Cerca de dez mil mulheres qualificadas para votar nas eleições de novembro deste ano nasceram antes de as mulheres terem conquistado o direito ao voto. No século transcorrido desde então, as mulheres americanas acumularam direitos de forma constante. Na década de 1960, a pílula anticoncepcional permitia às mulheres escolher quantos filhos teriam. Na década de 1970, as leis de divórcio sem necessidade de apontar um culpado e a decisão do caso Roe versus Wade deram às mulheres mais opções que haviam sido negadas às suas mães. Esse progresso parecia irreversível, e era muitas vezes dado como fato consumado. Depois, há dois anos, a Suprema Corte derrubou a decisão do caso Roe, devolvendo aos estados a questão de permitir ou proibir o aborto. Como se viu, os direitos também podem ser retirados.
Um terço das mulheres americanas com idades compreendidas entre os 15 e os 49 anos vive agora em estados onde o aborto é ilegal ou restrito a ponto de ser impossível. Alguns estados aprovaram leis tão severas e vagamente redigidas que os médicos temem ser forçados a escolher entre colocar em risco a vida de uma paciente – no caso de um aborto espontâneo perigoso ou de uma gravidez complicada – e correr o risco de infringir a lei.
No entanto, por mais sombria que pareça esta reversão, ela também deu origem ao novo movimento político mais dinâmico dos Estados Unidos: uma revolta de milhões de americanos que acreditam que o governo tem pouca legitimidade para se meter em decisões privadas. Para muitas mulheres, esse movimento restaurará ou fortalecerá a liberdade de escolha. Poderia também, talvez, influenciar a eleição presidencial.
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A decisão do caso Dobbs, a decisão da Suprema Corte que derrubou a decisão anterior envolvendo o caso Roe, tem sido um gol contra do movimento antiaborto. Surpreendentemente, o número de abortos aumentou ligeiramente desde que ela foi anunciada. Embora alguns estados tenham proibido imediatamente o procedimento, outros o tornaram mais fácil de obter. Além disso, a agência federal de regulação de medicamentos permitiu que pílulas abortivas fossem prescritas pelo correio, proporcionando a milhões de mulheres (incluindo algumas em estados anti-aborto) um acesso mais fácil ao aborto precoce do que antes. No entanto, para milhões de outras mulheres, conseguir um aborto dentro da lei se tornou muito mais difícil. O resultado da decisão do tribunal foi, então, atribuir às pessoas mais ou menos escolhas dependendo do local onde elas vivem.
A indignação deu origem a um movimento político de base. Envolve mais americanos do que qualquer levante desde o Black Lives Matter, em 2020, ou o Tea Party, há mais de uma década. Porém, está mais bem organizado e tem objetivos mais claros. Seus soldados carregam pranchetas. Dezenas de milhares de voluntários reuniram milhões de assinaturas para submeter as regras do aborto a referendos estaduais. O movimento já obteve sucesso em alguns lugares surpreendentes, como Ohio e Kansas. Até 16 estados poderão realizar referendos a respeito do aborto no mesmo dia em que os americanos escolherem seu próximo presidente.
Apenas 24 dos 50 estados permitem iniciativas eleitorais lideradas pelos cidadãos, e por isso a colcha de retalhos de campanhas estaduais é um fraco substituto para uma lei federal. Mas, até ao final de 2024, se todas as iniciativas forem votadas, a maioria das mulheres americanas em idade reprodutiva terá a oportunidade de votar a favor do aborto desde a decisão do caso Dobbs. A Flórida é crucial. É o terceiro estado mais populoso e, até uma proibição rigorosa entrar em vigor de em maio, era um lugar para onde muitas mulheres vinham de outros estados em busca de abortos, já que o procedimento é ilegal e com certeza continuará assim em grande parte do sul dos EUA.
Se o único efeito do movimento em defesa do direito ao aborto envolvesse a saúde das mulheres americanas, valeria a pena levá-lo a sério. Se também ajudar o presidente Joe Biden a ganhar a reeleição, terá consequências globais. Poderá a reação contra a decisão do caso Dobbs manter o homem cujas nomeações judiciais tornaram isso possível, Donald Trump, fora da Casa Branca?
Talvez. Poucos eleitores estão entusiasmados com Biden. Um movimento de massas em apoio a um objetivo partilhado pelo partido dele deveria aumentar a participação do eleitorado democrata. Os referendos a respeito do aborto no Arizona e em Nevada, dois estados de resultado indefinido, poderão estimular os eleitores marginais centristas e de esquerda a se dirigirem às cabines de voto. Muitos americanos acreditam que a economia está mais enfraquecida do que realmente está, e também culpam o presidente pelos preços elevados, e por isso seria útil dar a eles uma razão alternativa para comparecerem à votação. Em uma disputa acirrada, mesmo um impulso modesto pode ser decisivo, e o aborto parece provavelmente ajudar a campanha de Biden mais do que prejudicá-la.
No entanto, ainda há probabilidade de que isso não seja suficiente. Se os referendos em defesa do direito ao aborto tiverem resultado positivo, muitas vezes será porque os republicanos que defendem o direito ao aborto, um grupo cuja opinião é esmagada dentro do seu próprio partido, apareceram para apoiá-los. A maioria deles votará a favor do aborto legal – e a favor de Trump. As pesquisas dizem que Biden está perdendo nos estados de resultado indefinido. Isso sugere que os eleitores podem separar as suas opiniões em relação ao aborto das suas preferências partidárias. Se a participação geral for elevada, o aborto terá menos importância, porque o entusiasmo dos eleitores que defendem o direito ao aborto será abafado. Se a participação for baixa, eles contarão mais, beneficiando Biden.
Mais sobre as eleições americanas
Para a maior parte do mundo, o que importa são as eleições: bilhões de pessoas se preparam para mais quatro anos de fogos de artifício trumpianos. Mas, para os americanos, deveria ser encorajador que o movimento em defesa do direito ao aborto esteja enfrentando um fracasso central da política americana. Em muitas questões, especialmente as relacionadas com as guerras culturais, as atitudes americanas são pouco diferentes das de outras democracias ricas, mas os legisladores federais fazem um péssimo trabalho ao refleti-las.
A maioria dos americanos quer que o aborto seja legal no início da gravidez, mas ilegal mais tarde. No entanto, as minorias extremistas no Congresso bloqueiam concessões mútuas deste tipo. Assim, mesmo que os democratas conquistassem a presidência e ambas as câmaras do Congresso em novembro (o que é improvável), ainda assim seriam incapazes de aprovar uma lei nacional a respeito do aborto que se alinhasse com a opinião pública. Esta dinâmica também explica por que a aprovação de uma lei federal para o casamento gay só ocorreu dois anos atrás, uma década depois de a Grã-Bretanha e a França o terem feito, e também por que os estados estão seguindo seu próprio caminho na legalização da maconha enquanto o Congresso hesita.
Assim, este novo movimento mostra um lado diferente da política americana. Não é composto por guerreiros do teclado que disputam a atenção online, mas por pessoas que abrem mão dos fins de semana e das noites para tentar persuadir os vizinhos de uma ideia que defendem com profunda convicção. É um movimento participativo e local, o tipo de coisa que Alexis de Tocqueville elogiou depois de visitar o país em 1831. É assim que a democracia americana deve funcionar. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL