AMERICAS QUARTERLY, SANTIAGO — As causas foram complexas, mas uma coisa está muito clara a respeito da sensação que prevalece por aqui desde que os massivos protestos de rua irromperam em outubro de 2019: os chilenos querem mudança.
A instauração de uma assembleia constituinte e a eleição do presidente Gabriel Boric representaram as duas respostas mais importantes a essas demandas. E mesmo assim, ambos descambaram para um começo difícil. É verdade que não existe segunda chance para causar uma boa primeira impressão, mas isso poderia acabar resultando num problema duradouro — e grave — para ambos.
Boric assumiu o cargo pouco mais de um mês atrás, em meio a uma onda de otimismo e boa vontade. Aos 36 anos, energético e empático, ele pareceu encarnar a mudança que os chilenos buscam. Sua plataforma eleitoral foi um catálogo de temas há muito ignorados no Chile, com ênfase especial em inclusão. Seus encontros políticos, seu gabinete, seus embaixadores e outras posições incluíram um número histórico de mulheres e perspectivas diversas.
Mas Boric também enfrenta sérios contraventos, conforme evidencia uma pesquisa recente do Pulso Ciudadano que constatou sua aprovação despencando para meros 28% (outra pesquisa, do Cadem, coloca esse índice em 40%). Está cada vez mais claro que o descontentamento e a desconfiança do público que motivaram os protestos de 2019 jamais desapareceram realmente.
Em vez disso, foram canalizados no sentido de um processo de mudança política, contidos em parte na assembleia constituinte. Ao mesmo tempo, a opinião pública está em grande medida na expectativa de resultados — e resultados rápidos. Talvez mais rápidos do que qualquer governo seria capaz de prover.
Algumas críticas chegam de campos inesperados. Na realidade, a coalizão do presidente, composta por novos partidos progressistas e pelo Partido Comunista, é instável. O ex-adversário de Boric nas primárias, Daniel Jadue, o critica constantemente a partir da esquerda, reclamando que o presidente “jamais considerou a superação do capitalismo e do neoliberalismo”. Jadue deu essa declaração após viajar para Caracas e despejar elogios sobre Nicolás Maduro e o regime venezuelano, dos quais Boric é crítico franco.
Boric também encara um Congresso dividido, onde obter a aprovação para legislações se provará um desafio. A economia continua em dificuldades em razão dos efeitos associados da incerteza política e da pandemia. O FMI ajustou sua previsão de crescimento para o Chile para 1,5% em 2022 e 0,5% no próximo ano.
O Banco Central chileno é ainda mais pessimista. A inflação, já aumentando em razão dos saques de fundos de pensão autorizados pelo governo anterior (o atual governo conseguiu derrubar o quarto saque, na semana passada) e outras transferências de recursos do governo, foi impulsionada ainda mais pela guerra na Ucrânia, e está a caminho de chegar a 7,5% este ano (o preço do óleo de girassol, vendido a cerca de US$ 4,50 o litro, virou sinônimo por aqui da elevação do custo de vida.)
Taxas de juros saltaram de 2,75% para 7,5% em poucos meses. O efeito nas carteiras dos chilenos, assim como na aprovação do governo, já são evidentes. O índice de aprovação de Boric é muito menor que o registrado por outros presidentes chilenos neste ponto de seus primeiros mandatos.
Uma curva de aprendizado
Todos esses problemas (exceto talvez a Ucrânia) eram previsíveis. Assim como o que virou o maior desafio de Boric: a curva de aprendizado. Boric é um político extremamente talentoso e um grande comunicador. Apesar de sua pouca idade, ele está na política há quase uma década e, se incluirmos a política estudantil, há ainda mais tempo. Mas nada disso prepara alguém para o governo.
Todos os governos, de todos os lugares, encaram uma curva de aprendizado, especialmente aqueles que assumem a função prometendo mudança e renovação geracional. Considere o primeiro governo de Bill Clinton. E assim tem sucedido com Boric, que lidera uma coalizão sem nenhuma experiência no Executivo.
Com apenas uma ou duas exceções, seus ministros são todos estreantes, e isso transparece. O caso mais óbvio é o de Izkia Siches, sua ministra do Interior, de 36 anos, que ascendeu à proeminência como presidente do Colégio Médico do Chile durante a pandemia mas não possui nenhuma experiência política.
Desde que assumiu o cargo, ela cometeu vários erros. Na primeira semana, ela viajou à Região da Arauncanía, no sul do país, esperando estabelecer diálogo com grupos indígenas radicais que têm realizado com frequência ataques violentos contra civis. O comboio da ministra foi recebido a bala, e ela foi obrigada a se retirar.
Mais recentemente, falando a uma comissão parlamentar, ela repetiu como se fosse fato um desacreditado rumor que basicamente acusa o governo anterior de um crime que ele não cometeu. A ministra se desculpou prontamente, mas o estrago estava feito.
A imagem que muitos chilenos percebem atualmente é de um governo de jovens bem intencionados mas inexperientes, cuja ideologia esbarra na realidade realidade política. Bill Clinton conseguiu corrigir erros iniciais em parte transitando para o centro político.
Não está claro, segundo a coalizão de governo e a sensação geral do público, se Boric terá muito espaço para fazer o mesmo (apesar de ser interessante observar o papel do Partido Socialista enquanto ligação entre os novos jovens revolucionários e a velha-guarda social-democrata).
A assembleia constituinte pode estar passando por uma dificuldade similar. Ao longo das últimas semanas, o plenário da convenção começou a votar o texto final da nova Carta, aceitando ou rejeitando artigos aprovados em várias comissões. Com cerca de 240 artigos já aprovados, o texto final — que será submetido a referendo popular em 4 de setembro — está assumindo forma.
Talvez por esta razão, o público está começando a se decidir, e a coisa não parece nada boa. Ao longo das três últimas semanas, de acordo com uma pesquisa Cadem, mais chilenos mostraram-se propensos a rejeitar do que a aprovar a nova Constituição (45% versus 38%). Como isso é possível?
Novamente, parece que a realidade política supera a ideologia. Pode ser que o público considere que a constituinte não represente a sociedade como um todo. Grande parte do debate até este momento, assim como os artigos aprovados até agora, lidam com um novo tipo de descentralização (da qual o projeto poucos entendem ou se interessam), tratam da eliminação do Senado (a ser substituído por um Conselho de Regiões, cujos atributos precisos permanecem indefinidos) e dão ênfase de cabo a rabo a paridade de gênero e direitos indígenas.
Contudo, quando questionados por uma pesquisa Cadem a respeito de quais temas consideram mais importantes para serem incluídos numa nova Constituição, somente 2% dos chilenos responderam que um Estado plurinacional deveria estar previsto na Carta e 3% citaram a descentralização. A garantia de direitos sociais — saúde, educação etc. — foi a resposta mais frequente, registrando um índice de 62% na sondagem.
Esses direitos foram parcialmente aprovados esta semana (muitas especificidades foram devolvidas às comissões), e será interessante constatar se as pesquisas futuras revelarão ou não uma avaliação mais positiva à nova Carta. A dúvida, em relação tanto à Constituição quanto ao próprio governo Boric, é o tamanho do dano que essas primeiras impressões causaram.
Possíveis cenários
O que vai acontecer com isso tudo? Tanto a constituinte quanto o governo ainda têm tempo para mostrar que sabem dar respostas a demandas do público que transcendem suas preferências sectárias particulares. Se Gabriel Boric conseguiu provar algo no ano passado foi que ele é pragmático e capaz de se adaptar a circunstâncias em transformação. O presidente afirmou que o destino de seu governo está ligado ao destino da assembleia constituinte.
Existem pelo menos três cenários para os quais o governo deve estar preparado.
O primeiro é a aprovação ampla, que seria um sucesso para Boric, mas poderia acabar significando uma dor de cabeça, já que ele teria de implementar uma estrutura institucional bastante incomum. Ele pode ser até removido do cargo por eleições antecipadas (o processo constitucional prevê esse mecanismo).
O segundo cenário seria uma aprovação com pouquíssima margem, digamos de 1% ou 2% de vantagem. Isso prejudicaria seriamente a legitimidade da nova Carta.
O terceiro, se as pesquisas se concretizarem, seria a rejeição ao texto em setembro. Pedidos por um Plano B já emergem, apesar de, por agora, surgirem da direita derrotista e não dos progressistas, que querem ver o processo constitucional bem-sucedido. O único caminho adiante seria anunciar imediatamente algum tipo de novo processo, mas distinto, para a elaboração de uma Carta mais aceitável, o que amplia a incerteza institucional e econômica por muitos meses. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO
* Funk é professor de ciência política da Universidade do Chile e sócio do Andes Risk Group, uma firma de consultoria política.