KIEV — A Ucrânia quase não fabricava armamentos antes da Rússia invadir, em fevereiro de 2022, mas hoje sua indústria armamentista doméstica é pujante.
As fábricas produzem projéteis, morteiros, veículos militares, mísseis e outros itens cruciais para o esforço de guerra. A produção triplicou em 2023 e deverá crescer seis vezes este ano, afirmou o primeiro-ministro Denis Shmihal em uma reunião do governo ucraniano, em janeiro.
A produção local não é suficiente para compensar a perda do apoio internacional, especialmente dos armamentos dos Estados Unidos. Mas com um pacote de ajuda de US$ 60 bilhões empacado no Congresso americano, a manufatura doméstica é mais crítica que nunca para a Ucrânia.
Certos itens cruciais, como os drones que transformaram a maneira que a guerra é travada, a Ucrânia já fabrica 90% do que precisa, afirmou o ministro da Transformação Digital, Mikhailo Fedorov, em uma conferência no mês passado.
Entre esses itens estão os veículos aéreos não tripulados de longa distância que atacaram estruturas petrolíferas dentro da Rússia nas semanas recentes, assim como os drones navais que provocaram danos severos na Frota Russa no Mar Negro e ajudaram a reabrir rotas marítimas para as exportações ucranianas de grãos. A Ucrânia também fabrica seus próprios morteiros e projéteis de artilharia de padrão soviético de 122mm e de 152mm.
As empresas de defesa ucranianas também estão se movimentando para suprir uma grande necessidade do Exército fabricando seus próprios projéteis de 155mm, do padrão da Otan, que são necessários para munir os sistemas de artilharia fornecidos pelos apoiadores ocidentais da Ucrânia.
Esses projéteis estão desesperadamente escassos no front, mas um diretor da empresa estatal de defesa Ukroboronprom afirmou que a produção só começará “no segundo semestre deste ano”. O diretor, que falou sob condição de anonimato em razão da sensibilidade dos temas de segurança nacional, não deu mais detalhes.
Mas o presidente Volodmir Zelenski afirmou que a manufatura doméstica é crítica para a Ucrânia ser capaz de sustentar sua defesa.
“Essa é a saída”, disse Zelenski à Associated Press em dezembro, ao discutir a possibilidade da Ucrânia desenvolver mais plenamente sua indústria armamentista. Se essas aspirações se concretizarem, afirmou ele, os planos da Rússia “para desestabilização, expansão e ocupação da Ucrânia terão fim”.
Ainda que a Ucrânia tenha capacidade manufatureira e certas matérias-primas, especialmente ferro, seu Exército precisa urgentemente de armas neste momento.
“Infelizmente, eu posso dizer que sem a ajuda dos nossos parceiros ocidentais, nossos amigos, incluindo os EUA, nós não seremos capazes de atender plenamente as necessidades das Forças Armadas da Ucrânia”, afirmou Maksim Polivianii, vice-diretor-geral da Ukrainian Armor, a maior fabricante privada de armamentos no país.
Após a queda da União Soviética, a indústria armamentista da Ucrânia se despedaçou. Anos de má gestão e corrupção aliados com o fato de que grande parte da indústria colocava foco nos compradores russos fizeram a Ucrânia ter de apelar para o exterior para obter todo tipo de armamento, de projéteis a caças de combate.
A Ucrânia também entregou seu arsenal nuclear em troca de garantias, incluindo da Rússia, de que sua soberania territorial seria respeitada.
Agora, depois de mais de dois anos de guerra em escala total, falta de tudo na Ucrânia, de itens básicos, como projéteis, até armamentos sofisticados, como sistemas de mísseis de longo alcance, caças de combate e bombardeiros.
Alguns armamentos estão no horizonte. O ministro ucraniano de Indústrias Estratégicas, Oleksandr Kamishin, afirmou no mês passado que a Ucrânia tinha acionado mísseis fabricados domesticamente com alcance de mais de 650 quilômetros. Mas não forneceu detalhes. Sistemas de defesa antiaérea com mísseis de alta precisão similares aos Sistemas Avançados de Mísseis Terra-Ar (NASAMS) americanos e noruegueses também estão em desenvolvimento, afirmaram autoridades.
Mas os sistemas de alta tecnologia que a Ucrânia precisa para expulsar os invasores russos estão longe de ser manufaturados no país. “Para dominar uma produção desse tipo, construir essa capacidade de produção, são necessárias décadas”, afirmou Polivianii, que também atua como diretor da Associação Nacional das Indústrias de Defesa Ucranianas, que inclui mais de 50 fornecedores privados.
Nas semanas recentes, soldados ucranianos perderam terreno no leste, conforme enfrentaram dificuldades em razão dos estoques cada vez menores de projéteis, balas e até soldados. E a situação logo poderá piorar muito mais. A inteligência dos EUA previu que a Ucrânia pode ficar sem mísseis de defesa antiaérea até o fim deste mês.
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Enquanto a Casa Branca trabalha para conseguir US$ 60 bilhões em ajuda por meio do Congresso, lampejos de esperança têm surgido para a Ucrânia.
Na semana passada, a União Europeia aprovou um pacote de US$ 5 bilhões em ajuda militar, e o governo Biden anunciou que enviaria US$ 300 milhões em ajuda, possibilitada por “economias de custos não antecipadas” em contratos do Pentágono para a Ucrânia. E uma iniciativa da República Checa espera começar a enviar cerca de 800 mil projéteis nas próximas semanas.
Mas tudo isso ainda fica muito aquém das necessidades do país. Autoridades ucranianas afirmam que não podem revelar números exatos a respeito de sua produção manufatureira em razão de preocupações de segurança. Mas uma longa lista de restrições — da falta de financiamento adequado à obtenção de pólvora suficiente — impede a indústria ucraniana de aumentar a produção.
“Nosso orçamento de governo não é suficiente”, afirmou o líder da Comissão de Segurança Nacional, Defesa e Inteligência do Parlamento ucraniano, Oleksandr Zavitnevich.
A capacidade da Ucrânia de financiar a produção doméstica de armas é limitada pelo capital de investimento que o país for capaz de alocar, já que o apoio financeiro ocidental geralmente é destinado a gastos não militares. Neste ano, a Ucrânia gastará cerca de US$ 5 bilhões na produção doméstica de armamentos, afirmam autoridades, mas todos concordam que isso não é suficiente.
“O principal recurso de defesa é o dinheiro”, afirmou Zavitnevich. Mesmo que seja factível economicamente, aumentar impostos é politicamente arriscado, pois a economia do país já agoniza em razão de grande parte da população economicamente ativa viver no exterior, combater na guerra ou estar desempregada.
Autoridades ucranianas defendem o uso de parte dos US$ 300 bilhões em ativos do Banco Central russo congelados no Ocidente. Na sexta-feira, o chanceler alemão, Olaf Scholz, disse pela primeira vez que apoia a ideia.
Mas mesmo se encontrar dinheiro a Ucrânia enfrentará uma escassez mundial de químicos explosivos.
Gargalos em cadeias de fornecimento e um aumento acentuado na demanda internacional — causados em parte pelas guerras na Ucrânia e em Gaza — exauriram estoques de pólvora e propulsores de foguetes. Na Ucrânia, isso causou interrupções periódicas de produção, afirmou Polivianii, da Ukrainian Armor.
“Nós chegaremos a um estágio em que fabricaremos tanta munição quanto a pólvora que conseguirmos nos permitir”, afirmou o diretor da Ukroboronprom.
Os métodos de aquisição do governo ucraniano também dificultam a produção, afirmam fornecedores do setor de defesa, com vários ministros assinando contratos sem um sistema coeso.
“A pergunta estúpida que ouvimos de diferentes ministérios é, ‘Quanto vocês conseguem produzir este mês?’”, afirmou Artem Viunnik, diretor da Athlon Avia, que fabrica o Furia, o principal drone de vigilância para localização de artilharia. “Eles têm de entender que manufatura não funciona desse jeito.”
Antes da guerra, a Athlon produzia 100 drones ao ano, afirmou Viunnik. Agora fabrica 150. Mas os contratos requerem meses de planejamento para a compra de matérias-primas.
Viunnik afirmou que responde sempre a mesma coisa às autoridades: que não consegue aumentar a produção imediatamente, mas que se houver preparativos é capaz de produzir mais no ano seguinte. “Eu consigo, mas façam a encomenda agora”, afirmou ele.
Autoridades ucranianas afirmaram que estão simplificando o processo, que é liderado pelo Ministério da Defesa e pelo Estado-Maior das Forças Armadas.
A Ucrânia também está trabalhando com empresas ocidentais, como a alemã Rheinmetall, a britânica BAE Systems e a turca Baykar. No mês passado, a Rheinmetall concordou em participar de um empreendimento conjunto para fabricar projéteis de 155mm e propulsores.
Em última instância, Zelenski espera obter empréstimos baratos e licenças de fabricação e reparo de armamentos americanos.
Conforme a Ucrânia aumentou sua produção de armamentos, a Rússia começou a mirar as fábricas. Muitos mísseis são interceptados, mas vários atingiram seus alvos, segundo relatos.
A Ucrânia não revela quando uma fábrica é atingida. Uma viagem recente de jornalistas do Washington Post à unidade de produção de morteiros da Ukrainian Armor foi interrompida duas vezes por alertas de ataques aéreos. Mas os repórteres não observaram nenhum míssil ou drone explosivo da Rússia nas proximidades.
A Ukrainian Armor e outras empresas transferiram parte de sua produção para fora da Ucrânia, afirmou Polivianii.
Como medida de proteção, as empresas fragmentam estágios de produção, ou duplicam, colocando-os em diferentes localidades. Alguns processos críticos ocorrem no subterrâneo. Tudo isso diminui a produção.
Viunnik, da Athlon Avia, afirmou que fragmentou sua operação em Kiev e transferiu parte da manufatura para Lviv, no oeste da Ucrânia. Após um alerta de ataque, ele também fragmentou a produção por lá. “Isso diminui nossa eficiência”, afirmou ele. “Mas temos de fazer isso. Se não fazemos podemos ter um grande problema.” / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL