The Economist: Exército da Rússia está em estado lastimável, e não aprendeu com erros


Fiasco na Ucrânia poderia ser reflexo de má estratégia ou de uma força de batalha ruim

Por The Economist
Atualização:

O trabalho de organizar o maior exercício militar da Otan desde o fim da Guerra Fria manteve o almirante James Foggo, então comandante das forças navais americanas na Europa e na África, ocupado durante o verão de 2018. O Trident Juncture deveria reunir 50 mil soldados, 250 aeronaves e 65 navios de guerra no Ártico europeu em outubro. A movimentação logística de tamanha magnitude foi café-pequeno em comparação ao que a Rússia planejava fazer em setembro na Sibéria. Os exercícios Vostok deveriam ter sido os maiores organizados por Moscou desde os colossais exercícios Zapad, de 1981, gabou-se o ministro da Defesa russo, SergUei Shoigu - deveriam envolver 300 mil soldados, mil aeronaves e 80 navios de guerra.

Foi um feito enorme. “Para nós, foi um esforço enorme transportar 50 mil pessoas para o campo de batalha”, recordou-se o almirante Foggo. “Como eles tinham conseguido aquilo?”. A resposta, ele eventualmente descobriu, foi que eles não fizeram aquilo. Uma companhia de soldados (150, no máximo) foi contabilizada em Vostok como um batalhão ou até um regimento (de aproximadamente 1.000 homens). Navios de guerra foram registrados como esquadras inteiras. Essa trapaça pode ter sido um sinal de alerta de que nem tudo é o que parece nas Forças Armadas russas, antes mesmo delas terem atolado nos subúrbios de Kiev.

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“Não é um Exército profissional que combate por lá”, afirmou o almirante Foggo. “Eles parecem um bando, uma ralé indisciplinada.” Desde que a Rússia invadiu a Ucrânia, em 24 de fevereiro, as forças russas conseguiram capturar apenas uma cidade grande, Kherson, juntamente com ruínas de Mariupol e fatias do Donbas, a região industrial do leste ucraniano que os russos ocuparam parcialmente em 2014 e agora esperam conquistar totalmente. Esse resultado pífio custou 15 mil vidas de soldados russos, de acordo com uma recente estimativa britânica, excedendo em dois meses as perdas soviéticas em uma década de guerra no Afeganistão. A invasão foi claramente um fiasco. Mas em que medida reflete as verdadeiras capacidades militares da Rússia? Perguntam-se generais ocidentais estupefatos.

Na véspera da guerra, a força de invasão russa era considerada formidável. Agências de inteligência americanas estimavam que Kiev cairia em questão de dias. Algumas autoridades europeias pensaram que a capital ucraniana resistiria poucas semanas. Ninguém imaginou que a cidade receberia autoridades como Antony Blinken e Lloyd Austin, respectivamente os secretários americanos de Estado e da Defesa, dois meses após o início dos combates. Todos acreditaram que a Rússia faria na Ucrânia o que os EUA fizeram no Iraque em 1991: uma campanha de choque e pavor, de força avassaladora, que submeteria o país de maneira rápida e decisiva.

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Os líderes da França e da Alemanha mostraram apoio à Ucrânia no Portão de Brandemburgo. Em Paris, a Torre Eiffel também ganhou as cores da Ucrânia.

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Essa crença tinha como base a presunção de que a Rússia havia realizado o mesmo tipo de reforma militar, de cabo a rabo, que os EUA haviam feito durante o hiato de 18 anos entre sua derrota no Vietnã e sua vitória na primeira Guerra do Golfo. Em 2008, a guerra da Rússia contra a Geórgia, um país com menos de 4 milhões de pessoas, apesar de finalmente bem-sucedida, expôs vicissitudes do Exército russo. A Rússia usou em batalha equipamentos obsoletos, teve dificuldade para localizar a artilharia georgiana e se atrapalhou em seu comando e controle. Num estágio determinado, o Estado-Maior russo alegadamente ficou sem conseguir contato com o ministro da Defesa por dez horas. “É impossível não notar um lapso entre teoria e prática”, reconheceu um comandante militar russo na época. Para encerrar esse lapso, as Forças Armadas diminuíram em tamanho e ganharam um lustro.

Espadas de ambição

O gasto militar russo, quando mensurado de maneira apropriada — ou seja, em taxas de câmbio ajustadas em função do poder de compra —, quase dobrou entre 2008 e 2021, aumentando para mais de US$ 250 bilhões, cerca de três vezes os níveis do Reino Unido ou da França. Aproximadamente 600 aviões, 840 helicópteros e 2,3 mil drones novos foram adicionados ao arsenal entre 2010 e 2020. Novos tanques e mísseis foram ostentados em paradas militares em Moscou. A Rússia testou técnicas e equipamentos novos no Donbas, após sua primeira invasão à Ucrânia, em 2014, e em sua campanha para sustentar o ditador sírio, Bashar Assad, no ano seguinte.

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Um general europeu aposentado afirma que assistir esse Exército reformulado fracassar o recorda de uma visita à Alemanha Oriental e à Polônia depois do fim da Guerra Fria, quando ele viu o inimigo de perto. “Percebemos que o 3.º Exército de Choque era uma m...”, afirmou ele, referindo-se a uma renomada formação militar soviética com base em Magdeburgo. “Permitimo-nos novamente tropeçar na propaganda que eles colocam no nosso caminho.” Era sabido que o Exército russo tinha problemas, afirma Petr Pavel, general checo aposentado que presidiu o comitê militar da Otan entre 2015 e 2018, “mas a abrangência desses problemas surpreendeu muitos, incluindo a mim mesmo — pois achei que os russos tinham aprendido a lição”.

Corpo de um soldado russo é abandonado em vilarejo na região de Kharkiv, na Ucrânia Foto: Julia Kochetova / REUTERS

A interpretação benevolente é que o Exército russo não tem cambaleado na Ucrânia tanto por conta de suas próprias deficiências, mas em razão das ilusões de Putin. Sua insistência em planejar a guerra secretamente complicou o planejamento militar. A FSB, sucessora da KGB, disse-lhe que a Ucrânia estava repleta de agentes russos e cairia rapidamente. Isso provavelmente produziu a insensata decisão de iniciar a guerra enviando paraquedistas com armas leves para a tomada de um aeroporto na região de Kiev e colunas solitárias de blindados avançarem sobre a cidade de Kharkiv, o que causou baixas pesadas em unidades de elite.

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Ainda assim, com esse malogrado coup de main, o Exército escolheu então invadir o segundo maior país da Europa por várias direções, dividindo cerca de 120 grupos táticos de batalhão (BTGs) em contingentes de forças isoladas e ineficazes. A tática ruim, por sua vez, combinou-se a uma estratégia ruim: blindados, infantaria e artilharia combateram em campanhas desconectadas. Tanques que deveriam ter sido protegidos com infantaria terrestre vaguearam solitários e acabaram emboscados e capturados pelos ucranianos. A artilharia, principal esteio do Exército russo desde o período czarista, apesar de direcionada com ferocidade contra cidades como Kharkiv e Mariupol, não foi capaz de romper as linhas ucranianas em torno de Kiev.

Problemas em profusão

Nas semanas recentes, autoridades e especialistas debateram as causas do fracasso russo. Alguns estabeleceram comparações com o colapso do Exército francês em 1940. Mas esta analogia não cabe, afirma Christopher Dougherty, ex-estrategista do Pentágono. “A França fracassou porque seguia uma doutrina ruim”, afirma ele. “O fracasso da Rússia se deve em parte ao seu Exército não adotar nenhuma doutrina nem princípios básicos de guerra.”

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Falta de experiência é parte do problema. Conforme notou certa vez o historiador Michael Howard, a técnica que um oficial militar aprimora “é quase singular, no sentido de que ele somente terá de exercê-la uma vez em sua vida, se chegar a tanto. É como se um cirurgião praticasse a vida inteira em bonecos para realizar uma única operação”. Os EUA têm segurado o bisturi quase continuamente desde o fim da Guerra Fria; no Iraque, nos Bálcãs, no Afeganistão, na Líbia, na Síria etc. A Rússia não combate numa guerra dessa magnitude contra um Exército organizado desde que tomou a Manchúria do Japão, em 1945.

Estratégias das quais a Rússia conseguiu se valer em guerras menores, no Donbas e na Síria — como usar sensores eletrônicos em drones para localizar alvos para sua artilharia — provaram-se mais difíceis numa escala maior. E coisas que pareciam fáceis nas guerras dos EUA, como aniquilar defesas antiaéreas do inimigo, são na realidade bastante difíceis de fazer. A Força Aérea russa está realizando centenas de missões diariamente, mas ainda tem dificuldades para detectar e atingir alvos em movimento e depende muito de bombas não guiadas, ou “burras”, que só podem ser lançadas com precisão a partir baixas altitudes, o que expõe suas aeronaves ao fogo antiaéreo.

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Todos os Exércitos cometem erros. Alguns mais que outros. A característica distintiva dos bons Exércitos é que eles aprendem rapidamente com os próprios erros. Ao abandonar Kiev, colocar o foco no Donbas e instaurar um único general, Alexander Dvornikov, no comando de uma campanha cacofônica, a Rússia dá sinais tardios de adaptação. No início de abril, uma autoridade ocidental, ao ser questionada se a Rússia estava melhorando taticamente, observou que colunas de blindados ainda estavam sendo enviadas sem apoio e em filas únicas para atravessar território controlado pelos ucranianos — uma manobra suicida. Em 27 de abril, outra autoridade afirmou que as forças russas no Donbas pareciam indispostas ou incapazes de avançar sob chuva forte.

Em parte, as dificuldades da Rússia devem-se à heroica resistência ucraniana, apoiada pela torrente de armamentos e informações de inteligência dos ocidentais. “Mas o crédito quanto pela ruína das ilusões russas jaz, tanto quanto, num fenômeno bem conhecido pela sociologia militar”, escreve Eliot Cohen, da Universidade Johns Hopkins, “de que Exércitos, de modo geral, refletem as qualidades das sociedades das quais emergem”. O Estado russo, afirma Cohen, “assenta-se sobre corrupção, mentiras, ilegalidade e coerção”. Todos esses elementos foram revelados pelo Exército russo nesta guerra.

“Eles injetaram muito dinheiro em modernização”, afirma o general Pavel. “Mas grande parte desse dinheiro se perdeu no processo.” A corrupção certamente ajuda a explicar por que os veículos russos são equipados com pneus baratos de fabricação chinesa e por isso acabam atolados em lamaçais na Ucrânia. Também é capaz de explicar por que tantas unidades russas encontraram-se sem rádios criptografados e foram forçadas a substituir sua comunicação por mecanismos civis sem segurança ou até apelar para as redes de telefonia celular ucranianas. Isso, por sua vez, pode muito bem ter colaborado para as baixas entre os generais russos (a Ucrânia alega ter matado dez deles), já que as comunicações dos comandantes nas linhas de frente foram fáceis de interceptar.

Soldados ucranianos conversam em front na região de Zaporizhzhia Foto: Lynsey Addario/ NYT

Ainda assim, a corrupção não explica tudo. A Ucrânia também é corrupta, e não muito menos que a Rússia: os países se colocam respectivamente nas 122.ª e 136.ª posições no Índice de Percepção de Corrupção da ONG Transparência Internacional, um grupo de pressão. O que realmente distingue os dois países é o espírito de luta. Os soldados ucranianos estão lutando pela existência de sua nação. E muitos russos nem sabiam que entrariam em guerra até que receberam a ordem para atravessar a fronteira. Uma autoridade europeia de inteligência afirma que os conscritos russos — que Putin prometeu repetidamente que não iria mandar para a guerra — resistiram à pressão de assinar contratos que os transformaram em soldados profissionais; outros se negaram a servir absolutamente. A autoridade afirma que as unidades afetadas incluem a 106.ª Divisão de Guarda Aerotransportada e o 51.º Regimento de Paraquedistas, que são parte da suposta elite das Tropas Aerotransportadas da Federação Russa (VDV), e o 423.º Regimento de Fuzileiros Motorizados, que compõe uma importante divisão de tanques.

Dificuldades em massa

Soldados mal treinados e pouco motivados são um inconveniente em qualquer conflito; especialmente inadequados às complexidades da guerra moderna de armas combinadas, que requer tanques, infantaria, artilharia e poder aéreo trabalhando em sincronia. Tentar uma coordenação de tamanha magnitude na Ucrânia com adolescentes amuados, coagidos ao serviço, alimentados com rações de validade expirada e equipados com veículos com péssima manutenção foi o pico do otimismo.

Tamanha tarefa exige, no mínimo, liderança consistente. E isso também está em falta. Oficiais não comissionados — homens maduros alistados, que treinam e supervisionam os soldados — são a espinha dorsal das Forças Armadas da Otan. A Rússia não possui um quadro militar comparável. “Há coronéis demais e cabos de menos”, afirma uma autoridade europeia de defesa. O treinamento é rígido e antiquado, afirma ele, com obsessão na 2.ª Guerra e pouca atenção em conflitos mais atuais. Isso pode explicar por que a doutrina foi jogada pela janela. Manobras que pareceram fáceis em Vostok e outros exercícios conduzidos pelo Estado russo provaram-se mais difíceis de reproduzir sob fogo e longe de casa.

Se os oficiais russos estudaram a história militar de seu país, parecem ter depreendido as piores lições das guerras no Afeganistão, na Chechênia e na Síria. Durante sua ocupação do norte da Ucrânia, os soldados russos não apenas ingeriram grandes quantidades de bebidas alcoólicas e saquearam lares e comércios, mas também assassinaram grandes números de civis. Alguns deles foram recompensados por isso. Em 18 de abril, a 64.ª Brigada de Infantaria Motorizada, acusada de massacres de civis em Bucha, foi condecorada por Putin por seu “extremo heroísmo e coragem”, que lhe conferiu a honra de se tornar uma unidade de “Guarda”.

Crimes de guerra nem sempre são irracionais. Eles podem servir a propósitos políticos, como aterrorizar a população para sua submissão. Também não são incompatíveis com destreza militar: a Wehrmacht da Alemanha nazista era boa tanto em combater quanto em assassinar. Mas a brutalidade também pode ser contraproducente, inspirando o inimigo a lutar implacavelmente, em vez de se render e arriscar ser morto mesmo assim.

A selvageria e a confusão das forças russas na Ucrânia são consistentes com sua recente conduta na Síria. Seus bombardeios contra hospitais ucranianos ecoam os bombardeios contra instalações médicas na Síria. Ainda assim, oficiais militares israelenses que assistiram atentamente a Força Aérea russa atuar na Síria ficaram surpresos por suas atuais dificuldades em defesa antiaérea, localização de alvos e decolagens frequentes. Num determinado estágio, eles consideraram que o envolvimento de sírios em operações aéreas era a única explicação plausível para um nível de profissionalismo tão baixo.

No fim, os israelenses concluíram que falta aos russos treinamento, doutrina e experiência para aproveitar plenamente suas avançadas aeronaves. Pilotos militares israelenses ficaram impressionados, tanto em suas missões de combate quanto nos seus empregos cotidianos como pilotos comerciais, pela tosca abordagem russa em relação à guerra eletrônica, que envolveu bloquear sinais de GPS sobre grandes faixas do leste do Mediterrâneo, às vezes por semanas a fio. Quando a invasão russa à Ucrânia empacou, analistas israelenses perceberam que as forças terrestres da Rússia eram afligidas por muitos desses mesmos problemas.

Alguns amigos dos russos parecem ter a mesma percepção. Syed Ata Hasnain, um general indiano aposentado que comandou as forças da Índia na Cachemira, nota uma “incompetência da Rússia no campo de batalha”, fundamentada em “arrogância e relutância em seguir noções militares básicas já comprovadas”. Um painel de diplomatas e generais indianos aposentados afiliados à Vivekananda International Foundation, um instituto de análise nacionalista próximo ao governo indiano, discutiu recentemente a “visível e abjeta falta de preparo” da Rússia e a “severa incompetência logística” do país. O fato de a Índia ser a nação que mais importa armas russas conferiu um peso especial à conclusão: “a qualidade da tecnologia russa que anteriormente era considerada superlativa está sendo cada vez mais questionada” — apesar da Ucrânia, evidentemente, utilizar em grande parte esse mesmo equipamento.

Ucranianos desmantelam tanque russo nas proximidades de Kiev Foto: David Guttenfelder / NYT

Um processo similar de reavaliação ocorre neste momento nas Forças Armadas ocidentais. Um campo argumenta que a ameaça russa à Otan não é tão grande quanto temeu-se. “O Exército russo teve a reputação abalada e levará uma geração para se recuperar”, afirma uma análise recente de um governo da Otan. “Ele provou valer menos do que a soma de suas partes num espaço de batalha moderno e complexo.” Mas outra escola de pensamento alerta contra julgamentos precipitados. É cedo demais para tirar conclusões absolutas, alerta uma graduada autoridade da Otan, com a guerra ainda se desdobrando e ambos os lados se adaptando.

Se um dos erros da Rússia foi depreender uma falsa confiança de seu sucesso ao tomar a Crimeia da Ucrânia, em 2014, e em evitar a queda do regime de Assad, na Síria, em 2015, segundo este argumento há um risco similar de que os inimigos da Rússia infiram exageradamente das atuais desordens na Ucrânia. Michael Kofman, do CNA, um instituto de análise, reconhece que ele e outros especialistas “superestimamos o impacto das reformas…e subestimamos a podridão sob Shoigu”. Mas contexto é tudo, nota ele. Nos anos recentes, os cenários que têm preocupado estrategistas da Otan não são guerras na escala do atual conflito, mas operações mais modestas e realistas, com objetivos limitados e pequenas conquistas de território, como uma invasão russa em partes dos Estados bálticos ou uma tomada de ilhas como a norueguesa Svalbard.

Guerras como essas podem se desenrolar de maneiras muito diferentes que o conflito na Ucrânia. Começariam com um front mais estreito, envolveriam menos forças e colocariam menos pressão sobre logística, afirma Kofman. O Kremlin e o Estado-Maior russo não subestimariam a Otan necessariamente da maneira equivocada com a qual desprezaram o Exército ucraniano. E se o governo russo não estivesse tentando minimizar um futuro conflito, qualificando-o como nada além de uma “operação militar especial”, como faz na Ucrânia, poderia mobilizar muito mais forças e conscritos. Não há informação de que muitas das principais capacidades militares dos russos, como armamentos antissatélites e submarinos avançados, tenham sido testadas na Ucrânia de nenhuma maneira.

Geografia também é importante. Enquanto a logística russa “remete assustadoramente” ao antigo Exército soviético, afirma Ronald Ti, um especialista em logística militar que leciona no Baltic Defence College, na Estônia, sua dependência de ferrovias seria um problema menor em um ataque contra os Estados bálticos. “Uma operação ‘fato consumado’, em que eles extirpem uma fatia de território estoniano, está perfeitamente dentro de suas capacidades”, afirma Ti, “porque eles são capazes de alimentá-la com facilidade por terminais ferroviários”. (Se a Força Aérea russa, com sua falta de experiência e fragilidades agora expostas, seria capaz de proteger esses terminais dos ataques aéreos da Otan é outra questão.)

Lições em abundância

Kofman acredita que a pergunta sobre “quanto dessa guerra decorre de um Exército ruim, o que de importantes maneiras acho que claramente é o caso, e quanto disso é fruto de um plano verdadeiramente terrível” ainda não foi respondida. E ainda assim, é essencial respondê-la. Num artigo seminal, de 1995, o cientista político James Fearon, da Universidade Stanford, na Califórnia, argumentou que guerras caras e destrutivas que governos racionais prefeririam evitar por meio de negociação podem, apesar disso, ainda ocorrer, graças a erros de cálculo sobre capacidades do outro lado. Na teoria, um acordo de paz que evite a guerra refletiria o poder relativo de dois possíveis beligerantes. Mas as partes podem fracassar em alcançar tal barganha, porque esse poder relativo nem sempre é óbvio.

“Líderes sabem coisas a respeito de suas capacidades militares e disposição para a luta que outros Estados não sabem”, escreve Fearon, “e em situações de barganha, eles podem ter incentivos para deturpar tais informações para conseguir um acordo melhor”. Isso ajuda a explicar por que a Rússia inflou tão loucamente sua suposta destreza nos exercícios de Vostok. E isso pode funcionar. “Suspeito que muitos de nós nos deixamos levar pelas paradas do Dia da Vitória que nos mostraram todos os elementos escolhidos estrategicamente desse kit”, afirma o general europeu.

A batalha pelo Donbas não encerrará inteiramente este debate. Um Exército russo que prevalece numa guerra de desgaste por meio de seu poder de fogo superior e maior contingente poderia estar longe daquela força ágil e de alta tecnologia propagandeada ao longo da última década. É mais provável que os passos pesados e desajeitados das forças russas se exauriam muito antes de alcançar objetivos no sul e no leste da Ucrânia, sem mencionar outra tentativa de conquistar Kiev. Estrategistas militares de todo o mundo estarão assistindo de perto, para observar não apenas quão longe a Rússia chegará nas próximas semanas, mas também o que seu desempenho revelará sobre a resiliência, a adaptabilidade e a liderança de suas forças. Como uma faca enfiada num tronco caído, o progresso da campanha revelará a profundidade da podridão. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

© 2022 THE ECONOMIST NEWSPAPER LIMITED. DIREITOS RESERVADOS. PUBLICADO SOB LICENÇA. O TEXTO ORIGINAL EM INGLÊS ESTÁ EM WWW.ECONOMIST.COM

O trabalho de organizar o maior exercício militar da Otan desde o fim da Guerra Fria manteve o almirante James Foggo, então comandante das forças navais americanas na Europa e na África, ocupado durante o verão de 2018. O Trident Juncture deveria reunir 50 mil soldados, 250 aeronaves e 65 navios de guerra no Ártico europeu em outubro. A movimentação logística de tamanha magnitude foi café-pequeno em comparação ao que a Rússia planejava fazer em setembro na Sibéria. Os exercícios Vostok deveriam ter sido os maiores organizados por Moscou desde os colossais exercícios Zapad, de 1981, gabou-se o ministro da Defesa russo, SergUei Shoigu - deveriam envolver 300 mil soldados, mil aeronaves e 80 navios de guerra.

Foi um feito enorme. “Para nós, foi um esforço enorme transportar 50 mil pessoas para o campo de batalha”, recordou-se o almirante Foggo. “Como eles tinham conseguido aquilo?”. A resposta, ele eventualmente descobriu, foi que eles não fizeram aquilo. Uma companhia de soldados (150, no máximo) foi contabilizada em Vostok como um batalhão ou até um regimento (de aproximadamente 1.000 homens). Navios de guerra foram registrados como esquadras inteiras. Essa trapaça pode ter sido um sinal de alerta de que nem tudo é o que parece nas Forças Armadas russas, antes mesmo delas terem atolado nos subúrbios de Kiev.

“Não é um Exército profissional que combate por lá”, afirmou o almirante Foggo. “Eles parecem um bando, uma ralé indisciplinada.” Desde que a Rússia invadiu a Ucrânia, em 24 de fevereiro, as forças russas conseguiram capturar apenas uma cidade grande, Kherson, juntamente com ruínas de Mariupol e fatias do Donbas, a região industrial do leste ucraniano que os russos ocuparam parcialmente em 2014 e agora esperam conquistar totalmente. Esse resultado pífio custou 15 mil vidas de soldados russos, de acordo com uma recente estimativa britânica, excedendo em dois meses as perdas soviéticas em uma década de guerra no Afeganistão. A invasão foi claramente um fiasco. Mas em que medida reflete as verdadeiras capacidades militares da Rússia? Perguntam-se generais ocidentais estupefatos.

Na véspera da guerra, a força de invasão russa era considerada formidável. Agências de inteligência americanas estimavam que Kiev cairia em questão de dias. Algumas autoridades europeias pensaram que a capital ucraniana resistiria poucas semanas. Ninguém imaginou que a cidade receberia autoridades como Antony Blinken e Lloyd Austin, respectivamente os secretários americanos de Estado e da Defesa, dois meses após o início dos combates. Todos acreditaram que a Rússia faria na Ucrânia o que os EUA fizeram no Iraque em 1991: uma campanha de choque e pavor, de força avassaladora, que submeteria o país de maneira rápida e decisiva.

Seu navegador não suporta esse video.

Os líderes da França e da Alemanha mostraram apoio à Ucrânia no Portão de Brandemburgo. Em Paris, a Torre Eiffel também ganhou as cores da Ucrânia.

Essa crença tinha como base a presunção de que a Rússia havia realizado o mesmo tipo de reforma militar, de cabo a rabo, que os EUA haviam feito durante o hiato de 18 anos entre sua derrota no Vietnã e sua vitória na primeira Guerra do Golfo. Em 2008, a guerra da Rússia contra a Geórgia, um país com menos de 4 milhões de pessoas, apesar de finalmente bem-sucedida, expôs vicissitudes do Exército russo. A Rússia usou em batalha equipamentos obsoletos, teve dificuldade para localizar a artilharia georgiana e se atrapalhou em seu comando e controle. Num estágio determinado, o Estado-Maior russo alegadamente ficou sem conseguir contato com o ministro da Defesa por dez horas. “É impossível não notar um lapso entre teoria e prática”, reconheceu um comandante militar russo na época. Para encerrar esse lapso, as Forças Armadas diminuíram em tamanho e ganharam um lustro.

Espadas de ambição

O gasto militar russo, quando mensurado de maneira apropriada — ou seja, em taxas de câmbio ajustadas em função do poder de compra —, quase dobrou entre 2008 e 2021, aumentando para mais de US$ 250 bilhões, cerca de três vezes os níveis do Reino Unido ou da França. Aproximadamente 600 aviões, 840 helicópteros e 2,3 mil drones novos foram adicionados ao arsenal entre 2010 e 2020. Novos tanques e mísseis foram ostentados em paradas militares em Moscou. A Rússia testou técnicas e equipamentos novos no Donbas, após sua primeira invasão à Ucrânia, em 2014, e em sua campanha para sustentar o ditador sírio, Bashar Assad, no ano seguinte.

Um general europeu aposentado afirma que assistir esse Exército reformulado fracassar o recorda de uma visita à Alemanha Oriental e à Polônia depois do fim da Guerra Fria, quando ele viu o inimigo de perto. “Percebemos que o 3.º Exército de Choque era uma m...”, afirmou ele, referindo-se a uma renomada formação militar soviética com base em Magdeburgo. “Permitimo-nos novamente tropeçar na propaganda que eles colocam no nosso caminho.” Era sabido que o Exército russo tinha problemas, afirma Petr Pavel, general checo aposentado que presidiu o comitê militar da Otan entre 2015 e 2018, “mas a abrangência desses problemas surpreendeu muitos, incluindo a mim mesmo — pois achei que os russos tinham aprendido a lição”.

Corpo de um soldado russo é abandonado em vilarejo na região de Kharkiv, na Ucrânia Foto: Julia Kochetova / REUTERS

A interpretação benevolente é que o Exército russo não tem cambaleado na Ucrânia tanto por conta de suas próprias deficiências, mas em razão das ilusões de Putin. Sua insistência em planejar a guerra secretamente complicou o planejamento militar. A FSB, sucessora da KGB, disse-lhe que a Ucrânia estava repleta de agentes russos e cairia rapidamente. Isso provavelmente produziu a insensata decisão de iniciar a guerra enviando paraquedistas com armas leves para a tomada de um aeroporto na região de Kiev e colunas solitárias de blindados avançarem sobre a cidade de Kharkiv, o que causou baixas pesadas em unidades de elite.

Ainda assim, com esse malogrado coup de main, o Exército escolheu então invadir o segundo maior país da Europa por várias direções, dividindo cerca de 120 grupos táticos de batalhão (BTGs) em contingentes de forças isoladas e ineficazes. A tática ruim, por sua vez, combinou-se a uma estratégia ruim: blindados, infantaria e artilharia combateram em campanhas desconectadas. Tanques que deveriam ter sido protegidos com infantaria terrestre vaguearam solitários e acabaram emboscados e capturados pelos ucranianos. A artilharia, principal esteio do Exército russo desde o período czarista, apesar de direcionada com ferocidade contra cidades como Kharkiv e Mariupol, não foi capaz de romper as linhas ucranianas em torno de Kiev.

Problemas em profusão

Nas semanas recentes, autoridades e especialistas debateram as causas do fracasso russo. Alguns estabeleceram comparações com o colapso do Exército francês em 1940. Mas esta analogia não cabe, afirma Christopher Dougherty, ex-estrategista do Pentágono. “A França fracassou porque seguia uma doutrina ruim”, afirma ele. “O fracasso da Rússia se deve em parte ao seu Exército não adotar nenhuma doutrina nem princípios básicos de guerra.”

Falta de experiência é parte do problema. Conforme notou certa vez o historiador Michael Howard, a técnica que um oficial militar aprimora “é quase singular, no sentido de que ele somente terá de exercê-la uma vez em sua vida, se chegar a tanto. É como se um cirurgião praticasse a vida inteira em bonecos para realizar uma única operação”. Os EUA têm segurado o bisturi quase continuamente desde o fim da Guerra Fria; no Iraque, nos Bálcãs, no Afeganistão, na Líbia, na Síria etc. A Rússia não combate numa guerra dessa magnitude contra um Exército organizado desde que tomou a Manchúria do Japão, em 1945.

Estratégias das quais a Rússia conseguiu se valer em guerras menores, no Donbas e na Síria — como usar sensores eletrônicos em drones para localizar alvos para sua artilharia — provaram-se mais difíceis numa escala maior. E coisas que pareciam fáceis nas guerras dos EUA, como aniquilar defesas antiaéreas do inimigo, são na realidade bastante difíceis de fazer. A Força Aérea russa está realizando centenas de missões diariamente, mas ainda tem dificuldades para detectar e atingir alvos em movimento e depende muito de bombas não guiadas, ou “burras”, que só podem ser lançadas com precisão a partir baixas altitudes, o que expõe suas aeronaves ao fogo antiaéreo.

Todos os Exércitos cometem erros. Alguns mais que outros. A característica distintiva dos bons Exércitos é que eles aprendem rapidamente com os próprios erros. Ao abandonar Kiev, colocar o foco no Donbas e instaurar um único general, Alexander Dvornikov, no comando de uma campanha cacofônica, a Rússia dá sinais tardios de adaptação. No início de abril, uma autoridade ocidental, ao ser questionada se a Rússia estava melhorando taticamente, observou que colunas de blindados ainda estavam sendo enviadas sem apoio e em filas únicas para atravessar território controlado pelos ucranianos — uma manobra suicida. Em 27 de abril, outra autoridade afirmou que as forças russas no Donbas pareciam indispostas ou incapazes de avançar sob chuva forte.

Em parte, as dificuldades da Rússia devem-se à heroica resistência ucraniana, apoiada pela torrente de armamentos e informações de inteligência dos ocidentais. “Mas o crédito quanto pela ruína das ilusões russas jaz, tanto quanto, num fenômeno bem conhecido pela sociologia militar”, escreve Eliot Cohen, da Universidade Johns Hopkins, “de que Exércitos, de modo geral, refletem as qualidades das sociedades das quais emergem”. O Estado russo, afirma Cohen, “assenta-se sobre corrupção, mentiras, ilegalidade e coerção”. Todos esses elementos foram revelados pelo Exército russo nesta guerra.

“Eles injetaram muito dinheiro em modernização”, afirma o general Pavel. “Mas grande parte desse dinheiro se perdeu no processo.” A corrupção certamente ajuda a explicar por que os veículos russos são equipados com pneus baratos de fabricação chinesa e por isso acabam atolados em lamaçais na Ucrânia. Também é capaz de explicar por que tantas unidades russas encontraram-se sem rádios criptografados e foram forçadas a substituir sua comunicação por mecanismos civis sem segurança ou até apelar para as redes de telefonia celular ucranianas. Isso, por sua vez, pode muito bem ter colaborado para as baixas entre os generais russos (a Ucrânia alega ter matado dez deles), já que as comunicações dos comandantes nas linhas de frente foram fáceis de interceptar.

Soldados ucranianos conversam em front na região de Zaporizhzhia Foto: Lynsey Addario/ NYT

Ainda assim, a corrupção não explica tudo. A Ucrânia também é corrupta, e não muito menos que a Rússia: os países se colocam respectivamente nas 122.ª e 136.ª posições no Índice de Percepção de Corrupção da ONG Transparência Internacional, um grupo de pressão. O que realmente distingue os dois países é o espírito de luta. Os soldados ucranianos estão lutando pela existência de sua nação. E muitos russos nem sabiam que entrariam em guerra até que receberam a ordem para atravessar a fronteira. Uma autoridade europeia de inteligência afirma que os conscritos russos — que Putin prometeu repetidamente que não iria mandar para a guerra — resistiram à pressão de assinar contratos que os transformaram em soldados profissionais; outros se negaram a servir absolutamente. A autoridade afirma que as unidades afetadas incluem a 106.ª Divisão de Guarda Aerotransportada e o 51.º Regimento de Paraquedistas, que são parte da suposta elite das Tropas Aerotransportadas da Federação Russa (VDV), e o 423.º Regimento de Fuzileiros Motorizados, que compõe uma importante divisão de tanques.

Dificuldades em massa

Soldados mal treinados e pouco motivados são um inconveniente em qualquer conflito; especialmente inadequados às complexidades da guerra moderna de armas combinadas, que requer tanques, infantaria, artilharia e poder aéreo trabalhando em sincronia. Tentar uma coordenação de tamanha magnitude na Ucrânia com adolescentes amuados, coagidos ao serviço, alimentados com rações de validade expirada e equipados com veículos com péssima manutenção foi o pico do otimismo.

Tamanha tarefa exige, no mínimo, liderança consistente. E isso também está em falta. Oficiais não comissionados — homens maduros alistados, que treinam e supervisionam os soldados — são a espinha dorsal das Forças Armadas da Otan. A Rússia não possui um quadro militar comparável. “Há coronéis demais e cabos de menos”, afirma uma autoridade europeia de defesa. O treinamento é rígido e antiquado, afirma ele, com obsessão na 2.ª Guerra e pouca atenção em conflitos mais atuais. Isso pode explicar por que a doutrina foi jogada pela janela. Manobras que pareceram fáceis em Vostok e outros exercícios conduzidos pelo Estado russo provaram-se mais difíceis de reproduzir sob fogo e longe de casa.

Se os oficiais russos estudaram a história militar de seu país, parecem ter depreendido as piores lições das guerras no Afeganistão, na Chechênia e na Síria. Durante sua ocupação do norte da Ucrânia, os soldados russos não apenas ingeriram grandes quantidades de bebidas alcoólicas e saquearam lares e comércios, mas também assassinaram grandes números de civis. Alguns deles foram recompensados por isso. Em 18 de abril, a 64.ª Brigada de Infantaria Motorizada, acusada de massacres de civis em Bucha, foi condecorada por Putin por seu “extremo heroísmo e coragem”, que lhe conferiu a honra de se tornar uma unidade de “Guarda”.

Crimes de guerra nem sempre são irracionais. Eles podem servir a propósitos políticos, como aterrorizar a população para sua submissão. Também não são incompatíveis com destreza militar: a Wehrmacht da Alemanha nazista era boa tanto em combater quanto em assassinar. Mas a brutalidade também pode ser contraproducente, inspirando o inimigo a lutar implacavelmente, em vez de se render e arriscar ser morto mesmo assim.

A selvageria e a confusão das forças russas na Ucrânia são consistentes com sua recente conduta na Síria. Seus bombardeios contra hospitais ucranianos ecoam os bombardeios contra instalações médicas na Síria. Ainda assim, oficiais militares israelenses que assistiram atentamente a Força Aérea russa atuar na Síria ficaram surpresos por suas atuais dificuldades em defesa antiaérea, localização de alvos e decolagens frequentes. Num determinado estágio, eles consideraram que o envolvimento de sírios em operações aéreas era a única explicação plausível para um nível de profissionalismo tão baixo.

No fim, os israelenses concluíram que falta aos russos treinamento, doutrina e experiência para aproveitar plenamente suas avançadas aeronaves. Pilotos militares israelenses ficaram impressionados, tanto em suas missões de combate quanto nos seus empregos cotidianos como pilotos comerciais, pela tosca abordagem russa em relação à guerra eletrônica, que envolveu bloquear sinais de GPS sobre grandes faixas do leste do Mediterrâneo, às vezes por semanas a fio. Quando a invasão russa à Ucrânia empacou, analistas israelenses perceberam que as forças terrestres da Rússia eram afligidas por muitos desses mesmos problemas.

Alguns amigos dos russos parecem ter a mesma percepção. Syed Ata Hasnain, um general indiano aposentado que comandou as forças da Índia na Cachemira, nota uma “incompetência da Rússia no campo de batalha”, fundamentada em “arrogância e relutância em seguir noções militares básicas já comprovadas”. Um painel de diplomatas e generais indianos aposentados afiliados à Vivekananda International Foundation, um instituto de análise nacionalista próximo ao governo indiano, discutiu recentemente a “visível e abjeta falta de preparo” da Rússia e a “severa incompetência logística” do país. O fato de a Índia ser a nação que mais importa armas russas conferiu um peso especial à conclusão: “a qualidade da tecnologia russa que anteriormente era considerada superlativa está sendo cada vez mais questionada” — apesar da Ucrânia, evidentemente, utilizar em grande parte esse mesmo equipamento.

Ucranianos desmantelam tanque russo nas proximidades de Kiev Foto: David Guttenfelder / NYT

Um processo similar de reavaliação ocorre neste momento nas Forças Armadas ocidentais. Um campo argumenta que a ameaça russa à Otan não é tão grande quanto temeu-se. “O Exército russo teve a reputação abalada e levará uma geração para se recuperar”, afirma uma análise recente de um governo da Otan. “Ele provou valer menos do que a soma de suas partes num espaço de batalha moderno e complexo.” Mas outra escola de pensamento alerta contra julgamentos precipitados. É cedo demais para tirar conclusões absolutas, alerta uma graduada autoridade da Otan, com a guerra ainda se desdobrando e ambos os lados se adaptando.

Se um dos erros da Rússia foi depreender uma falsa confiança de seu sucesso ao tomar a Crimeia da Ucrânia, em 2014, e em evitar a queda do regime de Assad, na Síria, em 2015, segundo este argumento há um risco similar de que os inimigos da Rússia infiram exageradamente das atuais desordens na Ucrânia. Michael Kofman, do CNA, um instituto de análise, reconhece que ele e outros especialistas “superestimamos o impacto das reformas…e subestimamos a podridão sob Shoigu”. Mas contexto é tudo, nota ele. Nos anos recentes, os cenários que têm preocupado estrategistas da Otan não são guerras na escala do atual conflito, mas operações mais modestas e realistas, com objetivos limitados e pequenas conquistas de território, como uma invasão russa em partes dos Estados bálticos ou uma tomada de ilhas como a norueguesa Svalbard.

Guerras como essas podem se desenrolar de maneiras muito diferentes que o conflito na Ucrânia. Começariam com um front mais estreito, envolveriam menos forças e colocariam menos pressão sobre logística, afirma Kofman. O Kremlin e o Estado-Maior russo não subestimariam a Otan necessariamente da maneira equivocada com a qual desprezaram o Exército ucraniano. E se o governo russo não estivesse tentando minimizar um futuro conflito, qualificando-o como nada além de uma “operação militar especial”, como faz na Ucrânia, poderia mobilizar muito mais forças e conscritos. Não há informação de que muitas das principais capacidades militares dos russos, como armamentos antissatélites e submarinos avançados, tenham sido testadas na Ucrânia de nenhuma maneira.

Geografia também é importante. Enquanto a logística russa “remete assustadoramente” ao antigo Exército soviético, afirma Ronald Ti, um especialista em logística militar que leciona no Baltic Defence College, na Estônia, sua dependência de ferrovias seria um problema menor em um ataque contra os Estados bálticos. “Uma operação ‘fato consumado’, em que eles extirpem uma fatia de território estoniano, está perfeitamente dentro de suas capacidades”, afirma Ti, “porque eles são capazes de alimentá-la com facilidade por terminais ferroviários”. (Se a Força Aérea russa, com sua falta de experiência e fragilidades agora expostas, seria capaz de proteger esses terminais dos ataques aéreos da Otan é outra questão.)

Lições em abundância

Kofman acredita que a pergunta sobre “quanto dessa guerra decorre de um Exército ruim, o que de importantes maneiras acho que claramente é o caso, e quanto disso é fruto de um plano verdadeiramente terrível” ainda não foi respondida. E ainda assim, é essencial respondê-la. Num artigo seminal, de 1995, o cientista político James Fearon, da Universidade Stanford, na Califórnia, argumentou que guerras caras e destrutivas que governos racionais prefeririam evitar por meio de negociação podem, apesar disso, ainda ocorrer, graças a erros de cálculo sobre capacidades do outro lado. Na teoria, um acordo de paz que evite a guerra refletiria o poder relativo de dois possíveis beligerantes. Mas as partes podem fracassar em alcançar tal barganha, porque esse poder relativo nem sempre é óbvio.

“Líderes sabem coisas a respeito de suas capacidades militares e disposição para a luta que outros Estados não sabem”, escreve Fearon, “e em situações de barganha, eles podem ter incentivos para deturpar tais informações para conseguir um acordo melhor”. Isso ajuda a explicar por que a Rússia inflou tão loucamente sua suposta destreza nos exercícios de Vostok. E isso pode funcionar. “Suspeito que muitos de nós nos deixamos levar pelas paradas do Dia da Vitória que nos mostraram todos os elementos escolhidos estrategicamente desse kit”, afirma o general europeu.

A batalha pelo Donbas não encerrará inteiramente este debate. Um Exército russo que prevalece numa guerra de desgaste por meio de seu poder de fogo superior e maior contingente poderia estar longe daquela força ágil e de alta tecnologia propagandeada ao longo da última década. É mais provável que os passos pesados e desajeitados das forças russas se exauriam muito antes de alcançar objetivos no sul e no leste da Ucrânia, sem mencionar outra tentativa de conquistar Kiev. Estrategistas militares de todo o mundo estarão assistindo de perto, para observar não apenas quão longe a Rússia chegará nas próximas semanas, mas também o que seu desempenho revelará sobre a resiliência, a adaptabilidade e a liderança de suas forças. Como uma faca enfiada num tronco caído, o progresso da campanha revelará a profundidade da podridão. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

© 2022 THE ECONOMIST NEWSPAPER LIMITED. DIREITOS RESERVADOS. PUBLICADO SOB LICENÇA. O TEXTO ORIGINAL EM INGLÊS ESTÁ EM WWW.ECONOMIST.COM

O trabalho de organizar o maior exercício militar da Otan desde o fim da Guerra Fria manteve o almirante James Foggo, então comandante das forças navais americanas na Europa e na África, ocupado durante o verão de 2018. O Trident Juncture deveria reunir 50 mil soldados, 250 aeronaves e 65 navios de guerra no Ártico europeu em outubro. A movimentação logística de tamanha magnitude foi café-pequeno em comparação ao que a Rússia planejava fazer em setembro na Sibéria. Os exercícios Vostok deveriam ter sido os maiores organizados por Moscou desde os colossais exercícios Zapad, de 1981, gabou-se o ministro da Defesa russo, SergUei Shoigu - deveriam envolver 300 mil soldados, mil aeronaves e 80 navios de guerra.

Foi um feito enorme. “Para nós, foi um esforço enorme transportar 50 mil pessoas para o campo de batalha”, recordou-se o almirante Foggo. “Como eles tinham conseguido aquilo?”. A resposta, ele eventualmente descobriu, foi que eles não fizeram aquilo. Uma companhia de soldados (150, no máximo) foi contabilizada em Vostok como um batalhão ou até um regimento (de aproximadamente 1.000 homens). Navios de guerra foram registrados como esquadras inteiras. Essa trapaça pode ter sido um sinal de alerta de que nem tudo é o que parece nas Forças Armadas russas, antes mesmo delas terem atolado nos subúrbios de Kiev.

“Não é um Exército profissional que combate por lá”, afirmou o almirante Foggo. “Eles parecem um bando, uma ralé indisciplinada.” Desde que a Rússia invadiu a Ucrânia, em 24 de fevereiro, as forças russas conseguiram capturar apenas uma cidade grande, Kherson, juntamente com ruínas de Mariupol e fatias do Donbas, a região industrial do leste ucraniano que os russos ocuparam parcialmente em 2014 e agora esperam conquistar totalmente. Esse resultado pífio custou 15 mil vidas de soldados russos, de acordo com uma recente estimativa britânica, excedendo em dois meses as perdas soviéticas em uma década de guerra no Afeganistão. A invasão foi claramente um fiasco. Mas em que medida reflete as verdadeiras capacidades militares da Rússia? Perguntam-se generais ocidentais estupefatos.

Na véspera da guerra, a força de invasão russa era considerada formidável. Agências de inteligência americanas estimavam que Kiev cairia em questão de dias. Algumas autoridades europeias pensaram que a capital ucraniana resistiria poucas semanas. Ninguém imaginou que a cidade receberia autoridades como Antony Blinken e Lloyd Austin, respectivamente os secretários americanos de Estado e da Defesa, dois meses após o início dos combates. Todos acreditaram que a Rússia faria na Ucrânia o que os EUA fizeram no Iraque em 1991: uma campanha de choque e pavor, de força avassaladora, que submeteria o país de maneira rápida e decisiva.

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Os líderes da França e da Alemanha mostraram apoio à Ucrânia no Portão de Brandemburgo. Em Paris, a Torre Eiffel também ganhou as cores da Ucrânia.

Essa crença tinha como base a presunção de que a Rússia havia realizado o mesmo tipo de reforma militar, de cabo a rabo, que os EUA haviam feito durante o hiato de 18 anos entre sua derrota no Vietnã e sua vitória na primeira Guerra do Golfo. Em 2008, a guerra da Rússia contra a Geórgia, um país com menos de 4 milhões de pessoas, apesar de finalmente bem-sucedida, expôs vicissitudes do Exército russo. A Rússia usou em batalha equipamentos obsoletos, teve dificuldade para localizar a artilharia georgiana e se atrapalhou em seu comando e controle. Num estágio determinado, o Estado-Maior russo alegadamente ficou sem conseguir contato com o ministro da Defesa por dez horas. “É impossível não notar um lapso entre teoria e prática”, reconheceu um comandante militar russo na época. Para encerrar esse lapso, as Forças Armadas diminuíram em tamanho e ganharam um lustro.

Espadas de ambição

O gasto militar russo, quando mensurado de maneira apropriada — ou seja, em taxas de câmbio ajustadas em função do poder de compra —, quase dobrou entre 2008 e 2021, aumentando para mais de US$ 250 bilhões, cerca de três vezes os níveis do Reino Unido ou da França. Aproximadamente 600 aviões, 840 helicópteros e 2,3 mil drones novos foram adicionados ao arsenal entre 2010 e 2020. Novos tanques e mísseis foram ostentados em paradas militares em Moscou. A Rússia testou técnicas e equipamentos novos no Donbas, após sua primeira invasão à Ucrânia, em 2014, e em sua campanha para sustentar o ditador sírio, Bashar Assad, no ano seguinte.

Um general europeu aposentado afirma que assistir esse Exército reformulado fracassar o recorda de uma visita à Alemanha Oriental e à Polônia depois do fim da Guerra Fria, quando ele viu o inimigo de perto. “Percebemos que o 3.º Exército de Choque era uma m...”, afirmou ele, referindo-se a uma renomada formação militar soviética com base em Magdeburgo. “Permitimo-nos novamente tropeçar na propaganda que eles colocam no nosso caminho.” Era sabido que o Exército russo tinha problemas, afirma Petr Pavel, general checo aposentado que presidiu o comitê militar da Otan entre 2015 e 2018, “mas a abrangência desses problemas surpreendeu muitos, incluindo a mim mesmo — pois achei que os russos tinham aprendido a lição”.

Corpo de um soldado russo é abandonado em vilarejo na região de Kharkiv, na Ucrânia Foto: Julia Kochetova / REUTERS

A interpretação benevolente é que o Exército russo não tem cambaleado na Ucrânia tanto por conta de suas próprias deficiências, mas em razão das ilusões de Putin. Sua insistência em planejar a guerra secretamente complicou o planejamento militar. A FSB, sucessora da KGB, disse-lhe que a Ucrânia estava repleta de agentes russos e cairia rapidamente. Isso provavelmente produziu a insensata decisão de iniciar a guerra enviando paraquedistas com armas leves para a tomada de um aeroporto na região de Kiev e colunas solitárias de blindados avançarem sobre a cidade de Kharkiv, o que causou baixas pesadas em unidades de elite.

Ainda assim, com esse malogrado coup de main, o Exército escolheu então invadir o segundo maior país da Europa por várias direções, dividindo cerca de 120 grupos táticos de batalhão (BTGs) em contingentes de forças isoladas e ineficazes. A tática ruim, por sua vez, combinou-se a uma estratégia ruim: blindados, infantaria e artilharia combateram em campanhas desconectadas. Tanques que deveriam ter sido protegidos com infantaria terrestre vaguearam solitários e acabaram emboscados e capturados pelos ucranianos. A artilharia, principal esteio do Exército russo desde o período czarista, apesar de direcionada com ferocidade contra cidades como Kharkiv e Mariupol, não foi capaz de romper as linhas ucranianas em torno de Kiev.

Problemas em profusão

Nas semanas recentes, autoridades e especialistas debateram as causas do fracasso russo. Alguns estabeleceram comparações com o colapso do Exército francês em 1940. Mas esta analogia não cabe, afirma Christopher Dougherty, ex-estrategista do Pentágono. “A França fracassou porque seguia uma doutrina ruim”, afirma ele. “O fracasso da Rússia se deve em parte ao seu Exército não adotar nenhuma doutrina nem princípios básicos de guerra.”

Falta de experiência é parte do problema. Conforme notou certa vez o historiador Michael Howard, a técnica que um oficial militar aprimora “é quase singular, no sentido de que ele somente terá de exercê-la uma vez em sua vida, se chegar a tanto. É como se um cirurgião praticasse a vida inteira em bonecos para realizar uma única operação”. Os EUA têm segurado o bisturi quase continuamente desde o fim da Guerra Fria; no Iraque, nos Bálcãs, no Afeganistão, na Líbia, na Síria etc. A Rússia não combate numa guerra dessa magnitude contra um Exército organizado desde que tomou a Manchúria do Japão, em 1945.

Estratégias das quais a Rússia conseguiu se valer em guerras menores, no Donbas e na Síria — como usar sensores eletrônicos em drones para localizar alvos para sua artilharia — provaram-se mais difíceis numa escala maior. E coisas que pareciam fáceis nas guerras dos EUA, como aniquilar defesas antiaéreas do inimigo, são na realidade bastante difíceis de fazer. A Força Aérea russa está realizando centenas de missões diariamente, mas ainda tem dificuldades para detectar e atingir alvos em movimento e depende muito de bombas não guiadas, ou “burras”, que só podem ser lançadas com precisão a partir baixas altitudes, o que expõe suas aeronaves ao fogo antiaéreo.

Todos os Exércitos cometem erros. Alguns mais que outros. A característica distintiva dos bons Exércitos é que eles aprendem rapidamente com os próprios erros. Ao abandonar Kiev, colocar o foco no Donbas e instaurar um único general, Alexander Dvornikov, no comando de uma campanha cacofônica, a Rússia dá sinais tardios de adaptação. No início de abril, uma autoridade ocidental, ao ser questionada se a Rússia estava melhorando taticamente, observou que colunas de blindados ainda estavam sendo enviadas sem apoio e em filas únicas para atravessar território controlado pelos ucranianos — uma manobra suicida. Em 27 de abril, outra autoridade afirmou que as forças russas no Donbas pareciam indispostas ou incapazes de avançar sob chuva forte.

Em parte, as dificuldades da Rússia devem-se à heroica resistência ucraniana, apoiada pela torrente de armamentos e informações de inteligência dos ocidentais. “Mas o crédito quanto pela ruína das ilusões russas jaz, tanto quanto, num fenômeno bem conhecido pela sociologia militar”, escreve Eliot Cohen, da Universidade Johns Hopkins, “de que Exércitos, de modo geral, refletem as qualidades das sociedades das quais emergem”. O Estado russo, afirma Cohen, “assenta-se sobre corrupção, mentiras, ilegalidade e coerção”. Todos esses elementos foram revelados pelo Exército russo nesta guerra.

“Eles injetaram muito dinheiro em modernização”, afirma o general Pavel. “Mas grande parte desse dinheiro se perdeu no processo.” A corrupção certamente ajuda a explicar por que os veículos russos são equipados com pneus baratos de fabricação chinesa e por isso acabam atolados em lamaçais na Ucrânia. Também é capaz de explicar por que tantas unidades russas encontraram-se sem rádios criptografados e foram forçadas a substituir sua comunicação por mecanismos civis sem segurança ou até apelar para as redes de telefonia celular ucranianas. Isso, por sua vez, pode muito bem ter colaborado para as baixas entre os generais russos (a Ucrânia alega ter matado dez deles), já que as comunicações dos comandantes nas linhas de frente foram fáceis de interceptar.

Soldados ucranianos conversam em front na região de Zaporizhzhia Foto: Lynsey Addario/ NYT

Ainda assim, a corrupção não explica tudo. A Ucrânia também é corrupta, e não muito menos que a Rússia: os países se colocam respectivamente nas 122.ª e 136.ª posições no Índice de Percepção de Corrupção da ONG Transparência Internacional, um grupo de pressão. O que realmente distingue os dois países é o espírito de luta. Os soldados ucranianos estão lutando pela existência de sua nação. E muitos russos nem sabiam que entrariam em guerra até que receberam a ordem para atravessar a fronteira. Uma autoridade europeia de inteligência afirma que os conscritos russos — que Putin prometeu repetidamente que não iria mandar para a guerra — resistiram à pressão de assinar contratos que os transformaram em soldados profissionais; outros se negaram a servir absolutamente. A autoridade afirma que as unidades afetadas incluem a 106.ª Divisão de Guarda Aerotransportada e o 51.º Regimento de Paraquedistas, que são parte da suposta elite das Tropas Aerotransportadas da Federação Russa (VDV), e o 423.º Regimento de Fuzileiros Motorizados, que compõe uma importante divisão de tanques.

Dificuldades em massa

Soldados mal treinados e pouco motivados são um inconveniente em qualquer conflito; especialmente inadequados às complexidades da guerra moderna de armas combinadas, que requer tanques, infantaria, artilharia e poder aéreo trabalhando em sincronia. Tentar uma coordenação de tamanha magnitude na Ucrânia com adolescentes amuados, coagidos ao serviço, alimentados com rações de validade expirada e equipados com veículos com péssima manutenção foi o pico do otimismo.

Tamanha tarefa exige, no mínimo, liderança consistente. E isso também está em falta. Oficiais não comissionados — homens maduros alistados, que treinam e supervisionam os soldados — são a espinha dorsal das Forças Armadas da Otan. A Rússia não possui um quadro militar comparável. “Há coronéis demais e cabos de menos”, afirma uma autoridade europeia de defesa. O treinamento é rígido e antiquado, afirma ele, com obsessão na 2.ª Guerra e pouca atenção em conflitos mais atuais. Isso pode explicar por que a doutrina foi jogada pela janela. Manobras que pareceram fáceis em Vostok e outros exercícios conduzidos pelo Estado russo provaram-se mais difíceis de reproduzir sob fogo e longe de casa.

Se os oficiais russos estudaram a história militar de seu país, parecem ter depreendido as piores lições das guerras no Afeganistão, na Chechênia e na Síria. Durante sua ocupação do norte da Ucrânia, os soldados russos não apenas ingeriram grandes quantidades de bebidas alcoólicas e saquearam lares e comércios, mas também assassinaram grandes números de civis. Alguns deles foram recompensados por isso. Em 18 de abril, a 64.ª Brigada de Infantaria Motorizada, acusada de massacres de civis em Bucha, foi condecorada por Putin por seu “extremo heroísmo e coragem”, que lhe conferiu a honra de se tornar uma unidade de “Guarda”.

Crimes de guerra nem sempre são irracionais. Eles podem servir a propósitos políticos, como aterrorizar a população para sua submissão. Também não são incompatíveis com destreza militar: a Wehrmacht da Alemanha nazista era boa tanto em combater quanto em assassinar. Mas a brutalidade também pode ser contraproducente, inspirando o inimigo a lutar implacavelmente, em vez de se render e arriscar ser morto mesmo assim.

A selvageria e a confusão das forças russas na Ucrânia são consistentes com sua recente conduta na Síria. Seus bombardeios contra hospitais ucranianos ecoam os bombardeios contra instalações médicas na Síria. Ainda assim, oficiais militares israelenses que assistiram atentamente a Força Aérea russa atuar na Síria ficaram surpresos por suas atuais dificuldades em defesa antiaérea, localização de alvos e decolagens frequentes. Num determinado estágio, eles consideraram que o envolvimento de sírios em operações aéreas era a única explicação plausível para um nível de profissionalismo tão baixo.

No fim, os israelenses concluíram que falta aos russos treinamento, doutrina e experiência para aproveitar plenamente suas avançadas aeronaves. Pilotos militares israelenses ficaram impressionados, tanto em suas missões de combate quanto nos seus empregos cotidianos como pilotos comerciais, pela tosca abordagem russa em relação à guerra eletrônica, que envolveu bloquear sinais de GPS sobre grandes faixas do leste do Mediterrâneo, às vezes por semanas a fio. Quando a invasão russa à Ucrânia empacou, analistas israelenses perceberam que as forças terrestres da Rússia eram afligidas por muitos desses mesmos problemas.

Alguns amigos dos russos parecem ter a mesma percepção. Syed Ata Hasnain, um general indiano aposentado que comandou as forças da Índia na Cachemira, nota uma “incompetência da Rússia no campo de batalha”, fundamentada em “arrogância e relutância em seguir noções militares básicas já comprovadas”. Um painel de diplomatas e generais indianos aposentados afiliados à Vivekananda International Foundation, um instituto de análise nacionalista próximo ao governo indiano, discutiu recentemente a “visível e abjeta falta de preparo” da Rússia e a “severa incompetência logística” do país. O fato de a Índia ser a nação que mais importa armas russas conferiu um peso especial à conclusão: “a qualidade da tecnologia russa que anteriormente era considerada superlativa está sendo cada vez mais questionada” — apesar da Ucrânia, evidentemente, utilizar em grande parte esse mesmo equipamento.

Ucranianos desmantelam tanque russo nas proximidades de Kiev Foto: David Guttenfelder / NYT

Um processo similar de reavaliação ocorre neste momento nas Forças Armadas ocidentais. Um campo argumenta que a ameaça russa à Otan não é tão grande quanto temeu-se. “O Exército russo teve a reputação abalada e levará uma geração para se recuperar”, afirma uma análise recente de um governo da Otan. “Ele provou valer menos do que a soma de suas partes num espaço de batalha moderno e complexo.” Mas outra escola de pensamento alerta contra julgamentos precipitados. É cedo demais para tirar conclusões absolutas, alerta uma graduada autoridade da Otan, com a guerra ainda se desdobrando e ambos os lados se adaptando.

Se um dos erros da Rússia foi depreender uma falsa confiança de seu sucesso ao tomar a Crimeia da Ucrânia, em 2014, e em evitar a queda do regime de Assad, na Síria, em 2015, segundo este argumento há um risco similar de que os inimigos da Rússia infiram exageradamente das atuais desordens na Ucrânia. Michael Kofman, do CNA, um instituto de análise, reconhece que ele e outros especialistas “superestimamos o impacto das reformas…e subestimamos a podridão sob Shoigu”. Mas contexto é tudo, nota ele. Nos anos recentes, os cenários que têm preocupado estrategistas da Otan não são guerras na escala do atual conflito, mas operações mais modestas e realistas, com objetivos limitados e pequenas conquistas de território, como uma invasão russa em partes dos Estados bálticos ou uma tomada de ilhas como a norueguesa Svalbard.

Guerras como essas podem se desenrolar de maneiras muito diferentes que o conflito na Ucrânia. Começariam com um front mais estreito, envolveriam menos forças e colocariam menos pressão sobre logística, afirma Kofman. O Kremlin e o Estado-Maior russo não subestimariam a Otan necessariamente da maneira equivocada com a qual desprezaram o Exército ucraniano. E se o governo russo não estivesse tentando minimizar um futuro conflito, qualificando-o como nada além de uma “operação militar especial”, como faz na Ucrânia, poderia mobilizar muito mais forças e conscritos. Não há informação de que muitas das principais capacidades militares dos russos, como armamentos antissatélites e submarinos avançados, tenham sido testadas na Ucrânia de nenhuma maneira.

Geografia também é importante. Enquanto a logística russa “remete assustadoramente” ao antigo Exército soviético, afirma Ronald Ti, um especialista em logística militar que leciona no Baltic Defence College, na Estônia, sua dependência de ferrovias seria um problema menor em um ataque contra os Estados bálticos. “Uma operação ‘fato consumado’, em que eles extirpem uma fatia de território estoniano, está perfeitamente dentro de suas capacidades”, afirma Ti, “porque eles são capazes de alimentá-la com facilidade por terminais ferroviários”. (Se a Força Aérea russa, com sua falta de experiência e fragilidades agora expostas, seria capaz de proteger esses terminais dos ataques aéreos da Otan é outra questão.)

Lições em abundância

Kofman acredita que a pergunta sobre “quanto dessa guerra decorre de um Exército ruim, o que de importantes maneiras acho que claramente é o caso, e quanto disso é fruto de um plano verdadeiramente terrível” ainda não foi respondida. E ainda assim, é essencial respondê-la. Num artigo seminal, de 1995, o cientista político James Fearon, da Universidade Stanford, na Califórnia, argumentou que guerras caras e destrutivas que governos racionais prefeririam evitar por meio de negociação podem, apesar disso, ainda ocorrer, graças a erros de cálculo sobre capacidades do outro lado. Na teoria, um acordo de paz que evite a guerra refletiria o poder relativo de dois possíveis beligerantes. Mas as partes podem fracassar em alcançar tal barganha, porque esse poder relativo nem sempre é óbvio.

“Líderes sabem coisas a respeito de suas capacidades militares e disposição para a luta que outros Estados não sabem”, escreve Fearon, “e em situações de barganha, eles podem ter incentivos para deturpar tais informações para conseguir um acordo melhor”. Isso ajuda a explicar por que a Rússia inflou tão loucamente sua suposta destreza nos exercícios de Vostok. E isso pode funcionar. “Suspeito que muitos de nós nos deixamos levar pelas paradas do Dia da Vitória que nos mostraram todos os elementos escolhidos estrategicamente desse kit”, afirma o general europeu.

A batalha pelo Donbas não encerrará inteiramente este debate. Um Exército russo que prevalece numa guerra de desgaste por meio de seu poder de fogo superior e maior contingente poderia estar longe daquela força ágil e de alta tecnologia propagandeada ao longo da última década. É mais provável que os passos pesados e desajeitados das forças russas se exauriam muito antes de alcançar objetivos no sul e no leste da Ucrânia, sem mencionar outra tentativa de conquistar Kiev. Estrategistas militares de todo o mundo estarão assistindo de perto, para observar não apenas quão longe a Rússia chegará nas próximas semanas, mas também o que seu desempenho revelará sobre a resiliência, a adaptabilidade e a liderança de suas forças. Como uma faca enfiada num tronco caído, o progresso da campanha revelará a profundidade da podridão. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

© 2022 THE ECONOMIST NEWSPAPER LIMITED. DIREITOS RESERVADOS. PUBLICADO SOB LICENÇA. O TEXTO ORIGINAL EM INGLÊS ESTÁ EM WWW.ECONOMIST.COM

O trabalho de organizar o maior exercício militar da Otan desde o fim da Guerra Fria manteve o almirante James Foggo, então comandante das forças navais americanas na Europa e na África, ocupado durante o verão de 2018. O Trident Juncture deveria reunir 50 mil soldados, 250 aeronaves e 65 navios de guerra no Ártico europeu em outubro. A movimentação logística de tamanha magnitude foi café-pequeno em comparação ao que a Rússia planejava fazer em setembro na Sibéria. Os exercícios Vostok deveriam ter sido os maiores organizados por Moscou desde os colossais exercícios Zapad, de 1981, gabou-se o ministro da Defesa russo, SergUei Shoigu - deveriam envolver 300 mil soldados, mil aeronaves e 80 navios de guerra.

Foi um feito enorme. “Para nós, foi um esforço enorme transportar 50 mil pessoas para o campo de batalha”, recordou-se o almirante Foggo. “Como eles tinham conseguido aquilo?”. A resposta, ele eventualmente descobriu, foi que eles não fizeram aquilo. Uma companhia de soldados (150, no máximo) foi contabilizada em Vostok como um batalhão ou até um regimento (de aproximadamente 1.000 homens). Navios de guerra foram registrados como esquadras inteiras. Essa trapaça pode ter sido um sinal de alerta de que nem tudo é o que parece nas Forças Armadas russas, antes mesmo delas terem atolado nos subúrbios de Kiev.

“Não é um Exército profissional que combate por lá”, afirmou o almirante Foggo. “Eles parecem um bando, uma ralé indisciplinada.” Desde que a Rússia invadiu a Ucrânia, em 24 de fevereiro, as forças russas conseguiram capturar apenas uma cidade grande, Kherson, juntamente com ruínas de Mariupol e fatias do Donbas, a região industrial do leste ucraniano que os russos ocuparam parcialmente em 2014 e agora esperam conquistar totalmente. Esse resultado pífio custou 15 mil vidas de soldados russos, de acordo com uma recente estimativa britânica, excedendo em dois meses as perdas soviéticas em uma década de guerra no Afeganistão. A invasão foi claramente um fiasco. Mas em que medida reflete as verdadeiras capacidades militares da Rússia? Perguntam-se generais ocidentais estupefatos.

Na véspera da guerra, a força de invasão russa era considerada formidável. Agências de inteligência americanas estimavam que Kiev cairia em questão de dias. Algumas autoridades europeias pensaram que a capital ucraniana resistiria poucas semanas. Ninguém imaginou que a cidade receberia autoridades como Antony Blinken e Lloyd Austin, respectivamente os secretários americanos de Estado e da Defesa, dois meses após o início dos combates. Todos acreditaram que a Rússia faria na Ucrânia o que os EUA fizeram no Iraque em 1991: uma campanha de choque e pavor, de força avassaladora, que submeteria o país de maneira rápida e decisiva.

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Os líderes da França e da Alemanha mostraram apoio à Ucrânia no Portão de Brandemburgo. Em Paris, a Torre Eiffel também ganhou as cores da Ucrânia.

Essa crença tinha como base a presunção de que a Rússia havia realizado o mesmo tipo de reforma militar, de cabo a rabo, que os EUA haviam feito durante o hiato de 18 anos entre sua derrota no Vietnã e sua vitória na primeira Guerra do Golfo. Em 2008, a guerra da Rússia contra a Geórgia, um país com menos de 4 milhões de pessoas, apesar de finalmente bem-sucedida, expôs vicissitudes do Exército russo. A Rússia usou em batalha equipamentos obsoletos, teve dificuldade para localizar a artilharia georgiana e se atrapalhou em seu comando e controle. Num estágio determinado, o Estado-Maior russo alegadamente ficou sem conseguir contato com o ministro da Defesa por dez horas. “É impossível não notar um lapso entre teoria e prática”, reconheceu um comandante militar russo na época. Para encerrar esse lapso, as Forças Armadas diminuíram em tamanho e ganharam um lustro.

Espadas de ambição

O gasto militar russo, quando mensurado de maneira apropriada — ou seja, em taxas de câmbio ajustadas em função do poder de compra —, quase dobrou entre 2008 e 2021, aumentando para mais de US$ 250 bilhões, cerca de três vezes os níveis do Reino Unido ou da França. Aproximadamente 600 aviões, 840 helicópteros e 2,3 mil drones novos foram adicionados ao arsenal entre 2010 e 2020. Novos tanques e mísseis foram ostentados em paradas militares em Moscou. A Rússia testou técnicas e equipamentos novos no Donbas, após sua primeira invasão à Ucrânia, em 2014, e em sua campanha para sustentar o ditador sírio, Bashar Assad, no ano seguinte.

Um general europeu aposentado afirma que assistir esse Exército reformulado fracassar o recorda de uma visita à Alemanha Oriental e à Polônia depois do fim da Guerra Fria, quando ele viu o inimigo de perto. “Percebemos que o 3.º Exército de Choque era uma m...”, afirmou ele, referindo-se a uma renomada formação militar soviética com base em Magdeburgo. “Permitimo-nos novamente tropeçar na propaganda que eles colocam no nosso caminho.” Era sabido que o Exército russo tinha problemas, afirma Petr Pavel, general checo aposentado que presidiu o comitê militar da Otan entre 2015 e 2018, “mas a abrangência desses problemas surpreendeu muitos, incluindo a mim mesmo — pois achei que os russos tinham aprendido a lição”.

Corpo de um soldado russo é abandonado em vilarejo na região de Kharkiv, na Ucrânia Foto: Julia Kochetova / REUTERS

A interpretação benevolente é que o Exército russo não tem cambaleado na Ucrânia tanto por conta de suas próprias deficiências, mas em razão das ilusões de Putin. Sua insistência em planejar a guerra secretamente complicou o planejamento militar. A FSB, sucessora da KGB, disse-lhe que a Ucrânia estava repleta de agentes russos e cairia rapidamente. Isso provavelmente produziu a insensata decisão de iniciar a guerra enviando paraquedistas com armas leves para a tomada de um aeroporto na região de Kiev e colunas solitárias de blindados avançarem sobre a cidade de Kharkiv, o que causou baixas pesadas em unidades de elite.

Ainda assim, com esse malogrado coup de main, o Exército escolheu então invadir o segundo maior país da Europa por várias direções, dividindo cerca de 120 grupos táticos de batalhão (BTGs) em contingentes de forças isoladas e ineficazes. A tática ruim, por sua vez, combinou-se a uma estratégia ruim: blindados, infantaria e artilharia combateram em campanhas desconectadas. Tanques que deveriam ter sido protegidos com infantaria terrestre vaguearam solitários e acabaram emboscados e capturados pelos ucranianos. A artilharia, principal esteio do Exército russo desde o período czarista, apesar de direcionada com ferocidade contra cidades como Kharkiv e Mariupol, não foi capaz de romper as linhas ucranianas em torno de Kiev.

Problemas em profusão

Nas semanas recentes, autoridades e especialistas debateram as causas do fracasso russo. Alguns estabeleceram comparações com o colapso do Exército francês em 1940. Mas esta analogia não cabe, afirma Christopher Dougherty, ex-estrategista do Pentágono. “A França fracassou porque seguia uma doutrina ruim”, afirma ele. “O fracasso da Rússia se deve em parte ao seu Exército não adotar nenhuma doutrina nem princípios básicos de guerra.”

Falta de experiência é parte do problema. Conforme notou certa vez o historiador Michael Howard, a técnica que um oficial militar aprimora “é quase singular, no sentido de que ele somente terá de exercê-la uma vez em sua vida, se chegar a tanto. É como se um cirurgião praticasse a vida inteira em bonecos para realizar uma única operação”. Os EUA têm segurado o bisturi quase continuamente desde o fim da Guerra Fria; no Iraque, nos Bálcãs, no Afeganistão, na Líbia, na Síria etc. A Rússia não combate numa guerra dessa magnitude contra um Exército organizado desde que tomou a Manchúria do Japão, em 1945.

Estratégias das quais a Rússia conseguiu se valer em guerras menores, no Donbas e na Síria — como usar sensores eletrônicos em drones para localizar alvos para sua artilharia — provaram-se mais difíceis numa escala maior. E coisas que pareciam fáceis nas guerras dos EUA, como aniquilar defesas antiaéreas do inimigo, são na realidade bastante difíceis de fazer. A Força Aérea russa está realizando centenas de missões diariamente, mas ainda tem dificuldades para detectar e atingir alvos em movimento e depende muito de bombas não guiadas, ou “burras”, que só podem ser lançadas com precisão a partir baixas altitudes, o que expõe suas aeronaves ao fogo antiaéreo.

Todos os Exércitos cometem erros. Alguns mais que outros. A característica distintiva dos bons Exércitos é que eles aprendem rapidamente com os próprios erros. Ao abandonar Kiev, colocar o foco no Donbas e instaurar um único general, Alexander Dvornikov, no comando de uma campanha cacofônica, a Rússia dá sinais tardios de adaptação. No início de abril, uma autoridade ocidental, ao ser questionada se a Rússia estava melhorando taticamente, observou que colunas de blindados ainda estavam sendo enviadas sem apoio e em filas únicas para atravessar território controlado pelos ucranianos — uma manobra suicida. Em 27 de abril, outra autoridade afirmou que as forças russas no Donbas pareciam indispostas ou incapazes de avançar sob chuva forte.

Em parte, as dificuldades da Rússia devem-se à heroica resistência ucraniana, apoiada pela torrente de armamentos e informações de inteligência dos ocidentais. “Mas o crédito quanto pela ruína das ilusões russas jaz, tanto quanto, num fenômeno bem conhecido pela sociologia militar”, escreve Eliot Cohen, da Universidade Johns Hopkins, “de que Exércitos, de modo geral, refletem as qualidades das sociedades das quais emergem”. O Estado russo, afirma Cohen, “assenta-se sobre corrupção, mentiras, ilegalidade e coerção”. Todos esses elementos foram revelados pelo Exército russo nesta guerra.

“Eles injetaram muito dinheiro em modernização”, afirma o general Pavel. “Mas grande parte desse dinheiro se perdeu no processo.” A corrupção certamente ajuda a explicar por que os veículos russos são equipados com pneus baratos de fabricação chinesa e por isso acabam atolados em lamaçais na Ucrânia. Também é capaz de explicar por que tantas unidades russas encontraram-se sem rádios criptografados e foram forçadas a substituir sua comunicação por mecanismos civis sem segurança ou até apelar para as redes de telefonia celular ucranianas. Isso, por sua vez, pode muito bem ter colaborado para as baixas entre os generais russos (a Ucrânia alega ter matado dez deles), já que as comunicações dos comandantes nas linhas de frente foram fáceis de interceptar.

Soldados ucranianos conversam em front na região de Zaporizhzhia Foto: Lynsey Addario/ NYT

Ainda assim, a corrupção não explica tudo. A Ucrânia também é corrupta, e não muito menos que a Rússia: os países se colocam respectivamente nas 122.ª e 136.ª posições no Índice de Percepção de Corrupção da ONG Transparência Internacional, um grupo de pressão. O que realmente distingue os dois países é o espírito de luta. Os soldados ucranianos estão lutando pela existência de sua nação. E muitos russos nem sabiam que entrariam em guerra até que receberam a ordem para atravessar a fronteira. Uma autoridade europeia de inteligência afirma que os conscritos russos — que Putin prometeu repetidamente que não iria mandar para a guerra — resistiram à pressão de assinar contratos que os transformaram em soldados profissionais; outros se negaram a servir absolutamente. A autoridade afirma que as unidades afetadas incluem a 106.ª Divisão de Guarda Aerotransportada e o 51.º Regimento de Paraquedistas, que são parte da suposta elite das Tropas Aerotransportadas da Federação Russa (VDV), e o 423.º Regimento de Fuzileiros Motorizados, que compõe uma importante divisão de tanques.

Dificuldades em massa

Soldados mal treinados e pouco motivados são um inconveniente em qualquer conflito; especialmente inadequados às complexidades da guerra moderna de armas combinadas, que requer tanques, infantaria, artilharia e poder aéreo trabalhando em sincronia. Tentar uma coordenação de tamanha magnitude na Ucrânia com adolescentes amuados, coagidos ao serviço, alimentados com rações de validade expirada e equipados com veículos com péssima manutenção foi o pico do otimismo.

Tamanha tarefa exige, no mínimo, liderança consistente. E isso também está em falta. Oficiais não comissionados — homens maduros alistados, que treinam e supervisionam os soldados — são a espinha dorsal das Forças Armadas da Otan. A Rússia não possui um quadro militar comparável. “Há coronéis demais e cabos de menos”, afirma uma autoridade europeia de defesa. O treinamento é rígido e antiquado, afirma ele, com obsessão na 2.ª Guerra e pouca atenção em conflitos mais atuais. Isso pode explicar por que a doutrina foi jogada pela janela. Manobras que pareceram fáceis em Vostok e outros exercícios conduzidos pelo Estado russo provaram-se mais difíceis de reproduzir sob fogo e longe de casa.

Se os oficiais russos estudaram a história militar de seu país, parecem ter depreendido as piores lições das guerras no Afeganistão, na Chechênia e na Síria. Durante sua ocupação do norte da Ucrânia, os soldados russos não apenas ingeriram grandes quantidades de bebidas alcoólicas e saquearam lares e comércios, mas também assassinaram grandes números de civis. Alguns deles foram recompensados por isso. Em 18 de abril, a 64.ª Brigada de Infantaria Motorizada, acusada de massacres de civis em Bucha, foi condecorada por Putin por seu “extremo heroísmo e coragem”, que lhe conferiu a honra de se tornar uma unidade de “Guarda”.

Crimes de guerra nem sempre são irracionais. Eles podem servir a propósitos políticos, como aterrorizar a população para sua submissão. Também não são incompatíveis com destreza militar: a Wehrmacht da Alemanha nazista era boa tanto em combater quanto em assassinar. Mas a brutalidade também pode ser contraproducente, inspirando o inimigo a lutar implacavelmente, em vez de se render e arriscar ser morto mesmo assim.

A selvageria e a confusão das forças russas na Ucrânia são consistentes com sua recente conduta na Síria. Seus bombardeios contra hospitais ucranianos ecoam os bombardeios contra instalações médicas na Síria. Ainda assim, oficiais militares israelenses que assistiram atentamente a Força Aérea russa atuar na Síria ficaram surpresos por suas atuais dificuldades em defesa antiaérea, localização de alvos e decolagens frequentes. Num determinado estágio, eles consideraram que o envolvimento de sírios em operações aéreas era a única explicação plausível para um nível de profissionalismo tão baixo.

No fim, os israelenses concluíram que falta aos russos treinamento, doutrina e experiência para aproveitar plenamente suas avançadas aeronaves. Pilotos militares israelenses ficaram impressionados, tanto em suas missões de combate quanto nos seus empregos cotidianos como pilotos comerciais, pela tosca abordagem russa em relação à guerra eletrônica, que envolveu bloquear sinais de GPS sobre grandes faixas do leste do Mediterrâneo, às vezes por semanas a fio. Quando a invasão russa à Ucrânia empacou, analistas israelenses perceberam que as forças terrestres da Rússia eram afligidas por muitos desses mesmos problemas.

Alguns amigos dos russos parecem ter a mesma percepção. Syed Ata Hasnain, um general indiano aposentado que comandou as forças da Índia na Cachemira, nota uma “incompetência da Rússia no campo de batalha”, fundamentada em “arrogância e relutância em seguir noções militares básicas já comprovadas”. Um painel de diplomatas e generais indianos aposentados afiliados à Vivekananda International Foundation, um instituto de análise nacionalista próximo ao governo indiano, discutiu recentemente a “visível e abjeta falta de preparo” da Rússia e a “severa incompetência logística” do país. O fato de a Índia ser a nação que mais importa armas russas conferiu um peso especial à conclusão: “a qualidade da tecnologia russa que anteriormente era considerada superlativa está sendo cada vez mais questionada” — apesar da Ucrânia, evidentemente, utilizar em grande parte esse mesmo equipamento.

Ucranianos desmantelam tanque russo nas proximidades de Kiev Foto: David Guttenfelder / NYT

Um processo similar de reavaliação ocorre neste momento nas Forças Armadas ocidentais. Um campo argumenta que a ameaça russa à Otan não é tão grande quanto temeu-se. “O Exército russo teve a reputação abalada e levará uma geração para se recuperar”, afirma uma análise recente de um governo da Otan. “Ele provou valer menos do que a soma de suas partes num espaço de batalha moderno e complexo.” Mas outra escola de pensamento alerta contra julgamentos precipitados. É cedo demais para tirar conclusões absolutas, alerta uma graduada autoridade da Otan, com a guerra ainda se desdobrando e ambos os lados se adaptando.

Se um dos erros da Rússia foi depreender uma falsa confiança de seu sucesso ao tomar a Crimeia da Ucrânia, em 2014, e em evitar a queda do regime de Assad, na Síria, em 2015, segundo este argumento há um risco similar de que os inimigos da Rússia infiram exageradamente das atuais desordens na Ucrânia. Michael Kofman, do CNA, um instituto de análise, reconhece que ele e outros especialistas “superestimamos o impacto das reformas…e subestimamos a podridão sob Shoigu”. Mas contexto é tudo, nota ele. Nos anos recentes, os cenários que têm preocupado estrategistas da Otan não são guerras na escala do atual conflito, mas operações mais modestas e realistas, com objetivos limitados e pequenas conquistas de território, como uma invasão russa em partes dos Estados bálticos ou uma tomada de ilhas como a norueguesa Svalbard.

Guerras como essas podem se desenrolar de maneiras muito diferentes que o conflito na Ucrânia. Começariam com um front mais estreito, envolveriam menos forças e colocariam menos pressão sobre logística, afirma Kofman. O Kremlin e o Estado-Maior russo não subestimariam a Otan necessariamente da maneira equivocada com a qual desprezaram o Exército ucraniano. E se o governo russo não estivesse tentando minimizar um futuro conflito, qualificando-o como nada além de uma “operação militar especial”, como faz na Ucrânia, poderia mobilizar muito mais forças e conscritos. Não há informação de que muitas das principais capacidades militares dos russos, como armamentos antissatélites e submarinos avançados, tenham sido testadas na Ucrânia de nenhuma maneira.

Geografia também é importante. Enquanto a logística russa “remete assustadoramente” ao antigo Exército soviético, afirma Ronald Ti, um especialista em logística militar que leciona no Baltic Defence College, na Estônia, sua dependência de ferrovias seria um problema menor em um ataque contra os Estados bálticos. “Uma operação ‘fato consumado’, em que eles extirpem uma fatia de território estoniano, está perfeitamente dentro de suas capacidades”, afirma Ti, “porque eles são capazes de alimentá-la com facilidade por terminais ferroviários”. (Se a Força Aérea russa, com sua falta de experiência e fragilidades agora expostas, seria capaz de proteger esses terminais dos ataques aéreos da Otan é outra questão.)

Lições em abundância

Kofman acredita que a pergunta sobre “quanto dessa guerra decorre de um Exército ruim, o que de importantes maneiras acho que claramente é o caso, e quanto disso é fruto de um plano verdadeiramente terrível” ainda não foi respondida. E ainda assim, é essencial respondê-la. Num artigo seminal, de 1995, o cientista político James Fearon, da Universidade Stanford, na Califórnia, argumentou que guerras caras e destrutivas que governos racionais prefeririam evitar por meio de negociação podem, apesar disso, ainda ocorrer, graças a erros de cálculo sobre capacidades do outro lado. Na teoria, um acordo de paz que evite a guerra refletiria o poder relativo de dois possíveis beligerantes. Mas as partes podem fracassar em alcançar tal barganha, porque esse poder relativo nem sempre é óbvio.

“Líderes sabem coisas a respeito de suas capacidades militares e disposição para a luta que outros Estados não sabem”, escreve Fearon, “e em situações de barganha, eles podem ter incentivos para deturpar tais informações para conseguir um acordo melhor”. Isso ajuda a explicar por que a Rússia inflou tão loucamente sua suposta destreza nos exercícios de Vostok. E isso pode funcionar. “Suspeito que muitos de nós nos deixamos levar pelas paradas do Dia da Vitória que nos mostraram todos os elementos escolhidos estrategicamente desse kit”, afirma o general europeu.

A batalha pelo Donbas não encerrará inteiramente este debate. Um Exército russo que prevalece numa guerra de desgaste por meio de seu poder de fogo superior e maior contingente poderia estar longe daquela força ágil e de alta tecnologia propagandeada ao longo da última década. É mais provável que os passos pesados e desajeitados das forças russas se exauriam muito antes de alcançar objetivos no sul e no leste da Ucrânia, sem mencionar outra tentativa de conquistar Kiev. Estrategistas militares de todo o mundo estarão assistindo de perto, para observar não apenas quão longe a Rússia chegará nas próximas semanas, mas também o que seu desempenho revelará sobre a resiliência, a adaptabilidade e a liderança de suas forças. Como uma faca enfiada num tronco caído, o progresso da campanha revelará a profundidade da podridão. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

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