Por décadas, o clichê na política americana foi que ‘democratas se apaixonam e republicanos se alinham’.
O Partido Democrata era considerado um aglomerado de grupos com conexões frouxas e interesses fraturados, muitas vezes em guerra consigo mesmo. “Não pertenço a um partido organizado”, disse Will Rogers em frase famosa. “Sou um democrata.” Os republicanos eram considerados a força mais coesa.
Se isso foi verdade um dia, não é mais. Hoje, democratas se alinham, e republicanos desmoronam.
Não se trata só das 14 votações que Kevin McCarthy perdeu antes de prometer o suficiente de seu poder e prestígio para enfim ser nomeado presidente da Câmara. Trata-se de seus predecessores, Paul Ryan e John Boehner, que deixaram o cargo. Do Tea Party derrubando repetidamente deputados. De Ted Cruz e o Freedom Caucus (bancada da liberdade) forçando paralisações do governo que seus colegas não queriam.
De Donald Trump humilhando praticamente todo o establishment do partido e se tornando o eixo errático em torno do qual gira a política do partido. Dos republicanos expulsando e isolando Liz Cheney porque ela insistiu em investigar um ataque armado à Câmara que eles ocupam.
Hoje, um bando de republicanos não forma um partido. Está mais perto de um motim. Talvez a ascensão de pequenos doadores, as redes sociais e a política nacionalizada tenham corroído a coesão partidária. Mas os democratas também foram atingidos por tudo isso e responderam de forma bem diferente.
Barack Obama venceu Hillary Clinton para concorrer em 2008, mas em vez de exilar os Clintons para o deserto político ele nomeou Hillary secretária de Estado e depois a apoiou como sucessora. Em 2020, o establishment se uniu a Joe Biden. Quando Harry Reid se aposentou do Senado, foi substituído como líder por seu vice, Chuck Schumer. Quando Bernie Sanders perdeu em 2016, tornou-se parte da equipe de Schumer; quando perdeu em 2020, abençoou uma força-tarefa de união com Biden. Nancy Pelosi liderou o partido da Câmara de 2003 a 2022, e a transferência para Hakeem Jeffries foi sem dramas.
Então, por que o Partido Republicano repetidamente se voltou contra si mesmo de uma forma que o Democrata não fez? Não há uma explicação, então aqui estão três.
Republicanos presos entre dinheiro e fama
Há décadas, o Partido Republicano tem sido uma aliança estranha entre 1) doadores que querem desregulamentação, incentivos fiscais corporativos e cortes de direitos e 2) uma base etnonacionalista que se ressente da maneira como o país está se diversificando, urbanizando, liberalizando e secularizando. A legenda, como organização, faz a mediação entre essas duas alas, escolhendo candidatos, políticas e mensagens que evitam que a coalizão exploda.
Pelo menos fazia. “Uma maneira como tenho pensado sobre o Partido Republicano é que ele terceirizou a maioria de suas funções partidárias tradicionais”, disse-me Nicole Hemmer, autora de “Partisans: The Conservative Revolutionaries who Remade American Politics in the 1990s” (partidários: os revolucionários conservadores que refizeram a política americana nos anos 1990). “Terceirizou o financiamento dos comitês de ação política [Pacs]. Terceirizou a mídia para a mídia de direita.”
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Vamos examinar o financiamento. Theda Skocpol e Alexander Hertel-Fernandez documentaram a maneira como o dinheiro fluiu das organizações oficiais da legenda para um “consórcio extrapartidário de doadores conservadores” centrado na rede Koch (que é e tem sido há muito tempo bem maior que os próprios Kochs). Entre 2002 e 2014, a parcela controlada pelos comitês de campanha passou de 53% do dinheiro que Skocpol e colegas conseguiram rastrear para 30%.
O que surgiu no lugar foram grupos como Americans for Prosperity, Heritage Action Network e American Legislative Exchange Council, sofisticados e bem financiados, que passaram a agir como uma sombra do partido e arrastaram a agenda republicana ainda mais na direção dos desejos de sua classe corporativa.
Quais foram as políticas econômicas republicanas marcantes nessa época? Privatização da Previdência Social. Cortes de impostos para corporações e ricos. Acordos de livre comércio. Revogação do Obamacare. Corte no Medicaid. Privatização do Medicare. Cortes profundos de gastos.
“Os republicanos eleitos estavam seguindo agendas que simplesmente não eram populares, nem entre seus eleitores”, disse-me Skocpol, professora de Harvard.
Mas o que realmente corroeu a legitimidade foi que a atenção à agenda corporativa veio acompanhada de desatenção, e às vezes oposição, à agenda etnonacionalista. Isso foi particularmente verdadeiro na imigração, área em que o governo de George W. Bush tentou, e não conseguiu, aprovar um grande projeto de reforma em 2007. Em 2013, um grupo importante de republicanos do Senado juntou-se aos democratas para outra tentativa, mas viu o projeto ser derrubado por deputados republicanos.
Há uma razão pela qual a imigração foi o principal problema de Trump em 2016: foi o ponto de máxima divergência entre a elite do Partido Republicano e sua base.
Vale a pena rever o fracasso do projeto de Bush em 2007, porque ele revela a pinça em que o partido estava preso antes mesmo da ascensão do Tea Party. A revolta contra o texto foi centrada em programas de rádio, capazes de canalizar a fúria da base conservadora em uma força capaz de virar os detentores de cargos republicanos contra o presidente republicano.
Não seria a última vez. Enquanto a classe corporativa construía as organizações necessárias para aumentar seu controle da política, a base do partido erguia o ecossistema de mídia de que precisava para controlar os políticos. Primeiro veio Rush Limbaugh e seus imitadores, depois a Fox News (e eventualmente imitadores e concorrentes), depois blogs e veículos nativos digitais como Breitbart e Daily Wire. O segredo muitas vezes esquecido desse ecossistema é que ele é impiedosamente competitivo. Se você perder contato com o que realmente interessa ao público, vai perdê-lo para outro programa.
Mesmo partido, eleitores diferentes
Décadas atrás, a tensão anti-institucional na política americana era mais misturada entre os partidos. Democratas geralmente confiavam no governo, nas universidades, nos cientistas e nos assistentes sociais; republicanos acreditavam mais nas corporações, nas Forças Armadas e nas igrejas.
Mas agora você encontrará a Fox News atacando os militares “extremamente ‘conscientes” [das demandas sociais], e a União Conservadora Americana insistindo que qualquer republicano que busque um cargo de liderança no Congresso assine “uma nova estratégia compartilhada para repreender as corporações que estão [socialmente] conscientes”.
“A razão pela qual os democratas apoiam muito mais as instituições é porque eles são as instituições”, disse-me Matt Continetti, autor de “The Right: The Hundred-Year War for American Conservatism” (a direita: a guerra de cem anos pelo conservadorismo americano).
“Os republicanos são cada vez mais o partido não universitário. Quando Mitt Romney foi indicado candidato em 2012, o partido estava dividido entre brancos universitários e não universitários. Isso acabou. Os republicanos acabam de perder uma grande quantidade de eleitores com formação universitária —o que você pensava ser a espinha dorsal da legenda há 40 anos acaba de ser descartado.”
O problema do partido como instituição é que ele é, de fato, uma instituição. E, assim, a lógica da política anti-institucional inevitavelmente também o consome, particularmente quando está na maioria. Isso ficou quase comicamente explícito durante a luta pela presidência da Câmara. “Quebrem o establishment de uma vez por todas”, escreveu o deputado Andy Biggs, do Arizona. Seu colega Chip Roy disse que o objetivo era “capacitar [os deputados] a impedir que a máquina de Washington faça o que faz”.
Quanto mais a ala antiestablishment se expressa, mais o partido perde eleitores antes leais e inclinados às instituições e ganha eleitores que desconfiam delas.
Os republicanos precisam de um inimigo
Quando perguntei a Michael Brendan Dougherty, redator da National Review, o que era o Partido Republicano moderno, ele respondeu: “Não é o Partido Democrata”. Seu argumento é que não há muita coisa que una as várias facções da coalizão republicana, exceto a oposição aos democratas.
“A âncora da política democrata é uma orientação na direção de certas metas de políticas públicas”, disse-me Sam Rosenfeld, autor de “The Polarizers: Postwar Architects of our Partisan Era” (polarizadores: os arquitetos de nossa era partidária no pós-guerra). “O movimento conservador é mais orientado para o antiliberalismo do que para objetivos positivos e, portanto, as questões e as lutas que eles escolhem seguir são mais plásticas. O que isso acaba fazendo é lhes dar permissão para abrir seu movimento a influências extremistas e tornar muito difícil policiar os limites.”
Existe uma contradição insolúvel entre ser um partido organizado em torno da oposição ao governo e aos democratas e ser um partido que tem de dirigir o governo em cooperação com os democratas.
Podemos ver essa dinâmica agora. O caminho mais fácil para a cooperação bipartidária é enquadrar um projeto de lei como anti-China. O primeiro ato de McCarthy com qualquer apoio bipartidário foi criar um novo comitê para se concentrar na concorrência com a China.
Mas Pequim não é um inimigo direto como eram a União Soviética ou a Al Qaeda. Certamente não é força suficiente para organizar a política do Partido Republicano em torno de uma agenda positiva.
Tudo isso sugere que McCarthy ganhou um péssimo prêmio. Para se tornar presidente, negociou muitos dos poderes que teria como presidente e, o mais importante, provou ser fraco antes mesmo de segurar o martelo. “Tudo o que McCarthy tem é o título na porta de seu escritório”, disse-me Skocpol.
É um presidente vazio de um partido vazio.