KIEV - A usina nuclear de Zaporizhzhia, na Ucrânia, ocupada por tropas russas e alvo de intensos bombardeios recentemente, foi temporariamente desconectada da rede elétrica nacional nesta quinta-feira, 25, pela primeira fez na história, disse a empresa Energoatom, operadora da usina. O corte levou a um apagão em quase todas as cidades ocupadas pela Rússia no sul da Ucrânia. A falta de energia na usina nuclear, a maior da Europa, é um risco para o sistema de resfriamento dos reatores.
“Os dois reatores em operação da usina foram desconectados da rede. Consequentemente, as ações do invasor levaram à desconexão total [da usina de Zaporizhzhia] da rede elétrica, pela primeira vez em sua história”, disse a Energoatom no Telegram. “As outras três linhas foram danificadas anteriormente em ataques terroristas” pela Rússia, acrescentou.
O desligamento foi causado por incêndios que danificaram uma linha de transmissão, segundo a operadora. A linha danificada transportava eletricidade - e assim a região perdeu energia, de acordo com Yevgeni Balitski, o governador instalado na Rússia. Como resultado dos danos, os dois reatores ainda em uso ficaram offline, disse ele, mas um foi rapidamente restaurado, assim como a eletricidade na área.
A usina nuclear de Zaporizhzhia está sob ocupação russa desde o início de março e os recentes bombardeios na área geram temores com a segurança, já que um desastre nuclear em Zaporizhzhia seria dez vezes maior que o causado por Chernobyl em 1986, sugerem especialistas.
O temor agora se dá porque a usina precisa de eletricidade para operar os sistemas de refrigeração dos reatores e das barras de combustível. Se todas as conexões elétricas forem desligadas, o sistema passa a depender de geradores a diesel para energia - que são menos confiáveis -, e se estes quebrarem, os engenheiros têm apenas 90 minutos para evitar o superaquecimento perigoso dos reatores.
“Se perdermos a última linha de energia da usina, estaremos à mercê total dos geradores de energia de emergência”, disse Najmedin Meshkati, professor de engenharia civil e ambiental da Universidade do Sul da Califórnia.
No entanto, a linha aparentemente afetada nesta quinta-feira, é diferente daquela que transporta energia para acionar os sistemas de refrigeração essenciais para a operação segura dos reatores. Ainda assim, o corte destacou as preocupações sobre as batalhas ao redor da fábrica.
Na última quarta-feira, 24, Petro Kotin, chefe da Energoatom disse ao jornal britânico The Guardian que a Rússia já havia elaborado um plano detalhado para desconectar a usina da rede ucraniana e conectar à rede de Moscou. Segundo ele, o plano havia sido apresentado aos trabalhadores da usina que mostraram para a Energoatom.
Nas últimas semanas, Moscou e Kiev acusaram-se mutuamente de bombardear a usina no sul do país, que possui seis reatores com capacidade total de 6.000 megawatts. A Ucrânia também acusa a Rússia de armazenar armas pesadas na usina e usá-la como escudo para bombardear posições ucranianas.
Moscou nega ter implantado armas na usina e garante que só instalou unidades para garantir a segurança do local. A Rússia, por sua vez, acusa as forças ucranianas de terem bombardeado o complexo com drones. A ONU pediu a desmilitarização da usina para garantir a segurança e permitir uma inspeção do local, mas Moscou descarta a proposta como absurda.
“Qualquer pessoa que entenda as questões de segurança nuclear está tremendo nos últimos seis meses”, disse Mycle Schneider, consultor independente de políticas e coordenador do World Nuclear Industry Status Report.
Tanto o professor Meshkati e quanto Schneider expressaram preocupação de que a ocupação da fábrica pelas forças russas também esteja dificultando as inspeções de segurança e a substituição de peças críticas, e está colocando muita pressão sobre centenas de funcionários ucranianos que operam a instalação.
“A probabilidade de erro humano aumentará muito com a fadiga”, disse Meshkati, que fez parte de um comitê nomeado pela Academia Nacional de Ciências dos EUA para identificar as lições do desastre nuclear de 2011 na usina nuclear de Fukushima, no Japão. “Fadiga e estresse são, infelizmente, dois grandes fatores de segurança.”
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A troca de acusações sobre a ameaça de uma catástrofe nuclear evidencia que a guerra iniciada há mais de cinco meses continua causando estragos
Bombardeios constantes
A Ucrânia não pode simplesmente fechar suas usinas nucleares durante a guerra porque depende muito delas, e seus 15 reatores em quatro estações fornecem cerca de metade de sua eletricidade. Ainda assim, um conflito contínuo perto de uma usina atômica em funcionamento é preocupante para muitos especialistas que temem que uma instalação danificada possa levar a um desastre.
Esse medo é palpável do outro lado do rio Dnipro, em Nikopol, onde os moradores estão sob bombardeios russos quase constantes desde 12 de julho, com oito pessoas mortas, 850 prédios danificados e mais da metade da população de 100.000 fugindo da cidade.
Nenhuma usina nuclear civil foi projetada para uma situação de guerra, embora os prédios que abrigam os seis reatores de Zaporizhzhia sejam protegidos por concreto armado que pode resistir a um projétil errante, dizem especialistas.
A preocupação mais imediata, porém, é justamente com uma interrupção no fornecimento de eletricidade para a usina que pode derrubar os sistemas de refrigeração. Além disso, as piscinas onde são mantidas as varetas de combustível usado para serem resfriadas também são vulneráveis a bombardeios, que podem causar a liberação de material radioativo.
Kiev disse à Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), órgão de vigilância nuclear da ONU, que o bombardeio no início desta semana danificou transformadores em uma usina convencional próxima, interrompendo o fornecimento de eletricidade para a usina de Zaporizhzhia por várias horas.
O chefe da agência atômica, Rafael Mariano Grossi, disse que espera enviar uma missão à usina dentro de “dias”. As negociações sobre como a missão acessaria a usina são complicadas, mas avançam, disse ele na televisão France-24 depois de se reunir em Paris com o presidente francês Emmanuel Macron, que pressionou o presidente russo Vladimir Putin em um telefonema na semana passada para permitir que a agência da ONU visitasse o local.
Em uma reunião do Conselho de Segurança da ONU na terça-feira, 23, - convocada pela Rússia para discutir justamente a situação da usina - a chefe política da ONU, Rosemary DiCarlo, pediu a retirada de todo o pessoal e equipamentos militares da usina e um acordo sobre uma zona desmilitarizada em torno dela.
Risco nuclear
Se um incidente na usina de Zaporizhzhia liberar quantidades significativas de radiação, a escala e a localização da contaminação seriam determinadas em grande parte pelo clima, disse Paul Dorfman, especialista em segurança nuclear da Universidade de Sussex, que aconselhou os britânicos e irlandeses governos.
O grande terremoto e tsunami que atingiram a usina de Fukushima em 2011 destruíram os sistemas de refrigeração que provocaram colapsos em três de seus reatores. Grande parte do material contaminado foi lançado ao mar, limitando os danos.
A explosão e o incêndio de 26 de abril de 1986 em um dos quatro reatores da usina nuclear de Chernobyl, ao norte de Kiev, enviaram uma nuvem de material radioativo por uma ampla faixa da Europa e além. Além de alimentar o sentimento antinuclear em muitos países, o desastre deixou profundas cicatrizes psicológicas nos ucranianos.
Os reatores de Zaporizhzhia são de um modelo diferente dos de Chernobyl, mas ventos desfavoráveis ainda podem espalhar a contaminação radioativa em qualquer direção, disse Dorfman.
“Se algo realmente der errado, teremos uma catástrofe radiológica em grande escala que pode atingir a Europa, ir até o Oriente Médio e certamente chegar à Rússia, mas a contaminação mais significativa seria na área imediata”, disse ele.
É por isso que o departamento de serviços de emergência da Nikopol faz medições de radiação a cada hora desde o início da invasão russa. Antes era de quatro em quatro horas./AP, AFP e NYT