HANOVER, Alemanha - Suas memórias mais antigas são de fugir de bombas ou ouvir rumores sobre massacres de outros judeus, incluindo seus parentes. Abrigados pela União Soviética, eles sobreviveram.
Agora idosos e frágeis, os sobreviventes ucranianos do Holocausto estão escapando da guerra mais uma vez, em uma jornada notável que vira o mundo que eles conheciam de cabeça para baixo: eles estão buscando segurança na Alemanha.
Para Galina Ploschenko, de 88 anos, não foi uma decisão tomada sem apreensão.
“Disseram-me que a Alemanha era a minha melhor opção. Eu disse a eles: ‘Espero que você esteja certo’”, conta.
Ploschenko é beneficiária de uma missão de resgate organizada por grupos judeus, tentando tirar os sobreviventes do Holocausto da guerra provocada pela invasão da Ucrânia pela Rússia.
Tirar esses nonagenários de uma zona de guerra usando ambulâncias é um trabalho perigoso, impregnado de uma ironia histórica: não apenas os sobreviventes do Holocausto estão sendo trazidos para a Alemanha, mas o ataque agora está vindo da Rússia – um país que eles viam como seus libertadores dos nazistas.
Há uma semana, Ploschenko ficou presa em sua cama em um centro de aposentadoria em Dnipro, sua cidade natal no centro da Ucrânia, enquanto ataques de artilharia trovejavam e sirenes de ataques aéreos soavam. As enfermeiras e aposentados que podiam andar tinham fugido para o porão. Ela foi forçada a ficar deitada em seu quarto no terceiro andar, sozinha com uma mulher surda e um homem mudo, acamado como ela.
“Naquela primeira vez, eu era criança, com minha mãe como minha protetora. Agora, eu me senti tão sozinha. É uma experiência terrível, dolorosa”, disse ela, confortavelmente abrigada, após uma jornada de três dias, em um centro de atendimento a idosos em Hanover, no noroeste da Alemanha.
Até o momento, 78 de 10 mil sobreviventes ucranianos mais frágeis foram resgatados. Uma única operação leva até 50 pessoas, a partir de uma coordenação entre três continentes e cinco países.
Para os dois grupos que coordenam os resgates – a Conferência de Reivindicações Judaicas e o Comitê de Distribuição Conjunta Americana – convencer sobreviventes como Ploschenko a sair não é uma tarefa fácil.
A maioria dos sobreviventes mais frágeis e mais velhos contactados recusou-se a sair de casa. Aqueles dispostos a ir tinham inúmeras perguntas: E quanto aos seus medicamentos? Havia falantes de russo ou ucraniano lá? Eles poderiam trazer seu gato? (Sim, como se viu.)
Depois veio a pergunta mais embaraçosa de todas: por que a Alemanha?
“Um deles nos disse: não serei levado para a Alemanha. Eu quero ser resgatado – mas não ir para a Alemanha”, disse Rüdiger Mahlo, da Claims Conference, que trabalha com autoridades alemãs em Berlim para organizar os resgates.
Fundada para negociar restituições do Holocausto com o governo alemão, a Claims Conference mantém uma lista detalhada de sobreviventes que, em circunstâncias normais, é usada para distribuir pensões e assistência médica, mas que agora serve como forma de identificar pessoas para retirada.
Por muitas razões, dizia Mahlo, a Alemanha fazia sentido. Era facilmente acessível de ambulância pela Polônia. Tem um sistema médico bem financiado e uma grande população de falantes de russo, incluindo emigrantes judeus da antiga União Soviética. E sua organização tem um relacionamento íntimo com funcionários do governo depois de décadas de negociações sobre restituição. Israel também é uma opção, para aqueles bem o suficiente para voar para lá.
Ploschenko agora tem “nada além de amor” pela Alemanha, embora ela ainda se lembre de “tudo” sobre a primeira guerra a que sobreviveu – desde o lenço que sua mãe enrolou em seu corpo, em um ponto sua única peça de roupa, até o boletim de rádio que lhe deu a notícia de que milhares de judeus, entre eles uma tia e dois primos, haviam sido mortos em vagões de gás que os moradores chamavam de “dushegubka”, ou assassino de almas.
Seu pai, que partiu para lutar com o exército soviético, desapareceu sem deixar rastro.
“Eu não tinha medo da Alemanha”, disse ela. “Eu simplesmente não conseguia parar de pensar: papai morreu naquela guerra. Meus primos morreram naquela guerra.”
Ploschenko acredita que ela, sua mãe e cinco de suas tias sobreviveram cantando – seja trabalhando nos campos de algodão no Casaquistão, onde encontraram refúgio temporário, ou se aconchegando sob guarda-chuvas em um apartamento sem teto após a guerra.
“Nós cantávamos junto com o rádio”, ela lembra com um sorriso. “Foi o que nos salvou. Cantávamos tudo, o que quer que estivesse tocando – ópera, canções folclóricas. Eu realmente quero cantar, mas não sei se posso mais. Não tenho voz para isso. Então, em vez disso, apenas me lembro de todas as vezes que cantei antes.”
Empoleirada em meio a travesseiros em uma sala ensolarada no centro sênior da AWO, Ploschenko dirige a música em sua mente com a mão trêmula. Enquanto os zeladores entram e saem, ela pratica as frases em alemão que anotou cuidadosamente em um bloco de notas: “Danke Schön”, muito obrigado. “Alles Liebe”, muito amor.
“No esquema de todo esse horror, cerca de 70 pessoas não parece muito”, disse Gideon Taylor, presidente da Claims Conference. “Mas sabendo o que é preciso para trazer essas pessoas, uma a uma, ambulância por ambulância, para a segurança na Alemanha, se torna incrivelmente significativo.”
Essas retiradas são inevitavelmente atormentadas por problemas logísticos com momentos de roer as unhas. Ambulâncias foram enviadas de volta dos postos de controle enquanto os combates se intensificavam. Outras foram confiscadas por soldados, para usar com seus próprios feridos. Confrontados com estradas destruídas, os motoristas têm conduzido suas ambulâncias pelas florestas.
A maioria dos problemas logísticos são resolvidos a 3.200 quilômetros de distância, onde Pini Miretski, líder da equipe de retirada médica, trabalha em uma sala do Comitê de Distribuição Conjunta em Jerusalém. O J.D.C., uma organização humanitária, tem um longo histórico de retiradas de civis, incluindo o contrabando de judeus da Europa na Segunda Guerra Mundial. Nos últimos 30 anos, seus voluntários trabalharam para reviver a vida judaica em antigos países soviéticos, incluindo a Ucrânia.
Miretski e outros se coordenam com equipes de resgate dentro da Ucrânia, uma vez ajudando-os a alcançar uma sobrevivente que tremia em um apartamento com temperatura de 14 graus, com as janelas quebradas por explosões. Em outro caso, eles ajudaram socorristas que passaram uma semana retirando um sobrevivente em uma vila cercada por batalhas ferozes.
“Existem mais de 70 dessas histórias agora, cada uma delas assim”, disse ele.
Para Miretski, esta operação parece pessoal: um judeu ucraniano emigrante em Israel, seus bisavós foram mortos em Babyn Yar, também conhecido como Babi Yar, a ravina em Kiev onde dezenas de milhares foram empurrados para a morte depois de serem despojados e baleado com metralhadoras dos anos de 1941 a 1943. O memorial daqueles massacres em Kiev foi atingido por mísseis russos nos primeiros dias de sua invasão.
“Eu entendo a dor dessas pessoas, sei quem são”, disse Miretski. “Essas cenas, essas histórias agora – de certa forma, é como se a vida estivesse dando um ciclo completo. Porque muitas dessas histórias se tornaram reais.”
Para Vladimir Peskov, de 87 anos, retirado de Zaporizhzhia na semana passada e agora morando no mesmo corredor da casa de Ploschenko em Hanover, o sentimento circular que esta segunda guerra deu à sua vida é desmoralizante.
“Sinto uma espécie de desesperança, porque parece que a história se repete”, disse ele, curvado em uma cadeira de rodas, acariciando uma caneca que pertencia à sua mãe – uma das poucas lembranças que ele trouxe para a Alemanha.
No entanto, ele também encontrou algum consolo.
“A guerra de hoje acabou com todas as emoções negativas que eu sentia em relação à Alemanha”, disse ele.
Do lado de fora de seu quarto, um grupo de sobreviventes recém-chegados da cidade oriental de Kramatorsk estava sentado ao redor de uma mesa na cozinha ensolarada da casa. Eles lamentaram em voz alta a ideia de fugir da guerra novamente. Mas eles se recusaram a compartilhar seus pensamentos com um repórter de um jornal ocidental.
“Você não vai dizer a verdade”, disse um homem, desviando o olhar.
A hesitação deles reflete uma das partes mais dolorosas deste segundo exílio, particularmente para aqueles das regiões orientais de língua russa da Ucrânia: reconsiderar a visão da Alemanha é uma coisa, reconhecer a Rússia como agressora é outra.
“Meus sonhos de infância eram comprar uma bicicleta e um piano e viajar para Moscou para ver Stalin”, disse Ploschenko. “Moscou era a capital da minha terra natal. Eu adorava a música ‘My Moscow, My Country’. É difícil para mim acreditar que esse país agora é meu inimigo.”
Folheando um livro de fotos, ela apontou para fotos de seu eu mais jovem, posando em um maiô na praia em Sochi, as ondas quebrando ao seu redor.
“Às vezes acordo e esqueço que estou na Alemanha”, disse ela. “Eu acordo e estou de volta em uma viagem de negócios na Moldávia, ou Usbequistão. Estou de volta à União Soviética.”
Mas a Alemanha será sua casa pelo resto de seus dias. É uma ideia com a qual ela agora fez as pazes, disse. “Não tenho para onde ir.”