Enquanto a rainha Elizabeth II era sepultada, Londres se tornou o centro do mundo. Em um eco distante da grandeza imperial britânica de um século atrás, chefes de Estado de dúzias de países, incluindo o presidente dos EUA, Joe Biden, testemunharam ritos funerários e ladainhas na Abadia de Westminster, enquanto um bilhão ou mais de seus cidadãos assistiam à cerimônia de suas casas.
Seus 70 anos de reinado se iniciaram no ocaso daquela era agora desaparecida e foram repletos de visitas de Estado e recepções – o que também expressa a métrica de seu sucesso. Conforme o rei Charles III inicia seu reinado em meio a crises no Reino Unido, populismo no Ocidente e o desafio diante das democracias apresentado por China e Rússia, esse sucesso comporta uma análise.
Diante disso, a monarquia britânica vai na contramão do espírito dos tempos. A deferência está morta, mas a realeza é construída sobre a pantomima de honrarias arcaicas e cavaleiros trajando casacas. Em uma era de meritocracia, a monarquia fundamenta-se sobre o injustificável privilégio de nascimento.
O populismo significa que as elites se esgotaram, mas a mais conspícua de todas as elites permanece. Política identitária significa que narrativas têm valor, mas a rainha manteve suas impressões guardadas sob sua coleção de chapéus cafonas. Por equidade, o apoio à coroa deveria ter ruído sob Elizabeth, conforme The Economist por vezes imaginou que ocorreria. Em vez disso, a monarquia prosperou.
Uma razão para isso foi a plataforma de suas lutas individuais, regida por sua visão abnegada sobre o serviço público. Elizabeth percebeu como a monarquia seria capaz de costurar unidade e senso de propósito nacional por todas as partes de uma nação cada vez mais díspar.
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Tão assiduamente quanto as reuniões que ela mantinha com os premiês em seus palácios, ela buscou mostrar que os britânicos comuns também são importantes viajando pelo país, protagonizando inaugurações, escutando, acenando e perguntando: “Você veio de longe?”
No exterior, Elizabeth exalava segurança e assertividade. Em uma visita de Estado, em 1961, ela dançou com Kwame Nkrumah, primeiro presidente do Gana e ex-prisioneiro político, sinalizando para os ganenses que eles eram soberanos e, para os britânicos, que os tempos haviam mudado.
Harmonia
Quando, em 2011, Elizabeth se tornou a primeira monarca a visitar a Irlanda, após 90 anos de sua independência e 32 anos depois do assassinato do tio de seu marido, ela se tornou um símbolo improvável de harmonia. Sua diplomacia não se afinava com os equívocos imperiais britânicos – como poderia? Representava, em vez disso, um passo adiante.
Ninguém imagina como Charles se equiparará. Aos 73 anos, ele sempre viveu sob a sombra dos outros: da deslumbrante Diana, sua primeira mulher; e de sua diligente mãe. No passado, o “príncipe de Gafes” expressou autocomiseração demais. Mas alguns dos temas que ele defende há muito, notavelmente o meio ambiente, não parecem mais obsessões de um cara excêntrico. E, nesta semana, ele sinalizou que compreende a necessidade, de agora em diante, de abafar suas opiniões.
Mas o novo rei não precisa ser um estadista para se sair bem-sucedido. E esta é a segunda razão pela qual a monarquia constitucional do Reino Unido tem prosperado. Seus poderes são tão circunscritos quanto o colarinho engomado que a nação lhe empresta. Quanto maior a assertividade com a qual os exerça, menos potentes eles serão.
Escrevendo nos anos 1860, Walter Bagehot, o maior de todos os editores de The Economist, notou que, sob a monarquia constitucional britânica: “Uma república insinuou-se sob os vincos da monarquia”. Os poderes Executivo e Legislativo do governo pertencem ao gabinete e ao Parlamento. A coroa é a parte “dignificada” do Estado, devotada à cerimônia e à formação de mito.
Funeral da rainha Elizabeth II
Em uma era elitista, Bagehot via isso como um disfarce, um mecanismo para satisfazer as massas enquanto os seletos escolhidos tocavam o serviço adiante. Hoje, com direito ao voto universal, ninguém no Reino Unido crê na ficção de Bagehot – e também não creem nisso na Austrália, no Canadá ou em qualquer outro país em que Charles seja o distante chefe de Estado.
Argumentamos no passado que o Reino Unido deveria, portanto, deliberar pelo voto se pretende se tornar uma república. Contudo, a percepção de Bagehot ainda tem força. Políticos imundos vêm e vão, fazendo acordos e vencendo eleições que dividem seus países.
O rei ajuda a manter a política e a nação distintas entre si, e pobre dele se confundir as duas. Comparem isso a Estados Unidos, Brasil e Turquia, envenenados pela fusão entre chefe de Estado e chefe de governo por Donald Trump, Jair Bolsonaro e Recep Tayyip Erdogan.
Obviamente, não é necessária uma monarquia para estabelecer esta separação. Países como a Irlanda se deram bem com um presidente cerimonial, em vez disso. O presidente vem do povo e, em teoria, é laureado com uma honra. Um fracassado ou velhaco pode ser extirpado ou processado. Em certa medida, a história determina essa escolha – seria cômico inventar uma monarquia do nada.
Contudo, a monarquia constitucional possui uma vantagem sobre parlamentarismos com presidências despidas de poder que é a razão cabal do surpreendente sucesso de Elizabeth: sua combinação entre continuidade e tradição, até hoje colorida pelos vestígios místicos de um toque de cura da realeza.
Todos os sistemas políticos precisam administrar mudanças e resolver interesses conflitantes pacificamente e construtivamente. Sistemas que se estagnam acabam entrando em erupção; sistemas que disparam na dianteira deixam para trás grandes partes da sociedade, e elas também entram em erupção.
Sob Elizabeth, o Reino Unido mudou ao ponto de se tornar irreconhecível. O país passou não apenas por transformações sociais e tecnológicas, como outras democracias ocidentais, mas também foi eclipsado enquanto superpotência.
Mais de uma vez, mais recentemente com o Brexit, a política se sufocou. Durante toda essa agitação, a continuidade exibida pela monarquia foi uma influência moderadora. George Orwell, de nenhuma maneira um fantoche do establishment, chamou isso de “válvula de escape para emoções perigosas”, afastando o patriotismo da política, onde o amor à nação pode supurar em intolerância. Impérios em decadência são perigosos. O declínio do Reino Unido foi muito menos traumático do que poderia ter sido.
Coroa empírica
A magia de Elizabeth foi renovar a monarquia silenciosamente por todo esse tempo, e a tarefa mais árdua de Charles será continuar renovando-a. A perspectiva é aterradora.
O legado do império se deteriora e poderia colocar em risco a Commonwealth. Disputas sobre a independência da Escócia espreitam. O Brexit expôs lapsos da fragmentada Constituição britânica; até mesmo o status dos direitos fundamentais dos britânicos está em dúvida.
Charles não tem poder para resolver essas questões sozinho, mas tem um papel a desempenhar no sentido de sua resolução pacífica. E tem sorte de ter tido Elizabeth para mostrar-lhe o caminho. TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO
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