Um mês após o acordo que interrompeu os protestos que estremeceram o Equador durante 18 dias, o governo de Guillermo Lasso está enfraquecido e sem perspectivas de reconstrução. Desde o acordo, o centro-direitista trocou os titulares de três ministérios e uma secretaria, está isolado na Assembleia Nacional – que tentou destituí-lo no meio da crise – e precisa negociar com lideranças indígenas ainda mais fortalecidas após os levantes sociais. O risco para o Equador, se Lasso não conseguir reverter a fragilidade, é ter um “governo zumbi” e um país dividido.
Os indígenas foram responsáveis pela paralisação do país a partir do dia 12 de junho em protesto ao preço alto dos combustíveis e o consequente aumento do custo de vista. As manifestações seguiram até o dia 30 do mesmo mês em uma escalada de tensão e conflito com a polícia, que resultou em 6 mortos (5 civis e 1 militar) e quase 600 feridos. Apesar da liderança indígena, diversos setores sociais se somaram e foram às ruas contra o presidente.
Pressionado, Lasso respondeu aos protestos com um decreto de estado de exceção que permitiu a repressão militar às manifestações e instituiu um toque de recolher em Quito, antes de aceitar negociar. Os conflitos foram atribuídos a essa medida – e acabaram contribuindo para uma perda de popularidade e isolamento político do presidente. “O governo não mostrou nenhuma capacidade antecipativa de frear os protestos e nunca se importou com alguns pontos”, diz Daniel Ponton, sociólogo e docente do Instituto de Altos Estudos Nacionais, localizado na capital equatoriana.
O acordo do dia 30 de junho, mediado pela Igreja Católica, atendeu parte das exigências dos manifestantes – como o aumento do subsídio da gasolina e do diesel para abaixar o preço nas bombas, a revogação de um decreto que permitia investimento privado em atividades petrolíferas e a reforma de outro, para impedir a exploração mineral em terras indígenas – e estabeleceu 90 dias para o governo negociar com as organizações civis sobre outras demandas, como o perdão às dívidas dos camponeses e o controle de preços de produtos de primeira necessidade.
O principal líder dos protestos foi Leonidas Iza, presidente da Confederación de Nacionalidades Indígenas del Ecuador (Conaie). Quando retornou à província de Cotopaxi, no interior do país, após o acordo, o indígena foi recebido efusivamente pela população local enquanto enumerava as vitórias de Quito. A recepção evidenciou os ganhos políticos de Iza, que estrategicamente manteve um discurso de pressão sobre o governo para não enfraquecer os resultados. “Guillermo Lasso nunca se sentou à mesa de diálogo, mas seu governo foi obrigado a responder ao povo. Viva a luta social”, escreveu a Conaie no dia 30 de junho.
Lasso, por sua vez, fez um pronunciamento nacional com um discurso de reconstrução do Equador e atenção aos mais necessitados. Deixou de lado o termo “violento” para descrever os manifestantes e adotou o tom de reconciliação. “O alívio que hoje sentimos revela uma realidade: somos uma família”, declarou.
Uma semana após o acordo, Guillermo Lasso trocou os titulares de três ministérios sensíveis à pauta social (Economia, Saúde e Transporte) e de uma secretaria importante (Educação Superior). A decisão deixou claro a derrota do presidente nestas áreas e a guinada na tentativa de recuperar a confiança do governo: na educação superior, as aulas presenciais não retornaram após a pandemia por conta do baixo orçamento; a saúde pública enfrenta falta de medicamentos e insumos; e, na economia, as políticas, mais ligadas a uma disciplina fiscal, se mostraram totalmente ineficazes.
Na análise de Daniel Ponton, o presidente buscou nomes mais técnicos para assumir os cargos. O destaque é o economista Pablo Arosemena Marriott, que substituiu Simon Cueva na Economia. “O atual ministro atuou na Câmara de Comércio, mais ligado ao setor empresarial e à economia de mercado, enquanto o anterior era mais ligado à disciplina fiscal. Mostra uma guinada para um modelo mais social”, declarou Ponton.
O sociólogo acrescentou que a troca de ministros mostra como Lasso foi obrigado a retroceder em algumas políticas e a tentar mudanças devido às manifestações. O tamanho das concessões que vai fazer durante o período de negociação, no entanto, ainda é desconhecida – e depende em parte da sua condução política nos próximos 60 dias.
“O governo está enfraquecido e sob pressão, então busca uma remoção interna em áreas sociais para sair da anemia política. Por enquanto, não dá para afirmar se surtiram efeito e atenderam demandas sociais, mas agora há uma abertura maior pro diálogo diante de um isolamento político”, acrescentou Ponton.
O diálogo se dá sobretudo através das câmaras técnicas criadas para negociar as demandas sociais. Com um mês de acordo, o resultado das câmaras ainda é desconhecido, apesar da imprensa equatoriana ter divulgado conflitos internos entre governo e organizações sociais – normais em um período de negociação. Nas redes sociais, Leonidas Iza, o principal porta-voz dos indígenas, tem ressaltado que propostas estão sendo levadas ao governo, mas não tece comentários sobre os resultados.
Isolamento político e denúncias de corrupção
Apesar da vitória presidencial em 2021, Guillermo Lasso obteve um resultado ruim na Assembleia Nacional do Equador. O partido no qual foi eleito, Creando Oportunidades (Creo), possui apenas 12 das 137 cadeiras do parlamento e, até o momento, o presidente não conseguiu uma coalizão que o permita governar. Isolado, o presidente quase foi deposto pelos deputados, a maioria ligada ao ex-presidente Rafael Correa, durante as manifestações de junho.
Passado um mês desde o fim dos protestos, o presidente não conseguiu alterar a sua situação na Assembleia Nacional – o que mina as suas chances de realizar reformas prometidas durante a campanha e, consequentemente, enfraquece a sua base. “Como vai conseguir governar por 3 anos num cenário negativo, sem apoio da Assembleia e com a pressão dos líderes indígenas?”, questiona Daniel Ponton.
Os deputados tentaram retirar o centro-direitista do poder no final de junho através do mecanismo constitucional chamado “morte cruzada”, instituído na Constituição de 2008. Pelo texto, a Assembleia Nacional pode destituir o presidente da República por “grave crise política e comoção interna” se obter 92 dos 137 votos possíveis. Os deputados não conseguiram reunir a quantidade de votos necessários, e Lasso continuou no poder.
Ainda de acordo com a constituição, o mecanismo só pode ser aplicado uma vez durante os três primeiros anos de mandato do presidente. O governo tem dito que, como falharam, os deputados não possuem mais como destituir Lasso por vias legais, mas alguns analistas veem de outra maneira. “Essa explicação é conveniente para o governo, mas alguns interpretam – e também é a minha opinião – que pode ser tentado mais de uma vez”, explicou Ponton.
Mesmo que os deputados não voltem a tentar a morte cruzada, entretanto, o isolamento político de Lasso pode conduzi-lo a três anos de um mandato “zumbi”, sem reais forças de governar, acrescenta o sociólogo. “Se não conseguir reverter a situação, que exige uma guinada política diante de tanta pressão, Lasso não tem condições de fazer reformas estruturantes que prometeu e vai viver num compasso de espera, que é a situação que está hoje”, analisou.
Junto de toda crise política, Lasso ainda vê uma piora na sua imagem devido a denúncias de corrupção que respingam no seu governo. Em 2021, ele apareceu envolvido no Pandora Papers, acusado de que teria desviado, talvez ilegalmente, sua fortuna a contas em paraísos fiscais. Mais recentemente, um ex-assessor do governo foi alvo de uma operação do Ministério Público ligada a denúncias de indicação de cargos públicos mediante pagamento de propina.
Nesta sexta-feira, 29, o governador da província de Cotopaxi, do partido Pachakutik, ligado à Leonidas Iza e a Conaie, foi preso acusado de corrupção fiscal. Leonidas Iza se pronunciou no Twitter sobre o caso, afirmando que “não tolera nenhum ato de corrupção, venha de onde venha” com a ressalva de que “tampouco tolera seletividade da Justiça”, citando os casos que envolvem Lasso – um episódio que demonstra como as tensões permanecem altas no país.
Tensões sociais
Enquanto respondeu às manifestações com repressão, Guillermo Lasso contribuiu para aumentar uma divisão nacional entre seus apoiadores e opositores, avalia Ponton. Quando os deputados tentaram destituí-lo, o presidente denunciou como uma tentativa de golpe de Estado. Com os conflitos entre manifestantes e a polícia nacional, denunciou que quem estava nas ruas eram guerrilheiros urbanos e o crime organizado.
Como consequência, apoiadores de Lasso e setores mais ligados à classes altas do Equador foram às ruas ainda em junho para pedir paz e o fim dos protestos. Leonidas Iza é considerado criminoso por alguns e Rafael Correa, conspirador.
A análise de Ponto é que mesmo que, no fim, as partes tenham chegado a um acordo, o discurso de conflito continua reverberando. “As teses de golpe de Estado e de guerrilha urbana aumentam as divisões sociais no Equador. O país ainda está dividido após o fim dos protestos, e a tensão não cessou”, declarou.
Apesar da divisão, Ponton não acredita que os conflitos devem se repetir de imediato no fim dos 90 dias de negociação – mesmo que o governo não atenda todas as demandas indígenas. “Acredito que vai haver mobilizações da base, mas não protestos imediatos nas ruas. Mas é certo que Lasso vai sofrer uma pressão, principalmente se não conseguir virar o jogo e continuar enfraquecido”, afirmou.