THE WASHINGTON POST - Autoridades em Kiev acusaram as forças russas de roubarem grandes estoques de grãos da Ucrânia para levar para a Rússia, exacerbando o risco de escassez e fome em áreas sob controle russo. O cenário preocupa também os países que dependem das exportações ucranianas, como nações do Oriente Médio e Sul da Ásia.
Agricultores em território ucraniano ocupado por forças russas relataram que os russos estavam “roubando seus grãos em massa”, de acordo com um comunicado divulgado no fim de semana pelo Ministério da Política Agrária e Alimentação da Ucrânia.
O ministro da Agricultura, Mikola Solski, disse na TV ucraniana na semana passada que ouviu uma onda de relatos de representantes da indústria sobre russos apreendendo grãos nas últimas semanas em áreas ocupadas. “Isso é roubo total”, disse ele, alertando que o comportamento pode causar uma crise alimentar.
Um dos maiores exportadores de grãos do mundo, a Ucrânia viu sua indústria de grãos ser prejudicada por ataques russos e bloqueios de portos marítimos dos quais o país dependia para transportar produtos alimentícios para o mundo.
Os países do Oriente Médio e do sul da Ásia dependem fortemente dos grãos ucranianos, e o Programa Mundial de Alimentos da ONU alertou que a guerra pode exacerbar a fome global.
As exportações de grãos da Ucrânia caíram para cerca de 923 mil toneladas em abril, de 2,8 milhões de toneladas no mesmo mês de 2021 devido à guerra, informou a análise APK-Inform nesta semana. De acordo com dados do Conselho Internacional de Grãos, a Ucrânia era o quarto maior exportador de grãos na safra 2020/21, vendendo 44,7 milhões de toneladas para o exterior.
Ucranianos pró-Rússia
Autoridades ucranianas dizem que a fome também é uma ameaça crescente em casa – e acusam a Rússia de tentar deliberadamente impedir que os ucranianos consumam ou vendam seus produtos agrícolas.
A Ucrânia tinha 30 milhões de toneladas de trigo armazenadas no mês passado. O vice-ministro da Agricultura, Taras Visotski, disse na quinta-feira que a Ucrânia tem estoques de alimentos suficientes nas partes do país que ainda controla para alimentar a população local, segundo a agência Reuters. Mas em território ocupado pela Rússia, pode ser uma história diferente, alertaram as autoridades.
Dois meses depois de sua invasão, a Rússia controla faixas do sul da Ucrânia – uma região que ajudou o país a ganhar sua reputação como o celeiro da Europa. Visotski disse na TV ucraniana esta semana que os russos levaram cerca de 441 mil toneladas de grãos de quatro regiões ocupadas: Zaporizhzhia, Kherson, Donetsk e Luhansk.
Visotski disse que 1,4 milhão de toneladas de grãos foram armazenados em território ocupado e são necessários para as necessidades alimentares diárias dos ucranianos que vivem lá.
Como a guerra afeta os alimentos
Mais de 90% das terras agrícolas em Luhansk estão concentradas na parte norte da região, que as forças russas tomaram desde fevereiro, disse Serhi Haidai, governador regional de Luhansk, em seu canal no aplicativo Telegram. Os russos removeram ou destruíram uma quantidade de grãos na região que atenderia às necessidades dos moradores por três anos, disse Haidai.
O Washington Post não pôde verificar a exatidão das alegações. O Programa Mundial de Alimentos da ONU disse não ter conhecimento de quaisquer apreensões e exportações de grãos por forças russas em áreas ocupadas da Ucrânia. O Kremlin negou as alegações da Ucrânia, segundo a agência Reuters.
Ataques russos
Relatos de ataques russos a instalações de grãos ucranianas também aumentaram. Haidai acusou a Rússia de atacar um silo de grãos em Rubizhne, uma cidade em Luhansk, em abril. Quase 19 mil toneladas de trigo e cerca de 9,4 mil toneladas de produtos de girassol foram destruídas, disse ele. No início desta semana, o governador regional de Dnipropetrovsk compartilhou um vídeo de um ataque com foguete que, segundo ele, destruiu um armazém de grãos no distrito de Synelnykove.
Imagens de satélite fornecidas ao Post pela Planet Labs, uma empresa pública de imagens da Terra, tiradas em 8 e 21 de abril, mostram um silo antes e depois do ataque. Na imagem de 21 de abril, a maior parte da instalação parece estar achatada.
O Kremlin negou ter como alvo a infraestrutura civil ucraniana.
O ministro da Agricultura alemão, Cem Ozdemir, acusou a Rússia, o maior exportador de trigo do mundo, de usar a guerra na Ucrânia para obter vantagem competitiva no mercado de exportação.
“Continuamos recebendo relatórios sobre ataques russos direcionados a silos de grãos, depósitos de fertilizantes, áreas agrícolas e infraestrutura”, disse ele à RedaktionsNetzwerk, uma rede de jornais regionais alemães, na segunda-feira, acrescentando que o presidente russo, Vladimir Putin, aparentemente pretendia “eliminar a Ucrânia como concorrente a longo prazo”.
Özdemir disse que a Rússia está tentando capitalizar a crescente fome mundial.
Falando a Griff Jenkins, da Fox News, na quarta-feira, o presidente ucraniano, Volodmir Zelenski, acusou os países de fazer acordos de bastidores com Moscou para comprar grãos “roubados da Ucrânia”. Ele não citou os países.
Se confirmadas, as alegadas apreensões de grãos e ataques contra instalações de grãos podem alimentar alegações de crimes de guerra. A lei internacional proíbe a pilhagem de lugares tomados na guerra e a fome intencional de civis, privando-os de alimentos e necessidades básicas.
Holodomor
Autoridades ucranianas alegam que a Rússia está tentando causar fome na Ucrânia. Alguns fizeram paralelos com o Holodomor, a fome engendrada pelo líder soviético Joseph Stalin que matou cerca de 4 milhões de pessoas na Ucrânia em 1932 e 1933, principalmente agricultores e residentes rurais. Embora mesmo as alegações mais sérias desta quinta-feira dificilmente se comparem, a ressonância é profunda, em meio a um conflito que reabriu feridas históricas.
Solsky, o ministro da Agricultura, descreveu a suposta pilhagem russa de grãos nas últimas semanas como uma reminiscência da década de 30. Haidai, o governador de Luhansk, disse que “o objetivo é o Holodomor” após o bombardeio do silo de grãos em Rubizhne.
A Comissária de Direitos Humanos do Parlamento ucraniano, Ludmila Denisova, em um post no Facebook, repetiu a comparação e chamou a exportação de grãos de áreas ocupadas uma violação das Convenções de Genebra.
O termo invoca um horrível episódio de crueldade de Moscou para com o povo ucraniano. Durante o Holodomor – que significa morte por fome – Stalin procurou acabar com a resistência à coletivização, impedindo que os ucranianos rurais tivessem acesso à comida. Alguns ucranianos desesperados recorreram ao canibalismo.
Os historiadores descrevem amplamente a fome como uma política soviética deliberada. Raphael Lemkin, um especialista em direito internacional que cunhou o termo “genocídio”, chamou o Holodomor de o exemplo clássico de genocídio soviético.
A Rússia bloqueou os portos ucranianos do Mar Negro, impedindo a Ucrânia de exportar grãos e outros produtos agrícolas. Zelenski disse que a Ucrânia pode perder dezenas de milhões de toneladas de grãos como resultado do bloqueio, dizendo ao programa de notícias australiano 60 Minutes que a Rússia quer bloquear completamente a economia de seu país.
Os preços globais dos alimentos já estão subindo rapidamente. Países como Egito, Líbano e Paquistão, que dependem fortemente do trigo ucraniano, provavelmente serão os mais atingidos por bloqueios de exportação.
Quase 30% do trigo do mundo vem dos campos férteis da Ucrânia e da Rússia, enquanto 75% dos óleos essenciais usados para cozinhar e preparar alimentos também são produzidos nos dois países. Juntos, Rússia e Ucrânia respondem por 20% das exportações mundiais de milho, fertilizante mineral e gás natural – ambos componentes utilizados na produção e cultivo de grãos e sementes.
Desde o início da guerra, a Ucrânia procurou outras maneiras de transportar trigo para fora do país. Vsotski, vice-ministro da Agricultura, disse que o país aumentou as exportações de grãos em abril por essas rotas alternativas e que espera outro aumento em maio.
Mas a Ucrânia não pode exportar tanto trigo por trem quanto por mar, e o Programa Mundial de Alimentos alertou que, se os portos não funcionarem, o risco de fome em todo o mundo está crescendo./W.POST AP