Touradas voltam a se popularizar na França após entrar em declínio na Espanha e na América Latina


Participantes e espectadores defendem touradas como traço cultural do sul da França; público dos eventos crescem na região

Por Rick Noack

VAUVERT — O som das cornetas se faz ouvir conforme centenas de espectadores chegam à arena improvisada em um bosque de pinheiros. Enquanto os adultos se ocupam das garrafas de vinho, as crianças pulam dentro de um anfiteatro inflável, sobre um touro de plástico e olhos vermelhos. Charles Pasquier, um toureiro de 26 anos, irá encarar um touro de verdade em breve, mas parece relaxado ao interagir com o público antes do torneio.

Um como este não teria atraído muitas pessoas da sua faixa etária dez anos atrás, ele conta. Agora, “uma quantidade enorme de jovens está retornando”, diz maravilhado. “Há uma onda de renovação.”

continua após a publicidade

Apesar da realização desse tipo de espetáculo estar em queda na Espanha e na América Latina, e apesar de pesquisas mostrarem que 77% dos franceses querem o fim das touradas, o esporte testemunha um aumento de popularidade no sul da França.

Toureiro Charles Pasquier descansa depois de se apresentar em uma tourada em Vauvert, no sul da França. Jovem começou a treinar para ser toureiro aos nove anos e diz que atividade é a paixão da sua vida Foto: Clémence Losfeld / The Washington Post

Na quinta-feira, a Assembleia Nacional Francesa deliberaria pela primeira vez a respeito de uma proposta de banimento às touradas. Entretanto, após adversários da proibição se movimentarem para obstruir a votação com uma onda de emendas, o deputado de extrema esquerda que propôs o banimento retirou o projeto de lei.

continua após a publicidade

Ainda que a retirada da proposta não descarte a votação nos próximos meses, alguns grupos de defesa de direitos de animais admitem que as chances da proibição ser aprovada são mínimas, já que políticos de todos os campos temem a resposta do eleitorado das zonas rurais.

Uma comissão parlamentar, apoiada por membros do partido do presidente Emmanuel Macron, se manifestou contra o banimento na semana passada. “Qual será a próxima tradição regional que proibiremos?”, perguntou a deputada Marie Lebec durante o debate inicial.

Na quarta-feira, Macron sugeriu diante de prefeitos que não haverá nenhum banimento de touradas no futuro próximo. “Só nos movemos na direção de uma conciliação, de um intercâmbio”, afirmou. “De onde vejo, esta não é a prioridade no momento. Este tema deve progredir com respeito e consideração.”

continua após a publicidade
Criadores preparam touro para tourada em Vauvert, na França. Eventos voltaram a crescer na região, após entrar em declínio na Espanha e na América Latina Foto: Clémence Losfeld / The Washington Post

O debate era sobre incluir emendas ou não em uma lei francesa de bem-estar animal, para anular exceções concedidas a touradas e rinhas de galo nas regiões em que essas atividades são “tradições locais ininterruptas”.

Críticos questionam a ideia segundo a qual touradas seriam uma tradição inerentemente francesa. Apesar do registro mais antigo de touradas na França datar de 1289, o estilo sangrento da “corrida” espanhola, notam eles, foi importado no século 19, para agrado da mulher de Napoleão III, nascida na Espanha.

continua após a publicidade

Por um tempo, os torneios prosperaram em toda a França, e grandes arenas de touradas foram erguidas no parque Bois de Boulogne, em Paris, e em outras cidades. Mas somente no sul da França, próximo à fronteira com a Espanha e ao longo da costa do Mediterrâneo, as touradas continuam existindo até hoje, atraindo cerca de 2 milhões de espectadores anualmente, de acordo com o Observatório Nacional de Culturas de Touradas.

Defensores de direitos dos animais argumentam que a prática não tem lugar nos tempos modernos. Eles afirmam que os touros morrem vagarosamente e dolorosamente, esfaqueados repetidamente no pescoço e nos ombros. Entre 800 e 1 mil touros são mortos nas arenas francesas por ano.

Nathalie Valentin, de 56 anos, conta que foi uma vez a uma tourada e ficou tão chocada que saiu correndo da arena. “Depois de cada estocada o touro empinava. Foi horrível”, afirma. “Eu não entendia por que as pessoas tinham ido assistir aquilo.”

continua após a publicidade
Grupo de manifestantes contrários às touradas se reúne na frente da arena de Nimes. Cidade é majoritariamente favorável à atividade Foto: Clémence Losfeld / The Washington Post

Nathalie integra a minoria das pessoas que criticam publicamente a prática em sua cidade, Nimes, a capital das touradas na França. Quando ativistas organizaram manifestações contra touradas em todo o país, nos dias 19 e 20 deste mês, menos de 50 pessoas apareceram diante do anfiteatro romano na beira de Nimes, onde as touradas são organizadas na cidade. Os ativistas tiveram dificuldades para atrair a atenção dos pedestres enquanto levantavam cartazes com imagens de touros mortos. Os discursos foram em certos momentos abafados pelo ruído de um motociclista que acelerava o motor de sua moto de propósito.

Mais cedo naquele dia, uma manifestação pró-touradas ocorreu a alguns quarteirões dali e atraiu oito vezes mais gente. Em muitas cidades, manifestações favoráveis à prática foram organizadas pelos prefeitos ou contaram com a presença desses, sugerindo um amplo apoio público.

continua após a publicidade

O prefeito de Mont-de-Marsan, Charles Dayot, reclamou à AFP que o legislador de extrema esquerda que pressionou pela votação “quer nos explicar de Paris, em um tom muito moralizador, o que é bom ou ruim no sul”.

Um sentimento similar — de Paris versus a periferia — esteve por trás dos protestos dos “coletes amarelos” que sacudiram a política francesa em 2018 e 2019 e pode estar nas mentes dos deputados quando consideram banir as touradas.

“Se fosse organizado um referendo, é provável que o ‘sim’ ao banimento vencesse”, reconheceu o antropólogo Frédéric Saumade, que é favorável aos torneios. Mas, para ele, o governo francês tem o dever de defender direitos e tradições regionais mesmo que o público mais amplo não os apoie.

Os frequentadores das touradas realizadas em Vauvert no fim de semana passado sustentaram que a prática é parte de sua identidade — e que não desistirão facilmente. “Somos assim. E quero que meus filhos vivenciem isso”, afirmou Jade Sauvajol, de 22 anos. As touradas, acrescentou ela, são parte do “primeiro passo de socialização por aqui”.

“Elas unem o povo”, afirmou Benjamin Cuillé, copresidente da associação de jovens toureiros da França.

Últimos bastiões do esporte

Com o fracasso do banimento às touradas, o sul da França cimentou o status como um dos últimos bastiões do esporte. Na Espanha, país que exportou a tradição de touradas para a França, o número de torneios caiu quase pela metade nos anos recentes, e na região da Catalunha a prática foi abandonada. Na América Latina, uma combinação entre decisões judiciais e retiradas de patrocinadores este ano também forçou fechamentos de arenas de touradas em Bogotá, na Cidade do México e outros lugares.

Na França, as touradas parecem caminhar na direção oposta. Nimes registrou um crescimento nos espectadores dos torneios este ano em comparação a 2019, apesar de cinemas e casas noturnas continuarem um terço mais vazios do que antes da covid-19.

O toureiro Alexis Chabriol, de 21 anos, afirmou que foi criado em uma família contrária à prática, mas que decidiu comparecer a uma tourada para formar a própria opinião. “Achei realmente lindo”, diz ele, apesar de todo sangue.

A “corrida” em estilo espanhol é a forma de tourada mais conhecida: os toureiros chamam a atenção do touro com capas coloridas, normalmente com intenção de matá-los, enquanto impressionam a plateia com sua ousadia. No entanto, nem todos os torneios de tourada têm de terminar em sangue. Na realidade, nenhum derramamento de sangue foi feito durante o evento na arena Vauvert na semana passada, que abriu esta reportagem.

Vaca corre dentro de arena durante tourada no estilo Camargue, no sul da França Foto: Clémence Losfeld / The Washington Post

Os touros que participam de touradas em estilo “corrida” são caros, então organizadores reservam esses espetáculos para plateias de milhares, não de centenas. Em vez de tourear para matar, Pasquier atua em um estilo espanhol conhecido como “tienta”, que também é usado para treinar e selecionar touros para as “corridas”. Nem touro nem toureiro se feriram dentro da arena.

Então houve a competição Camargue, batizada com o nome da região em que é praticada. Uma equipe de participantes competiu tentando retirar fitas amarradas aos chifres — não de um touro, mas de uma vaca da região. Ela arrancava grama e lama com as patas enquanto mugia e perseguia os homens. Em certos momentos, eles saltaram saindo do caminho da vaca segundos antes dela investir contra as cercas metálicas da arena.

As competições Camargue não teriam sido banidas sob a proposta de lei fracassada. Elas tendem a ser mais perigosas para os humanos do que para os animais. No fim do evento em Vauvert, ainda que alguns homens mancassem, ninguém pareceu ferido com gravidade. Uma ambulância de plantão no local não foi usada.

Pesquisas mostram que, nas cidades francesas em que touradas são organizadas, mais de 60% dos habitantes se opõem ao touro ser morto. Mas defensores das touradas no sul da França afirmam que não há espaço para concessões. Eles querem preservar a tradição em todas as suas formas. “A morte é parte da vida”, afirmou o organizador do evento, Thomas Pagnon, que lideram uma organização de jovens em defesa das touradas e outras tradições.

Lionel Lopez foi às touradas em Vauvert com os filhos, de 6 e 11 anos, que baixaram na parede da arena uma capa cor de rosa, tentando chamar a atenção do animal. Para os meninos, os torneios daquele dia não foram nem os primeiros nem os mais violentos que já viram. Lopez afirmou que inicialmente planejou acostumar os filhos, protegendo-os das versões mais extremas de touradas. Mas depois de ir a uma competição Camargue, seu filho mais novo pediu para assistir uma “tourada de verdade”. Por ter sido apresentado à tradição ainda em tenra idade, afirmou Lopez, o menino de 6 anos “consegue ver a beleza do espetáculo”. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

VAUVERT — O som das cornetas se faz ouvir conforme centenas de espectadores chegam à arena improvisada em um bosque de pinheiros. Enquanto os adultos se ocupam das garrafas de vinho, as crianças pulam dentro de um anfiteatro inflável, sobre um touro de plástico e olhos vermelhos. Charles Pasquier, um toureiro de 26 anos, irá encarar um touro de verdade em breve, mas parece relaxado ao interagir com o público antes do torneio.

Um como este não teria atraído muitas pessoas da sua faixa etária dez anos atrás, ele conta. Agora, “uma quantidade enorme de jovens está retornando”, diz maravilhado. “Há uma onda de renovação.”

Apesar da realização desse tipo de espetáculo estar em queda na Espanha e na América Latina, e apesar de pesquisas mostrarem que 77% dos franceses querem o fim das touradas, o esporte testemunha um aumento de popularidade no sul da França.

Toureiro Charles Pasquier descansa depois de se apresentar em uma tourada em Vauvert, no sul da França. Jovem começou a treinar para ser toureiro aos nove anos e diz que atividade é a paixão da sua vida Foto: Clémence Losfeld / The Washington Post

Na quinta-feira, a Assembleia Nacional Francesa deliberaria pela primeira vez a respeito de uma proposta de banimento às touradas. Entretanto, após adversários da proibição se movimentarem para obstruir a votação com uma onda de emendas, o deputado de extrema esquerda que propôs o banimento retirou o projeto de lei.

Ainda que a retirada da proposta não descarte a votação nos próximos meses, alguns grupos de defesa de direitos de animais admitem que as chances da proibição ser aprovada são mínimas, já que políticos de todos os campos temem a resposta do eleitorado das zonas rurais.

Uma comissão parlamentar, apoiada por membros do partido do presidente Emmanuel Macron, se manifestou contra o banimento na semana passada. “Qual será a próxima tradição regional que proibiremos?”, perguntou a deputada Marie Lebec durante o debate inicial.

Na quarta-feira, Macron sugeriu diante de prefeitos que não haverá nenhum banimento de touradas no futuro próximo. “Só nos movemos na direção de uma conciliação, de um intercâmbio”, afirmou. “De onde vejo, esta não é a prioridade no momento. Este tema deve progredir com respeito e consideração.”

Criadores preparam touro para tourada em Vauvert, na França. Eventos voltaram a crescer na região, após entrar em declínio na Espanha e na América Latina Foto: Clémence Losfeld / The Washington Post

O debate era sobre incluir emendas ou não em uma lei francesa de bem-estar animal, para anular exceções concedidas a touradas e rinhas de galo nas regiões em que essas atividades são “tradições locais ininterruptas”.

Críticos questionam a ideia segundo a qual touradas seriam uma tradição inerentemente francesa. Apesar do registro mais antigo de touradas na França datar de 1289, o estilo sangrento da “corrida” espanhola, notam eles, foi importado no século 19, para agrado da mulher de Napoleão III, nascida na Espanha.

Por um tempo, os torneios prosperaram em toda a França, e grandes arenas de touradas foram erguidas no parque Bois de Boulogne, em Paris, e em outras cidades. Mas somente no sul da França, próximo à fronteira com a Espanha e ao longo da costa do Mediterrâneo, as touradas continuam existindo até hoje, atraindo cerca de 2 milhões de espectadores anualmente, de acordo com o Observatório Nacional de Culturas de Touradas.

Defensores de direitos dos animais argumentam que a prática não tem lugar nos tempos modernos. Eles afirmam que os touros morrem vagarosamente e dolorosamente, esfaqueados repetidamente no pescoço e nos ombros. Entre 800 e 1 mil touros são mortos nas arenas francesas por ano.

Nathalie Valentin, de 56 anos, conta que foi uma vez a uma tourada e ficou tão chocada que saiu correndo da arena. “Depois de cada estocada o touro empinava. Foi horrível”, afirma. “Eu não entendia por que as pessoas tinham ido assistir aquilo.”

Grupo de manifestantes contrários às touradas se reúne na frente da arena de Nimes. Cidade é majoritariamente favorável à atividade Foto: Clémence Losfeld / The Washington Post

Nathalie integra a minoria das pessoas que criticam publicamente a prática em sua cidade, Nimes, a capital das touradas na França. Quando ativistas organizaram manifestações contra touradas em todo o país, nos dias 19 e 20 deste mês, menos de 50 pessoas apareceram diante do anfiteatro romano na beira de Nimes, onde as touradas são organizadas na cidade. Os ativistas tiveram dificuldades para atrair a atenção dos pedestres enquanto levantavam cartazes com imagens de touros mortos. Os discursos foram em certos momentos abafados pelo ruído de um motociclista que acelerava o motor de sua moto de propósito.

Mais cedo naquele dia, uma manifestação pró-touradas ocorreu a alguns quarteirões dali e atraiu oito vezes mais gente. Em muitas cidades, manifestações favoráveis à prática foram organizadas pelos prefeitos ou contaram com a presença desses, sugerindo um amplo apoio público.

O prefeito de Mont-de-Marsan, Charles Dayot, reclamou à AFP que o legislador de extrema esquerda que pressionou pela votação “quer nos explicar de Paris, em um tom muito moralizador, o que é bom ou ruim no sul”.

Um sentimento similar — de Paris versus a periferia — esteve por trás dos protestos dos “coletes amarelos” que sacudiram a política francesa em 2018 e 2019 e pode estar nas mentes dos deputados quando consideram banir as touradas.

“Se fosse organizado um referendo, é provável que o ‘sim’ ao banimento vencesse”, reconheceu o antropólogo Frédéric Saumade, que é favorável aos torneios. Mas, para ele, o governo francês tem o dever de defender direitos e tradições regionais mesmo que o público mais amplo não os apoie.

Os frequentadores das touradas realizadas em Vauvert no fim de semana passado sustentaram que a prática é parte de sua identidade — e que não desistirão facilmente. “Somos assim. E quero que meus filhos vivenciem isso”, afirmou Jade Sauvajol, de 22 anos. As touradas, acrescentou ela, são parte do “primeiro passo de socialização por aqui”.

“Elas unem o povo”, afirmou Benjamin Cuillé, copresidente da associação de jovens toureiros da França.

Últimos bastiões do esporte

Com o fracasso do banimento às touradas, o sul da França cimentou o status como um dos últimos bastiões do esporte. Na Espanha, país que exportou a tradição de touradas para a França, o número de torneios caiu quase pela metade nos anos recentes, e na região da Catalunha a prática foi abandonada. Na América Latina, uma combinação entre decisões judiciais e retiradas de patrocinadores este ano também forçou fechamentos de arenas de touradas em Bogotá, na Cidade do México e outros lugares.

Na França, as touradas parecem caminhar na direção oposta. Nimes registrou um crescimento nos espectadores dos torneios este ano em comparação a 2019, apesar de cinemas e casas noturnas continuarem um terço mais vazios do que antes da covid-19.

O toureiro Alexis Chabriol, de 21 anos, afirmou que foi criado em uma família contrária à prática, mas que decidiu comparecer a uma tourada para formar a própria opinião. “Achei realmente lindo”, diz ele, apesar de todo sangue.

A “corrida” em estilo espanhol é a forma de tourada mais conhecida: os toureiros chamam a atenção do touro com capas coloridas, normalmente com intenção de matá-los, enquanto impressionam a plateia com sua ousadia. No entanto, nem todos os torneios de tourada têm de terminar em sangue. Na realidade, nenhum derramamento de sangue foi feito durante o evento na arena Vauvert na semana passada, que abriu esta reportagem.

Vaca corre dentro de arena durante tourada no estilo Camargue, no sul da França Foto: Clémence Losfeld / The Washington Post

Os touros que participam de touradas em estilo “corrida” são caros, então organizadores reservam esses espetáculos para plateias de milhares, não de centenas. Em vez de tourear para matar, Pasquier atua em um estilo espanhol conhecido como “tienta”, que também é usado para treinar e selecionar touros para as “corridas”. Nem touro nem toureiro se feriram dentro da arena.

Então houve a competição Camargue, batizada com o nome da região em que é praticada. Uma equipe de participantes competiu tentando retirar fitas amarradas aos chifres — não de um touro, mas de uma vaca da região. Ela arrancava grama e lama com as patas enquanto mugia e perseguia os homens. Em certos momentos, eles saltaram saindo do caminho da vaca segundos antes dela investir contra as cercas metálicas da arena.

As competições Camargue não teriam sido banidas sob a proposta de lei fracassada. Elas tendem a ser mais perigosas para os humanos do que para os animais. No fim do evento em Vauvert, ainda que alguns homens mancassem, ninguém pareceu ferido com gravidade. Uma ambulância de plantão no local não foi usada.

Pesquisas mostram que, nas cidades francesas em que touradas são organizadas, mais de 60% dos habitantes se opõem ao touro ser morto. Mas defensores das touradas no sul da França afirmam que não há espaço para concessões. Eles querem preservar a tradição em todas as suas formas. “A morte é parte da vida”, afirmou o organizador do evento, Thomas Pagnon, que lideram uma organização de jovens em defesa das touradas e outras tradições.

Lionel Lopez foi às touradas em Vauvert com os filhos, de 6 e 11 anos, que baixaram na parede da arena uma capa cor de rosa, tentando chamar a atenção do animal. Para os meninos, os torneios daquele dia não foram nem os primeiros nem os mais violentos que já viram. Lopez afirmou que inicialmente planejou acostumar os filhos, protegendo-os das versões mais extremas de touradas. Mas depois de ir a uma competição Camargue, seu filho mais novo pediu para assistir uma “tourada de verdade”. Por ter sido apresentado à tradição ainda em tenra idade, afirmou Lopez, o menino de 6 anos “consegue ver a beleza do espetáculo”. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

VAUVERT — O som das cornetas se faz ouvir conforme centenas de espectadores chegam à arena improvisada em um bosque de pinheiros. Enquanto os adultos se ocupam das garrafas de vinho, as crianças pulam dentro de um anfiteatro inflável, sobre um touro de plástico e olhos vermelhos. Charles Pasquier, um toureiro de 26 anos, irá encarar um touro de verdade em breve, mas parece relaxado ao interagir com o público antes do torneio.

Um como este não teria atraído muitas pessoas da sua faixa etária dez anos atrás, ele conta. Agora, “uma quantidade enorme de jovens está retornando”, diz maravilhado. “Há uma onda de renovação.”

Apesar da realização desse tipo de espetáculo estar em queda na Espanha e na América Latina, e apesar de pesquisas mostrarem que 77% dos franceses querem o fim das touradas, o esporte testemunha um aumento de popularidade no sul da França.

Toureiro Charles Pasquier descansa depois de se apresentar em uma tourada em Vauvert, no sul da França. Jovem começou a treinar para ser toureiro aos nove anos e diz que atividade é a paixão da sua vida Foto: Clémence Losfeld / The Washington Post

Na quinta-feira, a Assembleia Nacional Francesa deliberaria pela primeira vez a respeito de uma proposta de banimento às touradas. Entretanto, após adversários da proibição se movimentarem para obstruir a votação com uma onda de emendas, o deputado de extrema esquerda que propôs o banimento retirou o projeto de lei.

Ainda que a retirada da proposta não descarte a votação nos próximos meses, alguns grupos de defesa de direitos de animais admitem que as chances da proibição ser aprovada são mínimas, já que políticos de todos os campos temem a resposta do eleitorado das zonas rurais.

Uma comissão parlamentar, apoiada por membros do partido do presidente Emmanuel Macron, se manifestou contra o banimento na semana passada. “Qual será a próxima tradição regional que proibiremos?”, perguntou a deputada Marie Lebec durante o debate inicial.

Na quarta-feira, Macron sugeriu diante de prefeitos que não haverá nenhum banimento de touradas no futuro próximo. “Só nos movemos na direção de uma conciliação, de um intercâmbio”, afirmou. “De onde vejo, esta não é a prioridade no momento. Este tema deve progredir com respeito e consideração.”

Criadores preparam touro para tourada em Vauvert, na França. Eventos voltaram a crescer na região, após entrar em declínio na Espanha e na América Latina Foto: Clémence Losfeld / The Washington Post

O debate era sobre incluir emendas ou não em uma lei francesa de bem-estar animal, para anular exceções concedidas a touradas e rinhas de galo nas regiões em que essas atividades são “tradições locais ininterruptas”.

Críticos questionam a ideia segundo a qual touradas seriam uma tradição inerentemente francesa. Apesar do registro mais antigo de touradas na França datar de 1289, o estilo sangrento da “corrida” espanhola, notam eles, foi importado no século 19, para agrado da mulher de Napoleão III, nascida na Espanha.

Por um tempo, os torneios prosperaram em toda a França, e grandes arenas de touradas foram erguidas no parque Bois de Boulogne, em Paris, e em outras cidades. Mas somente no sul da França, próximo à fronteira com a Espanha e ao longo da costa do Mediterrâneo, as touradas continuam existindo até hoje, atraindo cerca de 2 milhões de espectadores anualmente, de acordo com o Observatório Nacional de Culturas de Touradas.

Defensores de direitos dos animais argumentam que a prática não tem lugar nos tempos modernos. Eles afirmam que os touros morrem vagarosamente e dolorosamente, esfaqueados repetidamente no pescoço e nos ombros. Entre 800 e 1 mil touros são mortos nas arenas francesas por ano.

Nathalie Valentin, de 56 anos, conta que foi uma vez a uma tourada e ficou tão chocada que saiu correndo da arena. “Depois de cada estocada o touro empinava. Foi horrível”, afirma. “Eu não entendia por que as pessoas tinham ido assistir aquilo.”

Grupo de manifestantes contrários às touradas se reúne na frente da arena de Nimes. Cidade é majoritariamente favorável à atividade Foto: Clémence Losfeld / The Washington Post

Nathalie integra a minoria das pessoas que criticam publicamente a prática em sua cidade, Nimes, a capital das touradas na França. Quando ativistas organizaram manifestações contra touradas em todo o país, nos dias 19 e 20 deste mês, menos de 50 pessoas apareceram diante do anfiteatro romano na beira de Nimes, onde as touradas são organizadas na cidade. Os ativistas tiveram dificuldades para atrair a atenção dos pedestres enquanto levantavam cartazes com imagens de touros mortos. Os discursos foram em certos momentos abafados pelo ruído de um motociclista que acelerava o motor de sua moto de propósito.

Mais cedo naquele dia, uma manifestação pró-touradas ocorreu a alguns quarteirões dali e atraiu oito vezes mais gente. Em muitas cidades, manifestações favoráveis à prática foram organizadas pelos prefeitos ou contaram com a presença desses, sugerindo um amplo apoio público.

O prefeito de Mont-de-Marsan, Charles Dayot, reclamou à AFP que o legislador de extrema esquerda que pressionou pela votação “quer nos explicar de Paris, em um tom muito moralizador, o que é bom ou ruim no sul”.

Um sentimento similar — de Paris versus a periferia — esteve por trás dos protestos dos “coletes amarelos” que sacudiram a política francesa em 2018 e 2019 e pode estar nas mentes dos deputados quando consideram banir as touradas.

“Se fosse organizado um referendo, é provável que o ‘sim’ ao banimento vencesse”, reconheceu o antropólogo Frédéric Saumade, que é favorável aos torneios. Mas, para ele, o governo francês tem o dever de defender direitos e tradições regionais mesmo que o público mais amplo não os apoie.

Os frequentadores das touradas realizadas em Vauvert no fim de semana passado sustentaram que a prática é parte de sua identidade — e que não desistirão facilmente. “Somos assim. E quero que meus filhos vivenciem isso”, afirmou Jade Sauvajol, de 22 anos. As touradas, acrescentou ela, são parte do “primeiro passo de socialização por aqui”.

“Elas unem o povo”, afirmou Benjamin Cuillé, copresidente da associação de jovens toureiros da França.

Últimos bastiões do esporte

Com o fracasso do banimento às touradas, o sul da França cimentou o status como um dos últimos bastiões do esporte. Na Espanha, país que exportou a tradição de touradas para a França, o número de torneios caiu quase pela metade nos anos recentes, e na região da Catalunha a prática foi abandonada. Na América Latina, uma combinação entre decisões judiciais e retiradas de patrocinadores este ano também forçou fechamentos de arenas de touradas em Bogotá, na Cidade do México e outros lugares.

Na França, as touradas parecem caminhar na direção oposta. Nimes registrou um crescimento nos espectadores dos torneios este ano em comparação a 2019, apesar de cinemas e casas noturnas continuarem um terço mais vazios do que antes da covid-19.

O toureiro Alexis Chabriol, de 21 anos, afirmou que foi criado em uma família contrária à prática, mas que decidiu comparecer a uma tourada para formar a própria opinião. “Achei realmente lindo”, diz ele, apesar de todo sangue.

A “corrida” em estilo espanhol é a forma de tourada mais conhecida: os toureiros chamam a atenção do touro com capas coloridas, normalmente com intenção de matá-los, enquanto impressionam a plateia com sua ousadia. No entanto, nem todos os torneios de tourada têm de terminar em sangue. Na realidade, nenhum derramamento de sangue foi feito durante o evento na arena Vauvert na semana passada, que abriu esta reportagem.

Vaca corre dentro de arena durante tourada no estilo Camargue, no sul da França Foto: Clémence Losfeld / The Washington Post

Os touros que participam de touradas em estilo “corrida” são caros, então organizadores reservam esses espetáculos para plateias de milhares, não de centenas. Em vez de tourear para matar, Pasquier atua em um estilo espanhol conhecido como “tienta”, que também é usado para treinar e selecionar touros para as “corridas”. Nem touro nem toureiro se feriram dentro da arena.

Então houve a competição Camargue, batizada com o nome da região em que é praticada. Uma equipe de participantes competiu tentando retirar fitas amarradas aos chifres — não de um touro, mas de uma vaca da região. Ela arrancava grama e lama com as patas enquanto mugia e perseguia os homens. Em certos momentos, eles saltaram saindo do caminho da vaca segundos antes dela investir contra as cercas metálicas da arena.

As competições Camargue não teriam sido banidas sob a proposta de lei fracassada. Elas tendem a ser mais perigosas para os humanos do que para os animais. No fim do evento em Vauvert, ainda que alguns homens mancassem, ninguém pareceu ferido com gravidade. Uma ambulância de plantão no local não foi usada.

Pesquisas mostram que, nas cidades francesas em que touradas são organizadas, mais de 60% dos habitantes se opõem ao touro ser morto. Mas defensores das touradas no sul da França afirmam que não há espaço para concessões. Eles querem preservar a tradição em todas as suas formas. “A morte é parte da vida”, afirmou o organizador do evento, Thomas Pagnon, que lideram uma organização de jovens em defesa das touradas e outras tradições.

Lionel Lopez foi às touradas em Vauvert com os filhos, de 6 e 11 anos, que baixaram na parede da arena uma capa cor de rosa, tentando chamar a atenção do animal. Para os meninos, os torneios daquele dia não foram nem os primeiros nem os mais violentos que já viram. Lopez afirmou que inicialmente planejou acostumar os filhos, protegendo-os das versões mais extremas de touradas. Mas depois de ir a uma competição Camargue, seu filho mais novo pediu para assistir uma “tourada de verdade”. Por ter sido apresentado à tradição ainda em tenra idade, afirmou Lopez, o menino de 6 anos “consegue ver a beleza do espetáculo”. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

Atualizamos nossa política de cookies

Ao utilizar nossos serviços, você aceita a política de monitoramento de cookies.