ESPECIAL PARA O ESTADÃO, LISBOA - Está marcada para essa semana a chegada à Ucrânia de um grupo de portugueses “nacionalistas étnicos”, como se autodenominam, que pretende se deslocar em carros, por quatro países, até a fronteira com a Polônia. A chamada Operação Ucrânia 1143, organizada pelo extremista de ultradireita Mário Machado - que ao deixar a prisão em novembro fez publicamente a saudação nazista -, tem objetivos militares e civis. Dizendo-se, no áudio em que pede apoio financeiro, “chocado brutalmente” com imagens da tevê, Machado afirma que o foco da viagem de mais de 3 mil quilômetros, prevista para começar neste domingo, 20, será a " ajuda a bebês até dois anos de idade”.
Conhecido há duas décadas das autoridades europeias por sua longa ficha criminal, o ex-militar que já comandou organizações de skinheads, afirma que sua iniciativa não é “a favor de nenhum governo”, pois “odiamos Putin (...) e Zelensky não é um dos nossos”. Obrigado a comparecer a cada 15 dias ao posto policial de sua região, por responder a processo por, entre outras acusações, posse ilegal de arma de fogo, Machado pediu - e obteve - do Tribunal Central de Instrução Criminal de Lisboa autorização para não cumprir a medida de coação enquanto estiver na Ucrânia. “Considerando-se a situação humanitária vivida na Ucrânia e as finalidades invocadas, (...) o arguido poderá deixar de cumprir a referida medida de coação enquanto estiver no estrangeiro”, lê-se no despacho do tribunal.
Por meio de seu advogado, Mário Machado alegou ter “comportamento exemplar” no cumprimento das medidas judiciais e informou ao tribunal ter mobilizado “um grupo de pessoas de diversas nacionalidades para ir à Ucrânia prestar ajuda humanitária e, se necessário, combater ao lado das tropas ucranianas”.
Ao falar com seus apoiadores, Machado traçou um paralelo entre a vizinhança de Portugal e Espanha para defender o apoio internacional à Ucrânia contra a Rússia. “Imaginem que Espanha invada Portugal (...). Nosso primeiro-ministro seria António Costa, portanto o indiano (a família paterna de Costa é de Goa), mas nós iríamos querer libertar nosso país.” E prossegue: “Isso é o que se passa com os nacionalistas da Ucrânia, independentemente de gostarem ou não do presidente deles”.
Até a véspera da viagem, o militante extremista não tinha certeza se conseguiria sair de Portugal e afirmava que não pretendia se alistar na Legião Internacional nem atravessar a fronteira. Seu receio era ser impedido de viajar pelo Ministério Público. “O Ministério Público sempre dá um jeito de me prender antes de eu fazer alguma coisa diferente”, reclamava. A Procuradoria-Geral da República, que teria de dar parecer sobre o caso, não se manifestou.
Intercâmbio é risco para toda a Europa
“A viagem de elementos de extrema direita para a Ucrânia representa um risco para a segurança da Europa, inclusive para Portugal. Estes extremistas desejam ganhar experiência militar, estabelecer contatos internacionais e prestígio para quando regressarem poderem criar e fortalecer grupos capazes até de levarem a cabo ataques nos seus países de origem”, afirma o diretor do site investigativo Setenta e Quatro, Ricardo Cabral Fernandes, que estuda há anos a extrema direita portuguesa e suas conexões internacionais. “No caos da guerra, armamento fornecido pela Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) pode cair nas mãos destes grupos”, acrescenta.
Apesar de considerar que a movimentação pode ter caráter propagandístico, já que Machado teria perdido, na sua avaliação, influência e espaço nos últimos anos, Fernandes alerta que a viagem à Ucrânia “não pode ser encarada com leviandade”. Ele destaca que, em 2019, quando era líder do Nova Ordem Social (NOS), grupo extinto e classificado como neonazista nos relatórios da Europol, Machado organizou uma conferência internacional em Lisboa que teve como principal oradora a neonazi italiana Francesca Rizzi. “Dois anos depois, em junho de 2021, Rizzi foi detida na sequência de uma investigação das autoridades italianas sobre uma rede terrorista que pretendia realizar um atentado contra uma estrutura da Otan”, relata.
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O Exército russo bombardeou uma escola que servia de abrigo para centenas de pessoas na cidade de Mariupol, situação humanitária piora.
Organização política internacional que monitora as ameaças de extremistas e cria programas para suprimir redes de apoio financeiro, recrutamento e de operação desses grupos, o Counter Extremism Project (CEP) afirma que a guerra de Putin reanimou em 2022 a atividade de recrutamento de voluntários estrangeiros para a zona de conflito, já verificada em 2014 - motivação reforçada pela criação, pelo Ministério da Defesa ucraniano, da Legião Internacional.
As autoridades ucranianas, que já anunciaram contar com 20 mil voluntários, exigem que o futuro combatente siga sete etapas, que começa com a inscrição nas embaixadas, onde deve apresentar documentos, passar por entrevista, receber um visto e ter a viagem monitorada e com ponto de encontro definido. Ao chegar, o voluntário assinará um contrato antes de se integrar às Forças Armadas. Nem sempre esse roteiro oficial é seguido - como mostra a ação do grupo de Machado, que afirma ter contatos militares próprios na Polônia.
“A ideologia política do novo combatente estrangeiro parece ser de pouca ou nenhuma relevância agora”, alerta a CEP, afirmando que há radicais de direita dos dois lados do conflito, e, em menor escala, também de extrema esquerda - mas que esses grupos são minoritários e não devem ter sua imagem associada ao governo ucraniano.
“Mas é esta minoria a mais preocupante”, avalia Ricardo Fernandes. Ele lembra que o supremacista branco Brenton Tarrant, responsável por ataques terroristas a duas mesquitas em Christchurch, na Nova Zelândia, em 2019, causando a morte a 50 muçulmanos, “esteve na Ucrânia antes de praticar este massacre, tendo inclusive passado brevemente pela cidade portuguesa de Tomar.”
Segundo os monitoramentos de atividade online feitas pelo Counter Extremism Project, já estariam hoje na Ucrânia combatentes espanhóis, japoneses, americanos, canadenses, finlandeses, dinamarqueses, noruegueses, suecos, britânicos, lituanos, mexicanos, indianos e alemães. A entidade destaca que o Regimento Azov, considerado um centro de milícias para a extrema direita e hoje oficialmente integrado ao Exército da Ucrânia, reverteu sua decisão de 2019 e voltou a recrutar estrangeiros.
Diferentemente de 2014, quando organizações judaicas apontaram para a reabilitação de forças nazistas na Ucrânia, com destaque para os militantes do Azov, em 2022 há um quase apoio unânime dessas entidades ao país. Além de se solidarizar como o povo ucraniano, a Coalizão Nacional de Apoio aos Judeus Eurasianos (NCSEJ) discordou, em recente comunicado à imprensa, das declarações do presidente russo, Vladimir Putin - notório apoiador, até invadir a Ucrânia, da extrema-direita na Europa-, de que iria “desnazificar” o governo ucraniano.
“A justificativa de Putin para invadir é totalmente sem mérito e sua afirmação de que a Ucrânia é um estado fascista ou nazista não tem base”, disse o NCSEJ. “A comunidade judaica ucraniana está totalmente integrada e goza de todos os direitos e privilégios como qualquer outro cidadão ucraniano”. Eleito com 73% dos votos em 2019, o presidente Volodymyr Zelensky é judeu e perdeu familiares na Segunda Guerra, alistados no Exército Vermelho. Ele já afirmou que a Ucrânia teria alcançado em sua gestão “os menores níveis de antissemitismo.”
Autoridades da Europa deveriam proibir viagens
A organização Counter Extremism Project recomendou que as viagens de extremistas violentos para a Ucrânia sejam interrompidas nos países de origem e que a União Europeia impeça o deslocamento deles com mecanismos semelhantes aos acionados contra os hooligans do futebol. Defende ainda que esses grupos sejam vigiados pelas autoridades de segurança e inteligência, sobretudo nos países fronteiriços à Ucrânia. Por fim, a organização recomenda que, após seu retorno, seja realizada uma avaliação de risco completa dos combatentes estrangeiros.
Para a organização, o intercâmbio de informações entre as forças policiais poderia ficar a cargo da Europol - cuja direção esteve na Polônia na última semana. Segundo a Europol, que diz estar na linha de frente da defesa da UE, a guerra na Ucrânia “cria oportunidades para o crime organizado florescer e amplifica a ameaça que os grupos criminosos podem representar para a segurança interna” do continente.