Thomas Friedman: Uma invasão a Gaza e a mentalidade ‘de uma vez por todas’ são equívocos para Israel


Se entrar em Gaza agora, Israel mandará pelos ares os Acordos de Abraão, desestabilizará importantes aliados dos EUA na região e impossibilitará a normalização com os sauditas — reveses estratégicos enormes

Por Thomas Friedman
Atualização:

THE NEW YORK TIMES- Quando a correspondente do Times em Israel Isabel Kershner pediu recentemente para o motorista de tanque do Exército israelense Shai Levy, de 37 anos, descrever o propósito da aguardada invasão israelense a Gaza, ele disse algo que realmente me prendeu a atenção. “Restaurar a honra de Israel”, afirmou ele. “Os cidadãos contam conosco para derrotar o Hamas e remover a ameaça de Gaza de uma vez por todas.”

Isso prendeu minha atenção porque, ao longo dos anos, eu aprendi que cinco das palavras mais perigosas no Oriente Médio são “de uma vez por todas”.

Todos esses movimentos islamistas-jihadistas — Taleban, Hamas, Estado Islâmico, Al-Qaeda, Jihad Islâmica na Palestina, Hezbollah, os houthis — possuem raízes culturais, sociais, religiosas e políticas profundas em suas sociedades. E têm acesso a amplos estoques de jovens humilhados, muitos dos quais nunca tiveram um emprego, escolaridade ou relacionamento romântico: uma combinação letal que os torna fáceis de manipular para o caos.

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Tanques israelenses se preparam para ofensiva terrestre na fronteira com a Faixa de Gaza, no sul de Israel  Foto: Sergey Ponomarev / NYT

E é por esse motivo que até hoje nenhum desses movimentos foi eliminado “de uma vez por todas”. Eles podem, contudo, ser isolados, diminuídos, deslegitimados e decapitados — como os Estados Unidos fizeram com o Estado Islâmico e a Al-Qaeda. Mas isso requer paciência, precisão, muitos aliados e alternativas que tenham legitimidade dentro das sociedades das quais esses jovens emergem.

Então permitam-me afirmar claramente e em bom tom o que eu tenho dito furtivamente nas minhas colunas recentes: eu fiquei do lado do presidente Joe Biden quando ele disse ao “60 Minutes” que seria um “grande erro” para Israel “ocupar Gaza novamente”.

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Eu acredito que esse movimento poderia transformar a humilhante derrota tática de Israel pelas mãos do Hamas, que incluiu um barbarismo inimaginável, numa crise estratégica moral e militar a longo prazo, capaz de resultar numa cilada para Israel em Gaza, atrair os EUA para outra guerra no Oriente Médio e minar três dos mais importantes interesses da política externa americana neste momento: ajudar a Ucrânia a se libertar da Rússia para se unir ao Ocidente; conter a China; e forjar um bloco pró-EUA que inclua Egito, Israel, os países árabes moderados e a Arábia Saudita, que poderia servir de contrapeso ao Irã e combater a ameaça global do islamismo radical.

O secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, participa de coletiva de imprensa com o primeiro-ministro de Israel, Binyamin Netanyahu, depois de uma reunião bilateral em Tel Aviv, Israel  Foto: Jacquelyn Martin / AP

Instabilidade

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Se entrar em Gaza agora, Israel mandará pelos ares os Acordos de Abraão, desestabilizará dois dos mais importantes aliados dos EUA na região (Egito e Jordânia) e impossibilitará a normalização com os sauditas — reveses estratégicos enormes. Uma invasão israelense também possibilitaria ao Hamas inflamar verdadeiramente a Cisjordânia e agravar confrontos entre os colonos judeus e os palestinos. Tudo isso junto colaborará diretamente com a estratégia do Irã de atrelar Israel ao exagero imperialista ao mesmo tempo que enfraquece o cerne da democracia judaica.

O objetivo estratégico número 1 do Irã em relação a Israel sempre foi garantir que os israelenses permaneçam enrascados na Cisjordânia, sintam-se motivados a voltar a ocupar o sul do Líbano e, nos sonhos mais febris de Teerã, voltem a ocupar Gaza. Esse Estado de Israel ficaria tão enfraquecido moralmente, economicamente e militarmente que jamais ameaçaria o programa nuclear do Irã e suas ambições hegemônicas.

O que Israel deve fazer para garantir que um ataque como o lançado pelo Hamas nunca volte a ocorrer? Neste momento, eu não sei dizer. Eu só sei que, seja qual for, a resposta não é mobilizar 360 mil reservistas israelenses traumatizados para lançar uma guerra urbana em um dos lugares mais densamente povoados no planeta. Isso arrasará a economia de Israel e sua posição internacional.

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Israelenses participam do funeral de uma família que foi morta no Kibutz Kfar Azza, próximo da fronteira com a Faixa de Gaza, por terroristas do Hamas  Foto: Ohad Zwigenberg/ AP

Todos esses dilemas devem estimular o presidente Biden a afinar sua posição em relação à crise.

Biden tem de se dar conta de que Binyamin Netanyahu é incapaz de administrar esta guerra como um jogador racional. Depois de uma derrota tão colossal, a coisa mais poderosa e unificadora que Netanyahu poderia ter feito seria convocar novas eleições em Israel para daqui a seis ou nove meses — e anunciar que não concorreria. Ele estaria encerrando sua carreira na política e portanto os israelenses poderiam ter certeza de que qualquer decisão a respeito de Gaza e do Hamas que ele tomasse neste momento teria em mente apenas o interesse nacional de Israel. Netanyahu não teria em mente seu próprio interesse, de não ser preso pelas acusações de corrupção a que responde, o que requereria dele se aferrar-se aos malucos direitistas em seu governo (que realmente fantasiam a respeito de Israel reocupar Gaza e reconstruir assentamentos coloniais judaicos por lá) buscando alguma vitória militar retumbante a curto prazo que ele poderia mostrar para o eleitorado como uma compensação ao desastre recente.

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Conforme um dos melhores analistas militares de Israel, Amos Harel, do Haaretz, escreveu na sexta-feira: “Há uma combinação incomum de pessoas no topo em Israel. De um lado, um primeiro-ministro inepto, uma figura quase shakespeareana diante do perigo pessoal de uma conclusão infame para uma carreira, pode-se argumentar, brilhante. Diante dele há uma corporação militar comovida e consumida em sentimentos de culpa (e ainda se Netanyahu se incomodasse em mostrar uma pitada desses sentimentos). Não é uma receita perfeita para uma tomada de decisão ponderada”.

Se o governo israelense anunciasse hoje que decidiu desistir de invadir Gaza neste momento e procurar maneiras mais cirúrgicas de eliminar ou capturar lideranças do Hamas ao mesmo tempo que tenta arquitetar a troca de mais de 150 reféns israelenses e de outras nacionalidades que o Hamas mantém, isso evitaria traumatizar sua própria sociedade e também preservaria os civis palestinos em Gaza — o que daria a Israel e seus aliados tempo para pensar bem a respeito de como construir, juntamente com os palestinos, uma alternativa legítima ao Hamas.

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Apoio

Um movimento desse tipo renderia a Israel muito apoio globalmente e permitiria ao mundo ver o Hamas como o que ele é: o Estado Islâmico dos territórios palestinos.

“No mundo de hoje, qualquer coisa que ocorra num campo de batalha pode ser subvertida no reino da informação, então a batalha narrativa é tão importante quanto os combates em campo”, afirmou John Arquilla, ex-professor de estratégia da Escola de Pós-Graduação Naval. “Se Israel exagerar em Gaza, isso drenará qualquer bom sentimento residual sobre a existência de Israel, e essa é a grande aposta do Hamas. Israel construiu muito, contribui muito para o mundo, desfruta de muito respeito global e tem muito ainda com que contribuir. Arriscar tudo isso em um ato de vingança ou raiva, que não alterará fundamentalmente seus dilemas estratégicos, é excepcionalmente insensato.”

Mas, como eu disse, se Israel ainda decidir que deve entrar em Gaza para capturar e matar a liderança do Hamas, deve fazer isso apenas se houver uma liderança palestina legítima para substituir o Hamas — para que Israel não governe eternamente o enclave. Se isso acontecer, cada dia que não fizer sol em Gaza, que a água não sair das torneiras, que não houver eletricidade e a fome ou a doença se disseminarem será culpa de todos os israelenses e todos os judeus no planeta. Israel está pronto para esse fardo?

Ainda que esteja correto em apoiar Israel, Biden tem de obter respostas claras de Netanyahu agora, antes que seja tarde demais: uma vez que Israel derrubar o Hamas, quem governará Gaza? Se pretende governar Gaza, Israel pagará pela reconstrução da infraestrutura que está destruindo? Se não, quem pagará? Por quanto tempo Israel pretende permitir a crise humanitária no sul de Gaza? Israel planeja construir assentamentos em Gaza? Israel respeitará as fronteiras de Gaza? Israel tem algum plano para ajudar a reconstruir a Autoridade Palestina na Cisjordânia?

A Autoridade Palestina na Cisjordânia, sob liderança do presidente Mahmoud Abbas, é fraca, corrupta e cada vez mais ilegítima; é incapaz de administrar a Cisjordânia, quem dirá Gaza — o que atende a um interesse de Netanyahu, para que ele sempre pudesse dizer que não tem nenhum parceiro para a paz.

Mas Netanyahu não é o único culpado. Acredite se quiser, pessoal, mas os palestinos também têm responsabilidade, assim como a corrupção tolerada pela Autoridade Palestina; e o fato de Abbas ter banido o líder mais eficaz que a entidade já teve, o ex-primeiro-ministro Salam Fayyad, também é um fator importantíssimo — algo que todos os amigos dos palestinos deveriam gritar em vez de simplesmente colocar a culpa em Israel.

O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, durante uma reunião bilateral com o primeiro-ministro de Israel, Binyamin Netanyahu  Foto: Susan Walsh / AP

Mas dito isso tudo, Israel tem de repensar completamente a maneira com que se relaciona com os palestinos na Cisjordânia — e portanto todo o movimento colonial — se quiser substituir o Hamas em Gaza. Se o movimento colonial continuar a definir os termos do que é permissível na política israelense, outro desastre espreita a Cisjordânia.

Minha conclusão? Faça a seguinte pergunta: se Israel anunciasse hoje que está desistindo, por agora, de uma invasão total a Gaza, quem ficaria feliz, quem ficaria aliviado e quem ficaria incomodado? O Irã ficaria totalmente frustrado; o Hezbollah, desapontado; o Hamas, devastado — todo seu plano de guerra teria resultado em nada — e Vladimir Putin seria esmagado, porque Israel não queimaria munições e armamentos que os EUA precisam enviar para a Ucrânia. Os colonos na Cisjordânia ficariam furiosos.

Enquanto isso, os pais de todos os soldados e reféns israelenses ficariam aliviados, todos os palestinos pegos no fogo cruzado em Gaza ficariam aliviados e todos os amigos e aliados de Israel no mundo — começando por Joseph R. Biden — ficariam aliviados. Tenho dito. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

THE NEW YORK TIMES- Quando a correspondente do Times em Israel Isabel Kershner pediu recentemente para o motorista de tanque do Exército israelense Shai Levy, de 37 anos, descrever o propósito da aguardada invasão israelense a Gaza, ele disse algo que realmente me prendeu a atenção. “Restaurar a honra de Israel”, afirmou ele. “Os cidadãos contam conosco para derrotar o Hamas e remover a ameaça de Gaza de uma vez por todas.”

Isso prendeu minha atenção porque, ao longo dos anos, eu aprendi que cinco das palavras mais perigosas no Oriente Médio são “de uma vez por todas”.

Todos esses movimentos islamistas-jihadistas — Taleban, Hamas, Estado Islâmico, Al-Qaeda, Jihad Islâmica na Palestina, Hezbollah, os houthis — possuem raízes culturais, sociais, religiosas e políticas profundas em suas sociedades. E têm acesso a amplos estoques de jovens humilhados, muitos dos quais nunca tiveram um emprego, escolaridade ou relacionamento romântico: uma combinação letal que os torna fáceis de manipular para o caos.

Tanques israelenses se preparam para ofensiva terrestre na fronteira com a Faixa de Gaza, no sul de Israel  Foto: Sergey Ponomarev / NYT

E é por esse motivo que até hoje nenhum desses movimentos foi eliminado “de uma vez por todas”. Eles podem, contudo, ser isolados, diminuídos, deslegitimados e decapitados — como os Estados Unidos fizeram com o Estado Islâmico e a Al-Qaeda. Mas isso requer paciência, precisão, muitos aliados e alternativas que tenham legitimidade dentro das sociedades das quais esses jovens emergem.

Então permitam-me afirmar claramente e em bom tom o que eu tenho dito furtivamente nas minhas colunas recentes: eu fiquei do lado do presidente Joe Biden quando ele disse ao “60 Minutes” que seria um “grande erro” para Israel “ocupar Gaza novamente”.

Eu acredito que esse movimento poderia transformar a humilhante derrota tática de Israel pelas mãos do Hamas, que incluiu um barbarismo inimaginável, numa crise estratégica moral e militar a longo prazo, capaz de resultar numa cilada para Israel em Gaza, atrair os EUA para outra guerra no Oriente Médio e minar três dos mais importantes interesses da política externa americana neste momento: ajudar a Ucrânia a se libertar da Rússia para se unir ao Ocidente; conter a China; e forjar um bloco pró-EUA que inclua Egito, Israel, os países árabes moderados e a Arábia Saudita, que poderia servir de contrapeso ao Irã e combater a ameaça global do islamismo radical.

O secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, participa de coletiva de imprensa com o primeiro-ministro de Israel, Binyamin Netanyahu, depois de uma reunião bilateral em Tel Aviv, Israel  Foto: Jacquelyn Martin / AP

Instabilidade

Se entrar em Gaza agora, Israel mandará pelos ares os Acordos de Abraão, desestabilizará dois dos mais importantes aliados dos EUA na região (Egito e Jordânia) e impossibilitará a normalização com os sauditas — reveses estratégicos enormes. Uma invasão israelense também possibilitaria ao Hamas inflamar verdadeiramente a Cisjordânia e agravar confrontos entre os colonos judeus e os palestinos. Tudo isso junto colaborará diretamente com a estratégia do Irã de atrelar Israel ao exagero imperialista ao mesmo tempo que enfraquece o cerne da democracia judaica.

O objetivo estratégico número 1 do Irã em relação a Israel sempre foi garantir que os israelenses permaneçam enrascados na Cisjordânia, sintam-se motivados a voltar a ocupar o sul do Líbano e, nos sonhos mais febris de Teerã, voltem a ocupar Gaza. Esse Estado de Israel ficaria tão enfraquecido moralmente, economicamente e militarmente que jamais ameaçaria o programa nuclear do Irã e suas ambições hegemônicas.

O que Israel deve fazer para garantir que um ataque como o lançado pelo Hamas nunca volte a ocorrer? Neste momento, eu não sei dizer. Eu só sei que, seja qual for, a resposta não é mobilizar 360 mil reservistas israelenses traumatizados para lançar uma guerra urbana em um dos lugares mais densamente povoados no planeta. Isso arrasará a economia de Israel e sua posição internacional.

Israelenses participam do funeral de uma família que foi morta no Kibutz Kfar Azza, próximo da fronteira com a Faixa de Gaza, por terroristas do Hamas  Foto: Ohad Zwigenberg/ AP

Todos esses dilemas devem estimular o presidente Biden a afinar sua posição em relação à crise.

Biden tem de se dar conta de que Binyamin Netanyahu é incapaz de administrar esta guerra como um jogador racional. Depois de uma derrota tão colossal, a coisa mais poderosa e unificadora que Netanyahu poderia ter feito seria convocar novas eleições em Israel para daqui a seis ou nove meses — e anunciar que não concorreria. Ele estaria encerrando sua carreira na política e portanto os israelenses poderiam ter certeza de que qualquer decisão a respeito de Gaza e do Hamas que ele tomasse neste momento teria em mente apenas o interesse nacional de Israel. Netanyahu não teria em mente seu próprio interesse, de não ser preso pelas acusações de corrupção a que responde, o que requereria dele se aferrar-se aos malucos direitistas em seu governo (que realmente fantasiam a respeito de Israel reocupar Gaza e reconstruir assentamentos coloniais judaicos por lá) buscando alguma vitória militar retumbante a curto prazo que ele poderia mostrar para o eleitorado como uma compensação ao desastre recente.

Conforme um dos melhores analistas militares de Israel, Amos Harel, do Haaretz, escreveu na sexta-feira: “Há uma combinação incomum de pessoas no topo em Israel. De um lado, um primeiro-ministro inepto, uma figura quase shakespeareana diante do perigo pessoal de uma conclusão infame para uma carreira, pode-se argumentar, brilhante. Diante dele há uma corporação militar comovida e consumida em sentimentos de culpa (e ainda se Netanyahu se incomodasse em mostrar uma pitada desses sentimentos). Não é uma receita perfeita para uma tomada de decisão ponderada”.

Se o governo israelense anunciasse hoje que decidiu desistir de invadir Gaza neste momento e procurar maneiras mais cirúrgicas de eliminar ou capturar lideranças do Hamas ao mesmo tempo que tenta arquitetar a troca de mais de 150 reféns israelenses e de outras nacionalidades que o Hamas mantém, isso evitaria traumatizar sua própria sociedade e também preservaria os civis palestinos em Gaza — o que daria a Israel e seus aliados tempo para pensar bem a respeito de como construir, juntamente com os palestinos, uma alternativa legítima ao Hamas.

Apoio

Um movimento desse tipo renderia a Israel muito apoio globalmente e permitiria ao mundo ver o Hamas como o que ele é: o Estado Islâmico dos territórios palestinos.

“No mundo de hoje, qualquer coisa que ocorra num campo de batalha pode ser subvertida no reino da informação, então a batalha narrativa é tão importante quanto os combates em campo”, afirmou John Arquilla, ex-professor de estratégia da Escola de Pós-Graduação Naval. “Se Israel exagerar em Gaza, isso drenará qualquer bom sentimento residual sobre a existência de Israel, e essa é a grande aposta do Hamas. Israel construiu muito, contribui muito para o mundo, desfruta de muito respeito global e tem muito ainda com que contribuir. Arriscar tudo isso em um ato de vingança ou raiva, que não alterará fundamentalmente seus dilemas estratégicos, é excepcionalmente insensato.”

Mas, como eu disse, se Israel ainda decidir que deve entrar em Gaza para capturar e matar a liderança do Hamas, deve fazer isso apenas se houver uma liderança palestina legítima para substituir o Hamas — para que Israel não governe eternamente o enclave. Se isso acontecer, cada dia que não fizer sol em Gaza, que a água não sair das torneiras, que não houver eletricidade e a fome ou a doença se disseminarem será culpa de todos os israelenses e todos os judeus no planeta. Israel está pronto para esse fardo?

Ainda que esteja correto em apoiar Israel, Biden tem de obter respostas claras de Netanyahu agora, antes que seja tarde demais: uma vez que Israel derrubar o Hamas, quem governará Gaza? Se pretende governar Gaza, Israel pagará pela reconstrução da infraestrutura que está destruindo? Se não, quem pagará? Por quanto tempo Israel pretende permitir a crise humanitária no sul de Gaza? Israel planeja construir assentamentos em Gaza? Israel respeitará as fronteiras de Gaza? Israel tem algum plano para ajudar a reconstruir a Autoridade Palestina na Cisjordânia?

A Autoridade Palestina na Cisjordânia, sob liderança do presidente Mahmoud Abbas, é fraca, corrupta e cada vez mais ilegítima; é incapaz de administrar a Cisjordânia, quem dirá Gaza — o que atende a um interesse de Netanyahu, para que ele sempre pudesse dizer que não tem nenhum parceiro para a paz.

Mas Netanyahu não é o único culpado. Acredite se quiser, pessoal, mas os palestinos também têm responsabilidade, assim como a corrupção tolerada pela Autoridade Palestina; e o fato de Abbas ter banido o líder mais eficaz que a entidade já teve, o ex-primeiro-ministro Salam Fayyad, também é um fator importantíssimo — algo que todos os amigos dos palestinos deveriam gritar em vez de simplesmente colocar a culpa em Israel.

O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, durante uma reunião bilateral com o primeiro-ministro de Israel, Binyamin Netanyahu  Foto: Susan Walsh / AP

Mas dito isso tudo, Israel tem de repensar completamente a maneira com que se relaciona com os palestinos na Cisjordânia — e portanto todo o movimento colonial — se quiser substituir o Hamas em Gaza. Se o movimento colonial continuar a definir os termos do que é permissível na política israelense, outro desastre espreita a Cisjordânia.

Minha conclusão? Faça a seguinte pergunta: se Israel anunciasse hoje que está desistindo, por agora, de uma invasão total a Gaza, quem ficaria feliz, quem ficaria aliviado e quem ficaria incomodado? O Irã ficaria totalmente frustrado; o Hezbollah, desapontado; o Hamas, devastado — todo seu plano de guerra teria resultado em nada — e Vladimir Putin seria esmagado, porque Israel não queimaria munições e armamentos que os EUA precisam enviar para a Ucrânia. Os colonos na Cisjordânia ficariam furiosos.

Enquanto isso, os pais de todos os soldados e reféns israelenses ficariam aliviados, todos os palestinos pegos no fogo cruzado em Gaza ficariam aliviados e todos os amigos e aliados de Israel no mundo — começando por Joseph R. Biden — ficariam aliviados. Tenho dito. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

THE NEW YORK TIMES- Quando a correspondente do Times em Israel Isabel Kershner pediu recentemente para o motorista de tanque do Exército israelense Shai Levy, de 37 anos, descrever o propósito da aguardada invasão israelense a Gaza, ele disse algo que realmente me prendeu a atenção. “Restaurar a honra de Israel”, afirmou ele. “Os cidadãos contam conosco para derrotar o Hamas e remover a ameaça de Gaza de uma vez por todas.”

Isso prendeu minha atenção porque, ao longo dos anos, eu aprendi que cinco das palavras mais perigosas no Oriente Médio são “de uma vez por todas”.

Todos esses movimentos islamistas-jihadistas — Taleban, Hamas, Estado Islâmico, Al-Qaeda, Jihad Islâmica na Palestina, Hezbollah, os houthis — possuem raízes culturais, sociais, religiosas e políticas profundas em suas sociedades. E têm acesso a amplos estoques de jovens humilhados, muitos dos quais nunca tiveram um emprego, escolaridade ou relacionamento romântico: uma combinação letal que os torna fáceis de manipular para o caos.

Tanques israelenses se preparam para ofensiva terrestre na fronteira com a Faixa de Gaza, no sul de Israel  Foto: Sergey Ponomarev / NYT

E é por esse motivo que até hoje nenhum desses movimentos foi eliminado “de uma vez por todas”. Eles podem, contudo, ser isolados, diminuídos, deslegitimados e decapitados — como os Estados Unidos fizeram com o Estado Islâmico e a Al-Qaeda. Mas isso requer paciência, precisão, muitos aliados e alternativas que tenham legitimidade dentro das sociedades das quais esses jovens emergem.

Então permitam-me afirmar claramente e em bom tom o que eu tenho dito furtivamente nas minhas colunas recentes: eu fiquei do lado do presidente Joe Biden quando ele disse ao “60 Minutes” que seria um “grande erro” para Israel “ocupar Gaza novamente”.

Eu acredito que esse movimento poderia transformar a humilhante derrota tática de Israel pelas mãos do Hamas, que incluiu um barbarismo inimaginável, numa crise estratégica moral e militar a longo prazo, capaz de resultar numa cilada para Israel em Gaza, atrair os EUA para outra guerra no Oriente Médio e minar três dos mais importantes interesses da política externa americana neste momento: ajudar a Ucrânia a se libertar da Rússia para se unir ao Ocidente; conter a China; e forjar um bloco pró-EUA que inclua Egito, Israel, os países árabes moderados e a Arábia Saudita, que poderia servir de contrapeso ao Irã e combater a ameaça global do islamismo radical.

O secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, participa de coletiva de imprensa com o primeiro-ministro de Israel, Binyamin Netanyahu, depois de uma reunião bilateral em Tel Aviv, Israel  Foto: Jacquelyn Martin / AP

Instabilidade

Se entrar em Gaza agora, Israel mandará pelos ares os Acordos de Abraão, desestabilizará dois dos mais importantes aliados dos EUA na região (Egito e Jordânia) e impossibilitará a normalização com os sauditas — reveses estratégicos enormes. Uma invasão israelense também possibilitaria ao Hamas inflamar verdadeiramente a Cisjordânia e agravar confrontos entre os colonos judeus e os palestinos. Tudo isso junto colaborará diretamente com a estratégia do Irã de atrelar Israel ao exagero imperialista ao mesmo tempo que enfraquece o cerne da democracia judaica.

O objetivo estratégico número 1 do Irã em relação a Israel sempre foi garantir que os israelenses permaneçam enrascados na Cisjordânia, sintam-se motivados a voltar a ocupar o sul do Líbano e, nos sonhos mais febris de Teerã, voltem a ocupar Gaza. Esse Estado de Israel ficaria tão enfraquecido moralmente, economicamente e militarmente que jamais ameaçaria o programa nuclear do Irã e suas ambições hegemônicas.

O que Israel deve fazer para garantir que um ataque como o lançado pelo Hamas nunca volte a ocorrer? Neste momento, eu não sei dizer. Eu só sei que, seja qual for, a resposta não é mobilizar 360 mil reservistas israelenses traumatizados para lançar uma guerra urbana em um dos lugares mais densamente povoados no planeta. Isso arrasará a economia de Israel e sua posição internacional.

Israelenses participam do funeral de uma família que foi morta no Kibutz Kfar Azza, próximo da fronteira com a Faixa de Gaza, por terroristas do Hamas  Foto: Ohad Zwigenberg/ AP

Todos esses dilemas devem estimular o presidente Biden a afinar sua posição em relação à crise.

Biden tem de se dar conta de que Binyamin Netanyahu é incapaz de administrar esta guerra como um jogador racional. Depois de uma derrota tão colossal, a coisa mais poderosa e unificadora que Netanyahu poderia ter feito seria convocar novas eleições em Israel para daqui a seis ou nove meses — e anunciar que não concorreria. Ele estaria encerrando sua carreira na política e portanto os israelenses poderiam ter certeza de que qualquer decisão a respeito de Gaza e do Hamas que ele tomasse neste momento teria em mente apenas o interesse nacional de Israel. Netanyahu não teria em mente seu próprio interesse, de não ser preso pelas acusações de corrupção a que responde, o que requereria dele se aferrar-se aos malucos direitistas em seu governo (que realmente fantasiam a respeito de Israel reocupar Gaza e reconstruir assentamentos coloniais judaicos por lá) buscando alguma vitória militar retumbante a curto prazo que ele poderia mostrar para o eleitorado como uma compensação ao desastre recente.

Conforme um dos melhores analistas militares de Israel, Amos Harel, do Haaretz, escreveu na sexta-feira: “Há uma combinação incomum de pessoas no topo em Israel. De um lado, um primeiro-ministro inepto, uma figura quase shakespeareana diante do perigo pessoal de uma conclusão infame para uma carreira, pode-se argumentar, brilhante. Diante dele há uma corporação militar comovida e consumida em sentimentos de culpa (e ainda se Netanyahu se incomodasse em mostrar uma pitada desses sentimentos). Não é uma receita perfeita para uma tomada de decisão ponderada”.

Se o governo israelense anunciasse hoje que decidiu desistir de invadir Gaza neste momento e procurar maneiras mais cirúrgicas de eliminar ou capturar lideranças do Hamas ao mesmo tempo que tenta arquitetar a troca de mais de 150 reféns israelenses e de outras nacionalidades que o Hamas mantém, isso evitaria traumatizar sua própria sociedade e também preservaria os civis palestinos em Gaza — o que daria a Israel e seus aliados tempo para pensar bem a respeito de como construir, juntamente com os palestinos, uma alternativa legítima ao Hamas.

Apoio

Um movimento desse tipo renderia a Israel muito apoio globalmente e permitiria ao mundo ver o Hamas como o que ele é: o Estado Islâmico dos territórios palestinos.

“No mundo de hoje, qualquer coisa que ocorra num campo de batalha pode ser subvertida no reino da informação, então a batalha narrativa é tão importante quanto os combates em campo”, afirmou John Arquilla, ex-professor de estratégia da Escola de Pós-Graduação Naval. “Se Israel exagerar em Gaza, isso drenará qualquer bom sentimento residual sobre a existência de Israel, e essa é a grande aposta do Hamas. Israel construiu muito, contribui muito para o mundo, desfruta de muito respeito global e tem muito ainda com que contribuir. Arriscar tudo isso em um ato de vingança ou raiva, que não alterará fundamentalmente seus dilemas estratégicos, é excepcionalmente insensato.”

Mas, como eu disse, se Israel ainda decidir que deve entrar em Gaza para capturar e matar a liderança do Hamas, deve fazer isso apenas se houver uma liderança palestina legítima para substituir o Hamas — para que Israel não governe eternamente o enclave. Se isso acontecer, cada dia que não fizer sol em Gaza, que a água não sair das torneiras, que não houver eletricidade e a fome ou a doença se disseminarem será culpa de todos os israelenses e todos os judeus no planeta. Israel está pronto para esse fardo?

Ainda que esteja correto em apoiar Israel, Biden tem de obter respostas claras de Netanyahu agora, antes que seja tarde demais: uma vez que Israel derrubar o Hamas, quem governará Gaza? Se pretende governar Gaza, Israel pagará pela reconstrução da infraestrutura que está destruindo? Se não, quem pagará? Por quanto tempo Israel pretende permitir a crise humanitária no sul de Gaza? Israel planeja construir assentamentos em Gaza? Israel respeitará as fronteiras de Gaza? Israel tem algum plano para ajudar a reconstruir a Autoridade Palestina na Cisjordânia?

A Autoridade Palestina na Cisjordânia, sob liderança do presidente Mahmoud Abbas, é fraca, corrupta e cada vez mais ilegítima; é incapaz de administrar a Cisjordânia, quem dirá Gaza — o que atende a um interesse de Netanyahu, para que ele sempre pudesse dizer que não tem nenhum parceiro para a paz.

Mas Netanyahu não é o único culpado. Acredite se quiser, pessoal, mas os palestinos também têm responsabilidade, assim como a corrupção tolerada pela Autoridade Palestina; e o fato de Abbas ter banido o líder mais eficaz que a entidade já teve, o ex-primeiro-ministro Salam Fayyad, também é um fator importantíssimo — algo que todos os amigos dos palestinos deveriam gritar em vez de simplesmente colocar a culpa em Israel.

O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, durante uma reunião bilateral com o primeiro-ministro de Israel, Binyamin Netanyahu  Foto: Susan Walsh / AP

Mas dito isso tudo, Israel tem de repensar completamente a maneira com que se relaciona com os palestinos na Cisjordânia — e portanto todo o movimento colonial — se quiser substituir o Hamas em Gaza. Se o movimento colonial continuar a definir os termos do que é permissível na política israelense, outro desastre espreita a Cisjordânia.

Minha conclusão? Faça a seguinte pergunta: se Israel anunciasse hoje que está desistindo, por agora, de uma invasão total a Gaza, quem ficaria feliz, quem ficaria aliviado e quem ficaria incomodado? O Irã ficaria totalmente frustrado; o Hezbollah, desapontado; o Hamas, devastado — todo seu plano de guerra teria resultado em nada — e Vladimir Putin seria esmagado, porque Israel não queimaria munições e armamentos que os EUA precisam enviar para a Ucrânia. Os colonos na Cisjordânia ficariam furiosos.

Enquanto isso, os pais de todos os soldados e reféns israelenses ficariam aliviados, todos os palestinos pegos no fogo cruzado em Gaza ficariam aliviados e todos os amigos e aliados de Israel no mundo — começando por Joseph R. Biden — ficariam aliviados. Tenho dito. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

THE NEW YORK TIMES- Quando a correspondente do Times em Israel Isabel Kershner pediu recentemente para o motorista de tanque do Exército israelense Shai Levy, de 37 anos, descrever o propósito da aguardada invasão israelense a Gaza, ele disse algo que realmente me prendeu a atenção. “Restaurar a honra de Israel”, afirmou ele. “Os cidadãos contam conosco para derrotar o Hamas e remover a ameaça de Gaza de uma vez por todas.”

Isso prendeu minha atenção porque, ao longo dos anos, eu aprendi que cinco das palavras mais perigosas no Oriente Médio são “de uma vez por todas”.

Todos esses movimentos islamistas-jihadistas — Taleban, Hamas, Estado Islâmico, Al-Qaeda, Jihad Islâmica na Palestina, Hezbollah, os houthis — possuem raízes culturais, sociais, religiosas e políticas profundas em suas sociedades. E têm acesso a amplos estoques de jovens humilhados, muitos dos quais nunca tiveram um emprego, escolaridade ou relacionamento romântico: uma combinação letal que os torna fáceis de manipular para o caos.

Tanques israelenses se preparam para ofensiva terrestre na fronteira com a Faixa de Gaza, no sul de Israel  Foto: Sergey Ponomarev / NYT

E é por esse motivo que até hoje nenhum desses movimentos foi eliminado “de uma vez por todas”. Eles podem, contudo, ser isolados, diminuídos, deslegitimados e decapitados — como os Estados Unidos fizeram com o Estado Islâmico e a Al-Qaeda. Mas isso requer paciência, precisão, muitos aliados e alternativas que tenham legitimidade dentro das sociedades das quais esses jovens emergem.

Então permitam-me afirmar claramente e em bom tom o que eu tenho dito furtivamente nas minhas colunas recentes: eu fiquei do lado do presidente Joe Biden quando ele disse ao “60 Minutes” que seria um “grande erro” para Israel “ocupar Gaza novamente”.

Eu acredito que esse movimento poderia transformar a humilhante derrota tática de Israel pelas mãos do Hamas, que incluiu um barbarismo inimaginável, numa crise estratégica moral e militar a longo prazo, capaz de resultar numa cilada para Israel em Gaza, atrair os EUA para outra guerra no Oriente Médio e minar três dos mais importantes interesses da política externa americana neste momento: ajudar a Ucrânia a se libertar da Rússia para se unir ao Ocidente; conter a China; e forjar um bloco pró-EUA que inclua Egito, Israel, os países árabes moderados e a Arábia Saudita, que poderia servir de contrapeso ao Irã e combater a ameaça global do islamismo radical.

O secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, participa de coletiva de imprensa com o primeiro-ministro de Israel, Binyamin Netanyahu, depois de uma reunião bilateral em Tel Aviv, Israel  Foto: Jacquelyn Martin / AP

Instabilidade

Se entrar em Gaza agora, Israel mandará pelos ares os Acordos de Abraão, desestabilizará dois dos mais importantes aliados dos EUA na região (Egito e Jordânia) e impossibilitará a normalização com os sauditas — reveses estratégicos enormes. Uma invasão israelense também possibilitaria ao Hamas inflamar verdadeiramente a Cisjordânia e agravar confrontos entre os colonos judeus e os palestinos. Tudo isso junto colaborará diretamente com a estratégia do Irã de atrelar Israel ao exagero imperialista ao mesmo tempo que enfraquece o cerne da democracia judaica.

O objetivo estratégico número 1 do Irã em relação a Israel sempre foi garantir que os israelenses permaneçam enrascados na Cisjordânia, sintam-se motivados a voltar a ocupar o sul do Líbano e, nos sonhos mais febris de Teerã, voltem a ocupar Gaza. Esse Estado de Israel ficaria tão enfraquecido moralmente, economicamente e militarmente que jamais ameaçaria o programa nuclear do Irã e suas ambições hegemônicas.

O que Israel deve fazer para garantir que um ataque como o lançado pelo Hamas nunca volte a ocorrer? Neste momento, eu não sei dizer. Eu só sei que, seja qual for, a resposta não é mobilizar 360 mil reservistas israelenses traumatizados para lançar uma guerra urbana em um dos lugares mais densamente povoados no planeta. Isso arrasará a economia de Israel e sua posição internacional.

Israelenses participam do funeral de uma família que foi morta no Kibutz Kfar Azza, próximo da fronteira com a Faixa de Gaza, por terroristas do Hamas  Foto: Ohad Zwigenberg/ AP

Todos esses dilemas devem estimular o presidente Biden a afinar sua posição em relação à crise.

Biden tem de se dar conta de que Binyamin Netanyahu é incapaz de administrar esta guerra como um jogador racional. Depois de uma derrota tão colossal, a coisa mais poderosa e unificadora que Netanyahu poderia ter feito seria convocar novas eleições em Israel para daqui a seis ou nove meses — e anunciar que não concorreria. Ele estaria encerrando sua carreira na política e portanto os israelenses poderiam ter certeza de que qualquer decisão a respeito de Gaza e do Hamas que ele tomasse neste momento teria em mente apenas o interesse nacional de Israel. Netanyahu não teria em mente seu próprio interesse, de não ser preso pelas acusações de corrupção a que responde, o que requereria dele se aferrar-se aos malucos direitistas em seu governo (que realmente fantasiam a respeito de Israel reocupar Gaza e reconstruir assentamentos coloniais judaicos por lá) buscando alguma vitória militar retumbante a curto prazo que ele poderia mostrar para o eleitorado como uma compensação ao desastre recente.

Conforme um dos melhores analistas militares de Israel, Amos Harel, do Haaretz, escreveu na sexta-feira: “Há uma combinação incomum de pessoas no topo em Israel. De um lado, um primeiro-ministro inepto, uma figura quase shakespeareana diante do perigo pessoal de uma conclusão infame para uma carreira, pode-se argumentar, brilhante. Diante dele há uma corporação militar comovida e consumida em sentimentos de culpa (e ainda se Netanyahu se incomodasse em mostrar uma pitada desses sentimentos). Não é uma receita perfeita para uma tomada de decisão ponderada”.

Se o governo israelense anunciasse hoje que decidiu desistir de invadir Gaza neste momento e procurar maneiras mais cirúrgicas de eliminar ou capturar lideranças do Hamas ao mesmo tempo que tenta arquitetar a troca de mais de 150 reféns israelenses e de outras nacionalidades que o Hamas mantém, isso evitaria traumatizar sua própria sociedade e também preservaria os civis palestinos em Gaza — o que daria a Israel e seus aliados tempo para pensar bem a respeito de como construir, juntamente com os palestinos, uma alternativa legítima ao Hamas.

Apoio

Um movimento desse tipo renderia a Israel muito apoio globalmente e permitiria ao mundo ver o Hamas como o que ele é: o Estado Islâmico dos territórios palestinos.

“No mundo de hoje, qualquer coisa que ocorra num campo de batalha pode ser subvertida no reino da informação, então a batalha narrativa é tão importante quanto os combates em campo”, afirmou John Arquilla, ex-professor de estratégia da Escola de Pós-Graduação Naval. “Se Israel exagerar em Gaza, isso drenará qualquer bom sentimento residual sobre a existência de Israel, e essa é a grande aposta do Hamas. Israel construiu muito, contribui muito para o mundo, desfruta de muito respeito global e tem muito ainda com que contribuir. Arriscar tudo isso em um ato de vingança ou raiva, que não alterará fundamentalmente seus dilemas estratégicos, é excepcionalmente insensato.”

Mas, como eu disse, se Israel ainda decidir que deve entrar em Gaza para capturar e matar a liderança do Hamas, deve fazer isso apenas se houver uma liderança palestina legítima para substituir o Hamas — para que Israel não governe eternamente o enclave. Se isso acontecer, cada dia que não fizer sol em Gaza, que a água não sair das torneiras, que não houver eletricidade e a fome ou a doença se disseminarem será culpa de todos os israelenses e todos os judeus no planeta. Israel está pronto para esse fardo?

Ainda que esteja correto em apoiar Israel, Biden tem de obter respostas claras de Netanyahu agora, antes que seja tarde demais: uma vez que Israel derrubar o Hamas, quem governará Gaza? Se pretende governar Gaza, Israel pagará pela reconstrução da infraestrutura que está destruindo? Se não, quem pagará? Por quanto tempo Israel pretende permitir a crise humanitária no sul de Gaza? Israel planeja construir assentamentos em Gaza? Israel respeitará as fronteiras de Gaza? Israel tem algum plano para ajudar a reconstruir a Autoridade Palestina na Cisjordânia?

A Autoridade Palestina na Cisjordânia, sob liderança do presidente Mahmoud Abbas, é fraca, corrupta e cada vez mais ilegítima; é incapaz de administrar a Cisjordânia, quem dirá Gaza — o que atende a um interesse de Netanyahu, para que ele sempre pudesse dizer que não tem nenhum parceiro para a paz.

Mas Netanyahu não é o único culpado. Acredite se quiser, pessoal, mas os palestinos também têm responsabilidade, assim como a corrupção tolerada pela Autoridade Palestina; e o fato de Abbas ter banido o líder mais eficaz que a entidade já teve, o ex-primeiro-ministro Salam Fayyad, também é um fator importantíssimo — algo que todos os amigos dos palestinos deveriam gritar em vez de simplesmente colocar a culpa em Israel.

O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, durante uma reunião bilateral com o primeiro-ministro de Israel, Binyamin Netanyahu  Foto: Susan Walsh / AP

Mas dito isso tudo, Israel tem de repensar completamente a maneira com que se relaciona com os palestinos na Cisjordânia — e portanto todo o movimento colonial — se quiser substituir o Hamas em Gaza. Se o movimento colonial continuar a definir os termos do que é permissível na política israelense, outro desastre espreita a Cisjordânia.

Minha conclusão? Faça a seguinte pergunta: se Israel anunciasse hoje que está desistindo, por agora, de uma invasão total a Gaza, quem ficaria feliz, quem ficaria aliviado e quem ficaria incomodado? O Irã ficaria totalmente frustrado; o Hezbollah, desapontado; o Hamas, devastado — todo seu plano de guerra teria resultado em nada — e Vladimir Putin seria esmagado, porque Israel não queimaria munições e armamentos que os EUA precisam enviar para a Ucrânia. Os colonos na Cisjordânia ficariam furiosos.

Enquanto isso, os pais de todos os soldados e reféns israelenses ficariam aliviados, todos os palestinos pegos no fogo cruzado em Gaza ficariam aliviados e todos os amigos e aliados de Israel no mundo — começando por Joseph R. Biden — ficariam aliviados. Tenho dito. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

THE NEW YORK TIMES- Quando a correspondente do Times em Israel Isabel Kershner pediu recentemente para o motorista de tanque do Exército israelense Shai Levy, de 37 anos, descrever o propósito da aguardada invasão israelense a Gaza, ele disse algo que realmente me prendeu a atenção. “Restaurar a honra de Israel”, afirmou ele. “Os cidadãos contam conosco para derrotar o Hamas e remover a ameaça de Gaza de uma vez por todas.”

Isso prendeu minha atenção porque, ao longo dos anos, eu aprendi que cinco das palavras mais perigosas no Oriente Médio são “de uma vez por todas”.

Todos esses movimentos islamistas-jihadistas — Taleban, Hamas, Estado Islâmico, Al-Qaeda, Jihad Islâmica na Palestina, Hezbollah, os houthis — possuem raízes culturais, sociais, religiosas e políticas profundas em suas sociedades. E têm acesso a amplos estoques de jovens humilhados, muitos dos quais nunca tiveram um emprego, escolaridade ou relacionamento romântico: uma combinação letal que os torna fáceis de manipular para o caos.

Tanques israelenses se preparam para ofensiva terrestre na fronteira com a Faixa de Gaza, no sul de Israel  Foto: Sergey Ponomarev / NYT

E é por esse motivo que até hoje nenhum desses movimentos foi eliminado “de uma vez por todas”. Eles podem, contudo, ser isolados, diminuídos, deslegitimados e decapitados — como os Estados Unidos fizeram com o Estado Islâmico e a Al-Qaeda. Mas isso requer paciência, precisão, muitos aliados e alternativas que tenham legitimidade dentro das sociedades das quais esses jovens emergem.

Então permitam-me afirmar claramente e em bom tom o que eu tenho dito furtivamente nas minhas colunas recentes: eu fiquei do lado do presidente Joe Biden quando ele disse ao “60 Minutes” que seria um “grande erro” para Israel “ocupar Gaza novamente”.

Eu acredito que esse movimento poderia transformar a humilhante derrota tática de Israel pelas mãos do Hamas, que incluiu um barbarismo inimaginável, numa crise estratégica moral e militar a longo prazo, capaz de resultar numa cilada para Israel em Gaza, atrair os EUA para outra guerra no Oriente Médio e minar três dos mais importantes interesses da política externa americana neste momento: ajudar a Ucrânia a se libertar da Rússia para se unir ao Ocidente; conter a China; e forjar um bloco pró-EUA que inclua Egito, Israel, os países árabes moderados e a Arábia Saudita, que poderia servir de contrapeso ao Irã e combater a ameaça global do islamismo radical.

O secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, participa de coletiva de imprensa com o primeiro-ministro de Israel, Binyamin Netanyahu, depois de uma reunião bilateral em Tel Aviv, Israel  Foto: Jacquelyn Martin / AP

Instabilidade

Se entrar em Gaza agora, Israel mandará pelos ares os Acordos de Abraão, desestabilizará dois dos mais importantes aliados dos EUA na região (Egito e Jordânia) e impossibilitará a normalização com os sauditas — reveses estratégicos enormes. Uma invasão israelense também possibilitaria ao Hamas inflamar verdadeiramente a Cisjordânia e agravar confrontos entre os colonos judeus e os palestinos. Tudo isso junto colaborará diretamente com a estratégia do Irã de atrelar Israel ao exagero imperialista ao mesmo tempo que enfraquece o cerne da democracia judaica.

O objetivo estratégico número 1 do Irã em relação a Israel sempre foi garantir que os israelenses permaneçam enrascados na Cisjordânia, sintam-se motivados a voltar a ocupar o sul do Líbano e, nos sonhos mais febris de Teerã, voltem a ocupar Gaza. Esse Estado de Israel ficaria tão enfraquecido moralmente, economicamente e militarmente que jamais ameaçaria o programa nuclear do Irã e suas ambições hegemônicas.

O que Israel deve fazer para garantir que um ataque como o lançado pelo Hamas nunca volte a ocorrer? Neste momento, eu não sei dizer. Eu só sei que, seja qual for, a resposta não é mobilizar 360 mil reservistas israelenses traumatizados para lançar uma guerra urbana em um dos lugares mais densamente povoados no planeta. Isso arrasará a economia de Israel e sua posição internacional.

Israelenses participam do funeral de uma família que foi morta no Kibutz Kfar Azza, próximo da fronteira com a Faixa de Gaza, por terroristas do Hamas  Foto: Ohad Zwigenberg/ AP

Todos esses dilemas devem estimular o presidente Biden a afinar sua posição em relação à crise.

Biden tem de se dar conta de que Binyamin Netanyahu é incapaz de administrar esta guerra como um jogador racional. Depois de uma derrota tão colossal, a coisa mais poderosa e unificadora que Netanyahu poderia ter feito seria convocar novas eleições em Israel para daqui a seis ou nove meses — e anunciar que não concorreria. Ele estaria encerrando sua carreira na política e portanto os israelenses poderiam ter certeza de que qualquer decisão a respeito de Gaza e do Hamas que ele tomasse neste momento teria em mente apenas o interesse nacional de Israel. Netanyahu não teria em mente seu próprio interesse, de não ser preso pelas acusações de corrupção a que responde, o que requereria dele se aferrar-se aos malucos direitistas em seu governo (que realmente fantasiam a respeito de Israel reocupar Gaza e reconstruir assentamentos coloniais judaicos por lá) buscando alguma vitória militar retumbante a curto prazo que ele poderia mostrar para o eleitorado como uma compensação ao desastre recente.

Conforme um dos melhores analistas militares de Israel, Amos Harel, do Haaretz, escreveu na sexta-feira: “Há uma combinação incomum de pessoas no topo em Israel. De um lado, um primeiro-ministro inepto, uma figura quase shakespeareana diante do perigo pessoal de uma conclusão infame para uma carreira, pode-se argumentar, brilhante. Diante dele há uma corporação militar comovida e consumida em sentimentos de culpa (e ainda se Netanyahu se incomodasse em mostrar uma pitada desses sentimentos). Não é uma receita perfeita para uma tomada de decisão ponderada”.

Se o governo israelense anunciasse hoje que decidiu desistir de invadir Gaza neste momento e procurar maneiras mais cirúrgicas de eliminar ou capturar lideranças do Hamas ao mesmo tempo que tenta arquitetar a troca de mais de 150 reféns israelenses e de outras nacionalidades que o Hamas mantém, isso evitaria traumatizar sua própria sociedade e também preservaria os civis palestinos em Gaza — o que daria a Israel e seus aliados tempo para pensar bem a respeito de como construir, juntamente com os palestinos, uma alternativa legítima ao Hamas.

Apoio

Um movimento desse tipo renderia a Israel muito apoio globalmente e permitiria ao mundo ver o Hamas como o que ele é: o Estado Islâmico dos territórios palestinos.

“No mundo de hoje, qualquer coisa que ocorra num campo de batalha pode ser subvertida no reino da informação, então a batalha narrativa é tão importante quanto os combates em campo”, afirmou John Arquilla, ex-professor de estratégia da Escola de Pós-Graduação Naval. “Se Israel exagerar em Gaza, isso drenará qualquer bom sentimento residual sobre a existência de Israel, e essa é a grande aposta do Hamas. Israel construiu muito, contribui muito para o mundo, desfruta de muito respeito global e tem muito ainda com que contribuir. Arriscar tudo isso em um ato de vingança ou raiva, que não alterará fundamentalmente seus dilemas estratégicos, é excepcionalmente insensato.”

Mas, como eu disse, se Israel ainda decidir que deve entrar em Gaza para capturar e matar a liderança do Hamas, deve fazer isso apenas se houver uma liderança palestina legítima para substituir o Hamas — para que Israel não governe eternamente o enclave. Se isso acontecer, cada dia que não fizer sol em Gaza, que a água não sair das torneiras, que não houver eletricidade e a fome ou a doença se disseminarem será culpa de todos os israelenses e todos os judeus no planeta. Israel está pronto para esse fardo?

Ainda que esteja correto em apoiar Israel, Biden tem de obter respostas claras de Netanyahu agora, antes que seja tarde demais: uma vez que Israel derrubar o Hamas, quem governará Gaza? Se pretende governar Gaza, Israel pagará pela reconstrução da infraestrutura que está destruindo? Se não, quem pagará? Por quanto tempo Israel pretende permitir a crise humanitária no sul de Gaza? Israel planeja construir assentamentos em Gaza? Israel respeitará as fronteiras de Gaza? Israel tem algum plano para ajudar a reconstruir a Autoridade Palestina na Cisjordânia?

A Autoridade Palestina na Cisjordânia, sob liderança do presidente Mahmoud Abbas, é fraca, corrupta e cada vez mais ilegítima; é incapaz de administrar a Cisjordânia, quem dirá Gaza — o que atende a um interesse de Netanyahu, para que ele sempre pudesse dizer que não tem nenhum parceiro para a paz.

Mas Netanyahu não é o único culpado. Acredite se quiser, pessoal, mas os palestinos também têm responsabilidade, assim como a corrupção tolerada pela Autoridade Palestina; e o fato de Abbas ter banido o líder mais eficaz que a entidade já teve, o ex-primeiro-ministro Salam Fayyad, também é um fator importantíssimo — algo que todos os amigos dos palestinos deveriam gritar em vez de simplesmente colocar a culpa em Israel.

O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, durante uma reunião bilateral com o primeiro-ministro de Israel, Binyamin Netanyahu  Foto: Susan Walsh / AP

Mas dito isso tudo, Israel tem de repensar completamente a maneira com que se relaciona com os palestinos na Cisjordânia — e portanto todo o movimento colonial — se quiser substituir o Hamas em Gaza. Se o movimento colonial continuar a definir os termos do que é permissível na política israelense, outro desastre espreita a Cisjordânia.

Minha conclusão? Faça a seguinte pergunta: se Israel anunciasse hoje que está desistindo, por agora, de uma invasão total a Gaza, quem ficaria feliz, quem ficaria aliviado e quem ficaria incomodado? O Irã ficaria totalmente frustrado; o Hezbollah, desapontado; o Hamas, devastado — todo seu plano de guerra teria resultado em nada — e Vladimir Putin seria esmagado, porque Israel não queimaria munições e armamentos que os EUA precisam enviar para a Ucrânia. Os colonos na Cisjordânia ficariam furiosos.

Enquanto isso, os pais de todos os soldados e reféns israelenses ficariam aliviados, todos os palestinos pegos no fogo cruzado em Gaza ficariam aliviados e todos os amigos e aliados de Israel no mundo — começando por Joseph R. Biden — ficariam aliviados. Tenho dito. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

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