Os únicos remédios de Erdogan não passam de remendos. A descoberta recente de um grande depósito de gás natural no Mar Negro, afirma Numan Kurtulmus, vice-presidente do AK, cortará a conta de importações da Turquia, aliviando a pressão sobre a lira. Enquanto isso, desde o fim de 2021, o governo aumentou a pensão básica do Estado em cinco vezes, para 7,5 mil liras (US$ 385) e triplicou o salário mínimo, para 8,5 mil liras, aproximando-o da renda média. O governo promete aumentar o salário mínimo novamente em julho, depois da eleição.

A oposição, em contraste, promete um retorno à ortodoxia econômica. Ela é liderada por Kemal Kilicdaroglu, ex-autoridade do Ministério das Finanças e diretor da agência de pensões do Estado, cuja personalidade trivial oferece um contraponto marcante em relação à extroversão de Erdogan (enquanto Erdogan inaugura consecutivos megaprojetos, Kilicdaroglu grava vídeos em sua modesta cozinha, com o puxador do fogão envolvido em um paninho de cozinha e uma cebola solitária como objeto de cena para falar da inflação).

Kilicdaroglu afirma que restituirá a independência do banco central, o que inevitavelmente ocasionará elevações acentuadas nas taxas de juros. Isso, por sua vez, deverá diminuir o ritmo da economia e até ocasionar recessão. Enquanto isso, levará algum tempo para a inflação ser contida. Sob Erdogan, esse problema se complicou tanto que a oposição teve de revisar seu cronograma para fazer a inflação cair para um só dígito, de um ano para dois.

Políticos de oposição afirmam que gastos sociais aliviarão parte da dor, assim como o capital estrangeiro, que, esperam eles, inundará os mercados turcos de ações e obrigações assim que uma nova equipe econômica assumir e os juros começarem a subir. Investimentos diretos em firmas e fábricas vão demorar mais, mas também retornarão, argumenta a oposição. Afinal, a Turquia é a maior economia entre a Índia e a Alemanha e se beneficia de união aduaneira com a União Europeia, o que a torna uma base excelente para exportar para a Europa. Conversas com gerentes de fundos a caminho de Istambul anteriormente às eleições sugerem que tais esperanças não são infundadas. “Eu sei o que é necessário ser feito”, afirma Bilge Yilmaz, um possível ministro da Economia se a oposição vencer, “e adiar isso apenas aumentará a dor no longo prazo”.

Em termos de reformas institucionais, também, governo e oposição oferecem pautas diametralmente distintas. Erdogan centralizou fortemente o poder na presidência, que anteriormente era uma função amplamente cerimonial, ao abolir o cargo de primeiro-ministro e diminuir as atribuições do Parlamento. Ele também usou o poder do Estado de maneiras extremamente parciais e punitivas, endureceu os termos de uma lei contra insultos ao presidente e abusou de sua aplicação — o delito passou a ser punível com até 4 anos de prisão. Cerca de 200 mil investigações foram abertas para apurar a ocorrência desse crime durante seu mandato. Em um eco assombroso do banimento dos partidos e políticos islamistas anterior à sua ascensão ao poder, seus promotores de Justiça estão pressionando pela dissolução do Partido Democrático dos Povos (HDP), o principal partido curdo. Enquanto isso, Erdogan despojou da função vários prefeitos curdos eleitos legitimamente. Dezenas de milhares de seguidores de Fethullah Gulen, clérigo ao qual Erdogan se aliou politicamente no passado, foram destituídos de cargos no governo ou presos sob acusações inconsistentes, fundamentadas por evidências risíveis, após Gulen ser acusado de instigar uma tentativa de golpe em 2016.

Kilicdaroglu promete reverter grande parte disso. Ele afirma que restituirá a independência do Judiciário, devolverá poder ao Parlamento e abolirá a lei contra insultos ao presidente. A oposição também promete acabar com a política de Erdogan de destituir da função prefeitos eleitos e compensar os políticos que foram destituídos injustamente após o golpe de Estado. A oposição afirma, também, que perseguirá autoridades corruptas, incluindo indivíduos suspeitos de manipular índices inflacionários e conceder contratos lucrativos para amigos do governo.

Apoio sublime

Um dos prováveis beneficiários de tais políticas seria Selahattin Demirtas, ex-líder do HDP que está preso. Desde o rompimento das negociações com o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), um grupo insurgente curdo, em 2015, o AK tornou-se cada vez mais hostil à minoria curda da Turquia, que constitui de 15% a 20% da população do país. Desde 2018, o AK tem governado com o apoio do Partido do Movimento Nacionalista (MHP), que se opõe ferozmente a qualquer concessão aos curdos.

A aliança de oposição também contém uma legenda nacionalista, o Partido Bom, formado após uma cisão no MHP. Seu manifesto, portanto, apresenta poucas concessões claras ao sentimento curdo. Mas enquanto Erdogan rejeita os partidos políticos curdos qualificando-os como fachada para os discursos do PKK, Kilicdaroglu critica Erdogan por caricaturar todos os curdos como extremistas. Simplesmente ao restaurar o estado de direito, a oposição facilitaria muito a coisa para os ativistas curdos. O HDP apoiou formalmente Kilicdaroglu. Apesar de sua eleição não resolver todas as aflições curdas, Kilicdaroglu aliviaria marcadamente as tensões.

Em relação à política externa, governo e oposição também diferem dramaticamente, pelo menos no tom. O desprezo de Erdogan por liberdades civis e seu tom estridentemente nacionalista dificultam as relações com o Ocidente, apesar de um esforço de reaproximação em ambos os lados. Erdogan bloqueou a candidatura da Suécia para adesão à Otan argumentando que o país abriga terroristas curdos. E seu governo depende de Putin para todo tipo de ajuda econômica, entre importações de gás barato, empréstimos e a consultoria para a construção da usina nuclear que Erdogan inaugurou recentemente.

Kemal Kilicdaroglu, candidato à presidência da Turquia, participa de comício em Kocaeli  Foto: YASIN AKGUL / AFP

Entrada da Suécia na Otan

Um assessor de Kilicdaroglu afirma que a Suécia poderia aderir à Otan em um mês se seu chefe vencer. A oposição promete melhorar as relações também com a União Europeia — apesar disso depender tanto da Europa superar seus temores de imigração de turcos quanto da Turquia melhorar seu histórico de respeito aos direitos humanos. A oposição é quase tão cética quanto Erdogan a respeito de um apoio irrestrito à Ucrânia, argumentando que a guerra só poderá acabar por meio de negociação. A Turquia, em suma, ainda verá a si mesma como potência regional merecedora de certa deferência caso Kilicdaroglu vire presidente, mas deverá expressar menos irritações e belicosidades.

Todas essas mudanças, porém, só serão possíveis se a oposição vencer. A coalizão é heterogênea. O Partido Republicano do Povo (CHP), de Kilicdaroglu, aferra-se há décadas ao legado de estadismo secular do fundador da Turquia moderna, Kemal Ataturk, e se opunha a qualquer expressão pública de fé islâmica. A líder do Partido Bom, Meral Aksener, atuou brevemente como ministra do Interior nos anos 90, época que testemunhou os piores abusos de direitos humanos no sudeste curdo. Outros líderes proeminentes da oposição incluem o ex-primeiro-ministro de Erdogan, seu antigo czar da economia e um reconhecido islamista que poucos anos atrás argumentava que a Turquia deveria desfazer seus laços com a Europa em favor de uma união islâmica.

Essa convenção diversa deixou suas diferenças de lado gradualmente e moderou seus pontos de vista. Aksener requalificou o Partido Bom como uma legenda de centro-direita. Kilicdaroglu começou a transformar o fóssil kemalista que era o CHP em um partido social-democrata moderno (o que ajudou a torná-lo mais palatável para os eleitores curdos). Por insistência de Kilicdaroglu, a aliança de oposição redigiu um manifesto de 200 páginas, depois de meses de negociações. E também aprovou Kilicdaroglu como candidato comum à presidência, apesar de inquietações a respeito de sua falta de carisma.

A oposição é certamente capaz de vencer as eleições. Quatro anos atrás, em parte graças ao voto dos curdos, seus candidatos a cargos majoritários impingiram uma derrota dolorosa a Erdogan, derrotando o AK em quatro das cinco maiores cidades da Turquia. A pesquisa mais recente sugere disputas apertadas para o Parlamento e a presidência.

Para vencer a eleição presidencial no primeiro turno, um candidato tem de conquistar mais de 50% dos votos. Com outros dois candidatos na disputa além dos senhores Erdogan e Kilicdaroglu, isso é improvável. Portanto, a eleição deverá ter segundo turno, em 28 de maio.

Alguns apoiadores da oposição temem que Erdogan se recuse a entregar o poder caso perca. “Meu povo não entregará o país para um presidente apoiado pelo (PKK)”, trovejou ele em 1.º de maio. Poucos dias antes, o ministro do Interior alertou sobre “uma tentativa de golpe político apoiada pelo Ocidente” no dia da eleição.

Essa retórica gera preocupações a respeito da possibilidade de Erdogan, talvez atendendo a um apelo dos membros de seu alto-escalão, subverter a eleição ou contestar seus resultados, especialmente no advento de uma derrota por pouca margem. Afinal, o AK já tentou isso nas eleições majoritárias mais recentes em Istambul, persuadindo o Judiciário a ordenar uma nova votação. O AK perdeu novamente — e por margem maior. Três anos depois, o candidato vitorioso foi condenado por insultar autoridades do governo.

Os políticos da oposição, contudo, descartam tais preocupações, afirmando que confiam na integridade da eleição e que Erdogan não ousaria contestar a vontade do povo, da qual sua legitimidade depende. “Ele pode tentar qualquer coisa”, afirma Kilicdaroglu. “Não importa o que ele fará, esta nação já tomou sua decisão”. Se Kilicdaroglu estiver correto, esta eleição será um divisor de águas para a Turquia e o mundo. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

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