O que mais importa em Moscou nestes dias é o indizível. Ninguém fala abertamente a respeito da guerra na Ucrânia. Tal palavra é censurada e falar é perigoso. Os únicos sinais dos combates que ocorrem mil quilômetros ao sul são cartazes publicitários cobertos com retratos dos heroicos soldados. E ainda assim, a Rússia está no meio de uma guerra.
Da mesma maneira, Moscou não tem testemunhado procissões com manifestantes empunhando tochas. Exibições da meia-suástica “Z”, representando apoio à guerra, são raras. Os soldados não têm organizado pogroms. Vladimir Putin, o envelhecido ditador russo, não reúne multidões de jovens em êxtase nem conclama mobilização em massa. E ainda assim, a Rússia está sob o jugo do fascismo.
Assim como Moscou oculta sua guerra atrás de uma “operação militar especial”, o governo russo também oculta seu fascismo atrás de uma campanha para erradicar “nazistas” na Ucrânia. Não obstante, Timothy Snyder, professor da Universidade Yale, detecta sintomas reveladores: “As pessoas discordam, com frequência veementemente, em relação ao que constitui o fascismo”, escreveu ele recentemente no The New York Times, “mas a Rússia de hoje atende à maioria dos critérios”.
O Kremlin construiu um culto à personalidade em torno de Putin e um culto aos mortos em torno da Grande Guerra Patriótica, de 1941 a 1945. O regime de Putin anseia pela restauração de uma era dourada e pela purificação da Rússia por meio de um expurgo violento e curativo. Também podemos acrescentar à lista de Snyder um ódio à homossexualidade, uma fixação a respeito da família tradicional e uma fé fanática no poder do Estado. Nada disso ocorre naturalmente em um país secular, com forte vocação anarquista e visões permissivas em relação ao sexo.
Entender para onde a Rússia de Putin caminha significa entender de onde ela vem. Por grande parte do governo de Putin, o Ocidente considerou a Rússia um Estado mafioso presidindo sobre uma sociedade atomizada. Essa visão não era equivocada, apesar de incompleta. Uma década atrás, a popularidade de Putin começou a baixar. Ele respondeu se valendo de um pensamento fascista que emergiu após o colapso da União Soviética.
Isso pode ter começado como um cálculo político, mas Putin acabou pego por um ciclo de rancor e ressentimento que prescinde absolutamente da razão — o que culminou em uma ruinosa guerra que muitos pensavam que jamais aconteceria, precisamente porque ela afrontava o equilíbrio entre riscos e recompensas.
Sob a forma de fascismo de Putin, a Rússia está direcionada para um caminho sem volta. Além da retórica da vitimização e do uso da violência, Putin não tem nada a oferecer ao seu povo. Para as democracias ocidentais, esta marcha contínua significa que, enquanto ele estiver no poder, negociações com a Rússia serão fendidas por hostilidade e desdém. Alguns no Ocidente querem que as coisas voltem a ser como antes depois que a guerra acabar, mas não poderá haver nenhuma paz verdadeira com uma Rússia fascista.
Para a Ucrânia, isso significa que a guerra será longa. O objetivo de Putin não é meramente tomar território, mas esmagar o ideal de democracia que floresce entre os vizinhos da Rússia e seu senso de identidade nacional distinta. Ele não pode se permitir a derrota. Mesmo se houver um cessar-fogo, ele está determinado em fazer a Ucrânia fracassar, com novos usos de força se considerá-los necessários. Isso significa que ele usará violência e autoritarismo para impor sua vontade domesticamente. Ele não está atuando apenas para esmagar uma Ucrânia livre, mas também trava uma guerra contra os melhores sonhos de seu próprio povo. Até aqui ele está vencendo.
Guerra é paz
O que é o fascismo russo? O termo fascismo acaba sendo usado com frequência casual. Não possui nenhuma definição absoluta, mas se alimenta de excepcionalismo e ressentimento, uma mistura entre inveja e frustração oriundas de humilhação. No caso da Rússia, a fonte dessa humilhação não é uma derrota para potências estrangeiras, mas um abuso sofrido pelas pessoas nas mãos de seus próprios governantes. Privadas de livre-arbítrio e temendo as autoridades, elas buscam retribuição em uma vingança imaginária contra inimigos apontados pelo Estado.
Fascismo envolve uma teatralidade — pense em todos aqueles comícios e uniformes — impregnada pela emoção da violência real. Em todas as suas expressões, afirma Snyder, o fascismo é caracterizado pelo triunfo da vontade sobre a razão. O título de seu ensaio é “Devemos afirmar: A Rússia é fascista”. Na verdade, os primeiros a falar disso foram os próprios russos. Um deles, Yegor Gaidar, foi o primeiro-ministro pioneiro da era pós-soviética. Em 2007, ele percebeu um espectro ascendendo da nostalgia pós-imperial russa. “A Rússia atravessa uma fase perigosa”, escreveu ele. “Não devemos sucumbir à magia dos números, mas atentar para o fato de que houve um intervalo de 15 anos entre o colapso do Império Alemão e a ascensão de Hitler ao poder, e os 15 anos entre o colapso da URSS e a Rússia de 2006-7 faz a gente pensar…”
Em 2014, Boris Nemtsov, outro político progressista, foi claro: “Agressão e crueldade são atiçadas pela TV ao mesmo tempo que definições cruciais são oferecidas pelo levemente possuído mestre do Kremlin (…). O Kremlin está cultivando e premiando os instintos mais baixos das pessoas, provocando ódio e animosidade. Este inferno não pode terminar pacificamente”.
Um ano depois, Nemtsov, rotulado na época como “traidor nacional”, foi assassinado do lado do Kremlin. Em sua última entrevista, poucas horas antes de sua morte, ele alertou que “a Rússia está se transformando rapidamente em um Estado fascista. Já temos propaganda inspirada na Alemanha nazista. Também possuímos um núcleo de brigadas de assalto (…). Isso é só o início”.
Ninguém sinalizou a crescente influência do fascismo mais estridentemente do que Putin e seus acólitos. Longe das prósperas ruas de Moscou, o Kremlin marcou tanques, pessoas e canais de TV com a letra Z. A meia-suástica foi pintada nas portas das residências de críticos russos de cinema e teatro, promotores da “decadente e degenerada” arte ocidental. Pacientes de hospitais e grupos de crianças, algumas ajoelhadas, foram arranjadas em formações de meias-suásticas para postagens online.
Nos anos 30, Walter Benjamin, um crítico cultural alemão no exílio, analisou o fascismo enquanto encenação. “O resultado lógico do fascismo é a introdução da estética na vida política”, escreveu ele. Essa estética é projetada para suplantar a razão, e sua expressão definitiva seria a guerra.
Hoje, as duas caras da guerra na TV, Vladimir Soloviov e Olga Skabeeva, são caricaturas de propagandistas nazistas. Soloviov traja com frequência uma jaqueta em estilo bávaro, de abotoamento duplo. Skabeeva, severa e com a testa franzida, exala ares de dominatrix. Ambos projetam ódio e agressão. Com seus convidados, eles censuram o Ocidente por sua declaração de guerra contra a Rússia e pedem eloquentemente a Putin que reduza o Ocidente a cinzas valendo-se do poderio do arsenal nuclear russo.
Esse Armageddon fantasioso vem acompanhado de uma violência real, que constitui a base da relação entre o Estado russo e seu povo. Uma pesquisa Levada encomendada pelo Comitê contra a Tortura (agora ele próprio na lista negra) constatou que 10% da população russa foi submetida a tortura praticada por corporações policiais em algum momento. Existe uma cultura de crueldade. Abuso doméstico deixou de ser crime na Rússia. Na primeira semana da guerra, mulheres jovens que protestaram foram humilhadas e abusadas sexualmente dentro de instalações policiais. Cerca de 30% dos russos afirmam que tortura deveria ser permitida.
As atrocidades cometidas pelo Exército russo em Bucha e outras cidades ocupadas não são meros excessos de guerra ou infrações disciplinares, são, em vez disso, características da vida militar disseminada mais amplamente por veteranos das Forças Armadas. Os integrantes da 64.ª Brigada de Fuzileiros Motorizados, que supostamente realizou as atrocidades, foram honrados por Putin com o título de “guardas”, por defender a “pátria-mãe e os interesses do Estado” e elogiados por seu “imenso heroísmo, valor, tenacidade e coragem”. A brigada, cuja base se localiza no Extremo Oriente, é famosa na Rússia por intimidações e abusos.
Como tantas outras coisas que emanam do Kremlin, o fascismo é um projeto de cima para baixo, uma manobra da elite governante, em vez de um movimento de bases. Ele requer uma aceitação passiva, em vez de mobilização de massas. Sua meta é alienar a população e evitar qualquer forma de auto-organização. O Kremlin e os chefões das TVs podem aumentar ou diminuir a intensidade desse fascismo. Nos anos iniciais de sua presidência, Putin usou dinheiro para manter o povo fora da política. Depois que a economia empacou, em 2011-12, e a classe média urbana saiu às ruas para exigir mais direitos, Putin atiçou nacionalismo e ódio. Durante a calmaria política que se seguiu à anexação da Crimeia, em 2014, a estridência do fascismo foi baixada tão subitamente quanto havia sido aumentada.
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Seu ressurgimento, em 2021-22, seguiu-se a um declínio da legitimidade de Putin, aos protestos contra o envenenamento e prisão do líder opositor Alexei Navalni e a uma crescente alienação de jovens russos menos suscetíveis à propaganda televisiva e mais abertos ao Ocidente. Para eles, Putin não passava do velho decrépito, vingativo e corrupto que é dono daquele palácio secreto exibido pelo muito assistido vídeo publicado por Navalni no YouTube em 2021. Putin precisou aumentar novamente o volume de seu fascismo, e a Ucrânia lhe deu meios para isso.
Liberdade é escravidão
O fascismo russo tem raízes profundas, remontando ao início do século 20. Ideias fascistas floresceram entre os brancos emigrados após a Revolução Bolchevique e foram em parte reimportadas para a União Soviética por Stálin após a guerra — ele temia que a vitória sobre o fascismo alcançada juntamente com os americanos e os britânicos trouxesse autonomia e liberdade para seu próprio povo. Portanto, ele transformou o sucesso soviético no triunfo do totalitarismo e do imperialismo nacionalista russo. E redefiniu aliados de guerra como inimigos fascistas determinados em destruir a União Soviética e privá-la de sua glória.
Nas décadas que se seguiram, o fascismo russo foi tolhido pela ideologia comunista oficial, assim como pela experiência pessoal dos russos que combateram os nazistas ao lado dos aliados ocidentais. Após o colapso soviético, no entanto, ambas as limitações desapareceram, e a matéria escura do fascismo foi liberada. Além disso, a elite liberal dos anos 90 rejeitou completamente os antigos valores soviéticos, aniquilando uma forte tradição antifascista na literatura e nas artes.
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Por todo esse tempo, o fascismo havia supurado às ocultas, dentro da KGB. No fim dos anos 90, Alexander Yakovlev, o arquiteto das reformas democráticas empreendidas por Mikhail Gorbachev, se referia abertamente aos serviços de segurança enquanto ninhos do fascismo. “O perigo do fascismo na Rússia é real porque desde 1917 nos acostumamos a viver em um mundo criminoso, com um Estado criminoso no comando. Bandidagem santificada pela ideologia — essa terminologia define tanto comunistas quanto fascistas.”
Tal ambiguidade foi escancarada na TV em “Dezessete instantes de uma primavera”, uma série enormemente popular, em 12 episódios, produzida a mando da KGB nos anos 70. Num primeiro olhar, a série não passa de uma tentativa de redefinir a polícia secreta stalinista. Yuri Andropov, então chefe da KGB e posteriormente líder soviético, quis glamourizar os espiões soviéticos e atrair uma nova geração de rapazes para o serviço. Como resultado, os programas ajudaram a introduzir a estética nazista na cultura popular russa — estética que afinal seria explorada por Putin.
O herói é um espião soviético ficcional que se infiltra no alto comando nazista sob a alcunha de Max Otto von Stierlitz. Ele é um graduado Standartenführer na SS, cuja missão é frustrar um plano secreto forjado entre a CIA e a Alemanha no período próximo ao fim da guerra. Interpretados pelos atores soviéticos mais adorados, os nazistas na série são humanos e atraentes. Viacheslav Tikhonov, que interpretou o personagem Stierlitz, era um modelo de perfeição masculina. Alto e bonitão, com maçãs do rosto perfeitas, ele cintilava dentro de seu impecável uniforme nazista, feito sob medida do Ministério da Defesa soviético.
Os russos comuns ficavam extasiados. O artista e poeta russo Dmitri Prigov escreveu: “Nosso maravilhoso Stierlitz é o homem fascista perfeito e, ao mesmo tempo, o homem soviético perfeito, fazendo transições transgressoras de um para o outro com domínio e uma facilidade irrastreável (…). Ele é o prenúncio de uma nova era — um tempo de mobilidade e maleabilidade”.
Putin foi o beneficiário. Em 1999, pouco antes dele ser nomeado presidente da Rússia, eleitores diziam em pesquisas que Stierlitz seria sua escolha ideal para a função, atrás de Gueorgui Júkov, que comandou o Exército Vermelho na 2.ª Guerra. Putin, um ex-agente da KGB que havia trabalhado na Alemanha Oriental, cultivava a imagem de um Stierlitz moderno.
Quando o instituto de pesquisas VTsIOM, repetiu a sondagem em 2019, Stierlitz figurou em primeiro lugar. “Ocorreu uma inversão”, afirmaram os pesquisadores. “Em 1999, Putin pareceu o candidato preferido porque era parecido com Stierlitz; em 2019, a imagem de Stierlitz permanece relevante porque está sendo implementada pelo político mais popular do país.” Em 24 de junho deste ano, uma estátua de Stierlitz foi inaugurada em frente à sede do Serviço de Inteligência Exterior (SVR), que era parte da KGB soviética.
Para Putin, a estética fascista é correspondida por uma filosofia fascista distintamente russa. Ele e seus ex-colegas de KGB abraçaram o capitalismo e combateram liberais e socialistas. E projetaram a humilhação que sofreram na primeira década que se seguiu ao colapso soviético sobre todo o país, retratando o fim da Guerra Fria como resultado de traição e uma derrota.
Seu profeta é Ivan Iliin, um pensador do início do século 20 que foi mandado para o exílio pelos bolcheviques nos anos 1920 e abraçou o fascismo na Itália e na Alemanha. Iliin via o fascismo como “um fenômeno necessário e inevitável (…) com base sobre um senso salutar de patriotismo nacional”. Ele fornecia justificativa para o autodeclarado papel dos líderes fascistas enquanto guardiões do Estado. Enquanto tal, eles tinham direito de controlar seus recursos.
No fim da 2.ª Guerra, Iliin rejeitou o que considerou erros de Hitler, como o ateísmo e os crimes do líder nazista, incluindo o extermínio de judeus. Mas Iliin manteve sua fé na ideia fascista de ressurgimento nacional. Em 1948, ele escreveu que “o fascismo é um fenômeno complexo e multifacetado — e, historicamente falando, longe de ser superado”. Seguindo essa orientação, Putin abraçou a religião, rejeitou o antissemitismo e deixou de lado a ideia de uma liderança coletiva em nome do seu próprio governo, confirmado por meio de plebiscitos.
O livro de Iliin “Nossas tarefas” foi recomendado pelo Kremlin como leitura essencial para autoridades do governo em 2013. A obra termina com um curto ensaio dedicado a um futuro líder russo. Democracia em estilo ocidental e eleições trariam ruína à Rússia, escreveu Iliin. Somente “o poder estatal unificado e forte, ditatorial em escopo e nacionalista na essência” seria capaz de salvar o país do caos.
A obra de Iliin que, afirma-se, Putin leu e releu é “O que o desmembramento da Rússia significaria para o mundo”, escrita em 1950. Neste texto, o autor argumenta que potências ocidentais tentarão “colocar em prática seu experimento hostil e ridículo mesmo no caos pós-bolchevique, apresentando-o ardilosamente como o triunfo supremo da ‘liberdade’, da ‘democracia’ e do ‘federalismo’ (…). A propaganda alemã investiu dinheiro e esforço demais no separatismo ucraniano (e talvez não apenas ucraniano)”.
Em 2005, em seguida ao primeiro levante popular na Ucrânia, conhecido como Revolução Laranja, Putin classificou o colapso da União Soviética como a maior catástrofe geopolítica do século 20. Valendo-se de sentimentos anti-Ucrânia dentro da Rússia, ele colocou, então, seu país no caminho da confrontação com o Ocidente. Naquele mesmo ano, o corpo de Iliin foi trazido da Suíça, onde ele havia se exilado em 1954, para a Rússia. Relatou-se que Putin pagou pela lápide com suas próprias economias. Em 2009, Putin depositou flores sobre o túmulo de Iliin.
Ignorância é força
O fato de Putin ter adotado métodos e pensamentos fascistas passa uma mensagem alarmante para o restante do mundo. O fascismo funciona criando inimigos, transformando a Rússia em uma corajosa vítima do ódio alheio mesmo enquanto justifica sentimentos de ódio em relação a inimigos reais e imaginados, domésticos e estrangeiros.
Dmitri Medvedev, ex-presidente e “modernizador”, postou recentemente nas redes sociais: “Odeio eles. Esses bastardos e degenerados. Eles nos querem mortos, querem matar a Rússia (…). Farei tudo o que puder para fazê-los desaparecer.” Medvedev não se deu o trabalho de dizer quem eram eles. Mas a hostilidade da Rússia tem três alvos: o Ocidente liberal, a Ucrânia e traidores domésticos. E todos eles devem ter em conta o que o fascismo russo significa.
Putin tenta há muito minar as democracias ocidentais. Ele deu apoio a partidos de extrema direita na Europa, como o Reagrupamento Nacional, na França, o Fidesz, na Hungria e a Liga Norte, na Itália. E interferiu em eleições americanas com o objetivo de ajudar Donald Trump a derrotar os democratas.
Mesmo se os combates na Ucrânia cessarem, um acordo com as democracia ocidentais não deixará satisfeito o devoto de Iliin no Kremlin. Putin e seus homens farão de tudo em seu poder para combater o liberalismo e semear a discórdia.
Há séculos a Rússia tem sido em parte europeia, mas o analista político Kirill Rogov escreveu recentemente que a guerra na Ucrânia possibilitou a Putin cortar essa parte da identidade russa. Enquanto Putin estiver no poder, a Rússia construirá alianças com China, Irã e outros países iliberais. E estará, como sempre esteve, na vanguarda ideológica.
A perspectiva para a Ucrânia é ainda mais sombria. Poucas semanas após o início da guerra, a agência de notícias estatal Ria Novosti publicou um artigo no qual conclamava o expurgo “do componente étnico de autoidentificação entre as pessoas que povoam os territórios históricos de Malorossia e Novorossia (Ucrânia e Belarus) iniciado pelos poderes soviéticos”.
A Ucrânia, afirmou Putin, foi fonte de vírus mortíferos e abrigou laboratórios biológicos financiados pelos americanos em que foram realizados experimentos com cepas do coronavírus e da bactéria do cólera. “Armas biológicas estavam sendo criadas em proximidade direta à Rússia”, alertou ele.
Na TV estatal russa, os ucranianos são chamados de vermes. Em um programa recente, Soloviov fez piada: “Quando um veterinário está tirando vermes de um gato, para o veterinário, isso é uma operação especial, para os vermes, uma guerra, e para o gato, uma purificação.” Margarita Simonyan, diretora do RT, uma rede de TV internacional controlada pelo Kremlin, declarou que “a Ucrânia não pode continuar a existir”.
O propósito da invasão não é apenas capturar território, mas também expurgar a Ucrânia de sua identidade própria, que ameaça a identidade da Rússia enquanto nação imperial. Juntamente com suas forças punitivas, o Kremlin também despachou para a Ucrânia centenas de professores para reeducar as crianças ucranianas nos territórios ocupados. Moscou equipara a soberania independente da Ucrânia ao nazismo. Ou a Ucrânia deixa de existir enquanto Estado-nação ou a própria Rússia será infectada pela ideia de emancipação que destruirá sua identidade imperial.
A perspectiva mais sombria de todas paira sobre a Rússia. Putin não planejou uma guerra de desgaste. Ele imaginou que um ataque contra Kiev levaria rapidamente à formação de um novo regime na Ucrânia e à submissão da sociedade ucraniana à sua vontade. Até aqui, Putin não tem conseguido derrotar a Ucrânia. Mas foi bem-sucedido em derrotar a Rússia.
A narrativa a respeito de contaminação corporal e expurgo não se limita à Ucrânia. A Rússia também contém elementos estrangeiros — traidores devoradores de ostras e foie-gras, que vivem com a mente no Ocidente e foram infectados com ideias de fluidez de gênero. O povo russo, declarou Putin em um discurso transmitido em cadeia nacional, “simplesmente os cuspirá como insetos que entraram em sua boca”, o que ocasionará “uma natural e necessária autodesintoxicação da sociedade”.
Como Stálin, Putin é desconfiado e teme o povo. O povo precisa ser controlado, manipulado e, quando necessário, suprimido. Ele exclui as pessoas das reais tomadas de decisão. Conforme argumenta o sociólogo russo Greg Yudin, o povo é necessário para o ritual eleitoral que demonstra a legitimidade do governante, mas no restante do tempo, o povo deve permanecer invisível. Yudin chama essa atitude de “povo à disposição”.
A guerra mudou tudo. Como Hitler disse a Goebbels na primavera de 1943, “a guerra… nos possibilitou solucionar toda uma série de problemas que jamais poderiam ser solucionados em tempos normais”. Rapidamente Putin foi capaz de impor uma ditadura militar de facto e a censura. Ele bloqueou o Facebook, o Twitter, o Instagram e qualquer meio de comunicação independente remanescente, isolando o país da venenosa influência do Ocidente, e perseguiu ou expulsou do país qualquer um que tenha se objetado à guerra. Qualquer declaração pública que desafie a versão do Kremlin dos acontecimentos na Ucrânia é punível com sentença de até 15 anos de prisão.
Gregori Asmolov, do King’s College London, argumenta que essa nova realidade política era inimaginável meses atrás e constitui a realização mais significativa do Kremlin durante o conflito. A guerra possibilitou a Putin transformar a Rússia em o que Asmolov classifica como “sociedade desconectiva”. Ele escreveu que “esses esforços são impulsionados pela noção de que é impossível proteger a legitimidade interna da atual liderança e manter os cidadãos leais se a Rússia permanecer relativamente aberta e conectada ao sistema global interligado”.
Até aqui, o objetivo de Putin tem sido paralisar a sociedade russa, em vez de reunir as massas. A demonstração de unidade e mobilização é alcançada pela TV que opera em um espaço de informação livre de vozes alternativas. Entre os telespectadores — principalmente pessoas com mais de 60 anos — mais de 80% apoiam a guerra. Entre os jovens na faixa de 18 a 24 anos, que consomem notícias pela internet, esse índice é inferior a 50%. Talvez isso explique por que os ícones da Operação-Z não sejam homens e mulheres trabalhadores, mas uma babushka que empunha uma bandeira vermelha e seu “neto” de 8 anos (ele retratada em murais e ele impresso em embalagens de chocolate), que representam telespectadores ideais ou figurantes de um reality-show.
A combinação entre medo e propaganda produz o que Rogov classifica como “consenso imposto”. O Estado divulga pesquisas de opinião constatando que a maioria dos russos apoia a “operação militar especial”. A principal razão pela qual as pessoas apoiam Putin é elas pensarem que todos os outros cidadãos também o apoiam. A necessidade de pertencimento tem poder. Mesmo quando as pessoas têm acesso às informações, elas “as ignoram ou as racionalizam simplesmente, apenas para evitar destruir o conceito de individualidade, país e poder (…) criado pela propaganda”, nota a socióloga Elena Koneva.
O motor do fascismo não tem marcha à ré. Putin não pode recuar para um tipo de autoritarismo com base na realidade, pois a expansão é a natureza do fascismo, que busca se expandir tanto geograficamente quanto dentro das vidas privadas das pessoas. À medida que a guerra se arrasta e as baixas se acumulam, a dúvida é se Putin será capaz de mobilizar a maioria passiva ou se essa maioria silenciosa começará a demonstrar alguma insatisfação. As elites no Kremlin, no Exército e nos serviços de segurança estarão atentas.
Dois mais dois são quatro
Victor Klemperer, um judeu alemão que lutou na 1.ª Guerra e sobreviveu à 2.ª, escreveu que “o nazismo impregnou a carne e o sangue das pessoas através de palavras, expressões e frases que lhes foram impostas por um milhão de repetições”. Seu livro “A linguagem do 3.º Reich” descreve como o prefixo dissociante ent- (des-) ganhou proeminência na Alemanha durante a guerra.
Enquanto tanques russos atacavam a Ucrânia nas primeiras horas de 24 de fevereiro, Putin iniciou sua guerra contra a Ucrânia com esse mesmo prefixo dissociante. O objetivo, afirmou ele, era denatsifikatsia (desnazificação) e demilitarizatsia (desmilitarização). A agência de notícias estatal Ria Novosti notou posteriormente que “a desnazificação levará inevitavelmente também à desucranização”.
“A Alemanha quase foi destruída pelo nazismo”, escreveu Klemperer. “A missão de curá-la dessa doença fatal é qualificada atualmente como ‘desnazificação’. Espero — e realmente acredito — que esta palavra nefasta (…) desapareça e passe a existir apenas na história assim que tenha desempenhado sua atual função (…). Mas isso não ocorrerá ainda por algum tempo, porque não apenas as ações nazistas têm de desaparecer, mas também (…) a típica maneira nazista de pensar, assim como seu campo de reprodução: a linguagem do nazismo.”/ TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL