“Estamos testemunhando uma crise humanitária devastadora se desdobrar na Ucrânia”, lamenta Peter Maurer, chefe do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV). “Os números de mortes continuam a aumentar, enquanto instalações médicas lutam para aguentar. Civis escondendo-se em abrigos subterrâneos nos dizem que eles fugiram de bombas caindo diretamente sobre suas cabeças.”
A terminologia de Maurer é vaga porque ninguém, incluindo o CICV, sabe exatamente quantos ucranianos estão nessa situação. Antes da invasão russa, aproximadamente 260 mil pessoas viviam na cidade de Sumi; 280 mil em Chernihiv; 430 mil em Mariupol; 475 mil em Mikolaiv e 1,4 milhão em Kharkiv.
Agora, todas essas cidades estão sitiadas por forças russas. Os invasores cercaram quase completamente a capital, Kiev, que já foi lar de 4 milhões de pessoas. Mesmo assumindo que grande parte da população dessas cidades já fugiu, o número de civis ucranianos pegos em meio ao fogo cruzado, sem maneira de escapar em segurança, está na casa dos milhões.
A cidade submetida ao cerco mais brutal é Mariupol, um porto na costa sul de Donetsk, que está na linha de frente desde 2014, quando separatistas apoiados pela Rússia tomaram partes da região.
Mariupol permaneceu sob controle do governo ucraniano, que trabalhou duro não apenas para consertar os estragos da guerra, mas também para melhorar a cidade, tornando mais óbvios os benefícios de permanecer parte da Ucrânia. Cerca de 100 mil fugitivos das decadentes cidades controladas pelas gangues de separatistas rumaram para Mariupol para tentar uma nova vida.
Isso torna as coisas ainda mais assustadoras o fato de Mariupol sofrer mais do que qualquer outra cidade com a natureza niilista do guerrear russo. Fotos de satélite de antes e depois dos ataques mostram uma cidade irreconhecível desde que as tropas a cercaram, em 2 de março, atacando com uma combinação de bombardeios e técnicas de sítio.
Os bombardeios logo destruíram a infraestrutura local. Por uma semana, os habitantes da cidade ficaram trancados sem água, comida, eletricidade, aquecimento ou comunicação com o exterior. O temor é que Mariupol possa mais uma vez se tornar um exemplo, enquanto a Rússia encontra novas maneiras de aterrorizar a Ucrânia.
A guerra de Putin
O prefeito da cidade, Vadim Boichenko, afirma que pelo menos 2.187 habitantes foram mortos, mas que é perigoso demais acessar muitas regiões para fornecer uma contagem precisa.
Outros sugeriram que o número de mortos pode ter ultrapassado 10 mil. Uma menina de 6 anos que morreu desidratada está entre as vítimas. Mulheres grávidas fugiram protegendo com o corpo suas barrigas durante o bombardeio a uma maternidade, em 9 de março, que matou 3 pessoas e feriu outras 17. Conforme as agências funerárias lotaram, apareceram vídeos de habitantes locais jogando sacos com cadáveres em valas comuns recém-escavadas. A Rússia continua a bombardear a cidade, afirma Boichenko, mesmo enquanto promete novos cessar-fogos diariamente.
Relatos do campo de batalha evocam agonias europeias do passado. Habitantes locais têm de derreter neve para conseguir água ou beber água de poças. Muitos fazem fogueiras ao ar livre para cozinhar e se aquecer. Uma moradora afirmou que um vizinho faminto ameaçou matar seu cachorro para comê-lo caso o cerco continue.
As lojas foram saqueadas nos primeiros dias e, de qualquer modo, se aventurar na rua para tentar conseguir algo para comer é arriscado por causa dos constantes bombardeios. Quem possui rádios a pilha percebeu que as transmissões das emissoras locais foram bloqueadas, apenas as estações de rádio dos separatistas pegam. As notícias foram escasseando ainda mais à medida que os dispositivos eletrônicos das pessoas ficaram sem bateria e não puderam ser recarregados.
O primeiro período prolongado de guerra sem comunicações para qualquer cidade ucraniana resultou num novo tormento para quem está fora: a falta de notícias. Olga, uma gerente de marketing ucraniana cujos pais estão presos na cidade, leu uma reportagem a respeito de um parque infantil próximo à sua casa que foi atacado, mas não sabe nada de sua família.
Logo ela parou de buscar informações. “Vasculhei o dia inteiro no início”, afirma ela, “mas então me dei conta de que isso estava me destruindo”. Olga descreve como as notícias se moveram a partir do prédio residencial de Mariupol onde seus país vivem: um corajoso inquilino foi de porta a porta coletando os números de telefone de parente dos vizinhos. Então ele saiu em busca de sinal e ligou para cada número da lista para dar as esperadas notícias de que seus amados estavam vivos.
Quando isso vai acabar? Um comboio de ônibus carregados de comida está presumivelmente se aproximando da cidade, mas tem sido parado com frequência e sofrido atrasos em postos de controle russos. Tirar as pessoas de lá está se provando ainda mais difícil. Por oito dias consecutivos, a Rússia concordou com cessar-fogos para permitir retiradas, mas depois rompeu.
O principal diplomata da Rússia na ONU, Vasili Nebenzia, alegou que um plano para “corredores humanitários” em direção noroeste a partir de Mariupol, até Zaporizha, teve de ser cancelado porque ucranianos “radicais” violaram os termos. Ele afirmou que interceptações de radiocomunicações entre ucranianos indicaram que eles estariam planejando “atirar nas pernas” dos refugiados quando eles tentassem passar.
Na verdade, são os russos que atiram quando refugiados tentam fugir, afirma Boichenko. Testemunhas que fugiram da cidade relatam que foram alvo de disparos dos soldados russos. A Rússia propôs um corredor alternativo, em direção leste, até o território russo, ignorando o fato de que poucos moradores de Mariupol estariam dispostos a buscar refúgio entre seus agressores.
A Rússia tem um histórico de usar cessar-fogos como ferramentas militares em vez de oportunidades de reduzir o sofrimento. As “pausas humanitárias” oferecidas pelo presidente russo, Vladimir Putin, na Síria eram com frequência interrompidos por bombardeios. Alguns corredores para retirada de civis funcionaram após muitos vaivéns: cerca de 13 mil pessoas puderam deixar mais de uma dezena de locais sob ataque em 12 de março, afirmou o presidente ucraniano, Volodmir Zelenski.
A partir de 11 de março, a Rússia exigiu a identificação de ônibus usados nas retiradas e dos agentes humanitários empregados nesse processo anteriormente a cada operação, o que não é fácil de fornecer sob bombardeio. Na verdade, a única retirada tranquila de civis foi a teatral remoção, realizada pela Rússia, de moradores das regiões controladas por separatistas para o território russo, enquanto o Kremlin previa um massacre genocida que jamais ocorreu.
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A aparentemente arbitrária variação na medida da cooperação russa parece em parte um esforço para solapar a moral dos ucranianos, em parte um esforço para produzir propaganda anti-Ucrânia e em parte um reflexo de diferentes cálculos de diferentes comandantes de tropas.
Mariupol é um porto importante economicamente situado numa região estratégica, entre a Rússia e a Crimeia, uma península que a Rússia anexou em 2014. Muitos têm especulado que Putin está tentando construir uma “ligação terrestre” entre os territórios.
Mas se for este o caso, é difícil perceber como destruir Mariupol e dar mais motivo para seus moradores odiarem a Rússia seja necessário ou útil. A cidade se situa em território reivindicado pela “República Popular” de Donetsk, um enclave cujas reivindicações territoriais foram endossadas por Putin pouco antes do início da guerra. “Essa escória não conseguiu encontrar nenhuma outra maneira de nos derrotar”, afirmou Pavlo Kirilenko, governador da parte de Donetsk que segue sob controle de Kiev, incluindo Mariupol.
Alguns analistas expressam esperança de que Rússia e Ucrânia possam concordar com uma trégua total nos próximos dias. Mas mesmo se o fizerem, poucos acreditam que a Rússia respeitará os termos, deixando soldados no território ucraniano e disparando foguetes quando lhe aprouver. Se os insinceros anúncios envolvendo períodos de cessar-fogo e a formação de corredores humanitários em Mariupol são algum tipo de presságio, o sofrimento da cidade também poderia sê-lo. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL