Este texto é uma adaptação de “Chernobyl Roulette: War in the Nuclear Disaster Zone”, livro ainda não publicado de Serhii Plokhy que documenta a invasão à Ucrânia iniciada em 2022 e a ocupação das instalações nucleares de Chernobyl e Zaporizhzhia. Plokhy, professor de história ucraniana na Universidade Harvard, também é autor de “Chernobyl: The History of a Nuclear Catastrophe”.
Em 24 de fevereiro de 2022, primeiro dia da invasão da Rússia em escala total à Ucrânia, veículos blindados se aproximaram da usina nuclear de Chernobyl. A ocupação russa da usina, que duraria 35 dias, tinha começado.
A invasão encurralou a equipe de funcionários de plantão na usina famosa pelo desastre nuclear em abril de 1986. Mesmo que não produza mais energia elétrica, o local requer manutenção constante de sistemas que contêm lixo radioativo. Por mais de três semanas, trabalhadores que tinham chegado para cumprir um turno de 12 horas foram mantidos no local de trabalho como prisioneiros atrás das linhas inimigas, até que finalmente os russos concordaram em permitir que uma outra equipe os substituísse.
O perigo não acabou. A Agência Internacional de Energia Atômica alertou este mês que as condições de segurança na usina nuclear de Zaporizhzhia, que os soldados russos ainda controlam, continua a se deteriorar.
Este relato, narrado principalmente pelas palavras dos próprios trabalhadores, tem como foco o esforço para substituir a primeira equipe por heróicos voluntários ucranianos, em um intercâmbio tenso, sob a mira de armas russas, em um território devastado pela guerra.
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‘Nós já andávamos de um lado para o outro como zumbis’
A pressão já cobrava seu preço.
Valentin Heiko, de 59 anos, chefe da equipe noturna da usina de Chernobyl, que trabalhava continuamente há mais de três semanas, convenceu os ocupantes russos a monitorar diariamente as condições de saúde dos trabalhadores medindo a pressão sanguínea e avaliando seu estado psicológico. “E nós vimos a estatística, que mostrava sua condição emocional e física se deteriorando a cada dia que passava”, relatou Valerii Semenov, engenheiro-sênior encarregado da segurança estrutural da usina.
O engenheiro Oleksandr Kalishuk, que integrava a equipe de segurança física do local, lembrou do caso de um jovem colega de aproximadamente 25 anos que perdeu o controle e berrou obscenidades para os guardas russos. Os soldados tinham ordens para não reagir, mas Kalishuk ouviu um deles dizer, “Por que pensar? Puxe o gatilho, dispare”. Kalishuk tentou acalmar o jovem: “Imagine a reação de um homem armado. Você o está insultando. Ele pode usar a força. E heroísmo significa precisamente controlar a si mesmo”. O trabalhador ucraniano foi receptivo, mas disse a Kalishuk: “Odeio esses caras”.
“Nós trabalhávamos quase o tempo todo. Descansávamos algumas horas, segundo uma escala. Ficamos exaustos”, afirmou a engenheira de segurança Liudmila Kozak. “Pedimos folga porque já estávamos andando de um lado para o outro como zumbis”.
O engenheiro elétrico chefe do turno, Oleksii Shelestii, disse que quase surtou no fim da segunda semana. “E aí?”, perguntou Shelestii à sua chefia em um telefonema para a sede administrativa da usina, Slavutich, cerca de 45 quilômetros para o leste. “Vocês não conseguem chegar a um acordo sobre isso? (…) Nós precisamos de um alívio; estamos cansados. Nós não estávamos preparados para isso nem moralmente nem fisicamente.” Ele achava que os diretores estavam fazendo tudo o que podiam, mas que as autoridades de Kiev não respondiam.
Os comandantes russos na usina perceberam que estavam sentados sobre um barril de pólvora nuclear. A exaustão e o ressentimento dos funcionários de Chernobyl poderiam ocasionar um acidente que tiraria as vidas dos ocupantes. Os russos estavam preparados para permitir uma mudança de turno, mas como retirariam os trabalhadores de plantão e trariam os substitutos?
“Como vocês chegaram aqui?”, perguntou a Heiko um dos comandantes russos. “Olhe em volta”, respondeu Heiko, “e conte nos dedos: o viaduto da estrada foi destruído; e ninguém usará a rota por Belarus porque mais pessoas como vocês estão posicionadas por lá; ninguém mandará trabalhadores por esse caminho. O viaduto ferroviário que as pessoas costumavam usar também foi destruído… Então outros tipos de rotas têm de ser encontrados”. O russo respondeu: “OK — façam suas propostas”.
Heiko e os diretores da usina em Slavutich decidiram finalmente que os funcionários substitutos poderiam ser transportados somente pela rota belarussa, atravessando o Rio Dnipro de barco. A outra opção de percurso, por Kiev, era mais perigosa. Portanto, Belarus foi a escolha.
Os russos aprovaram. Eles levariam os trabalhadores do turno anterior até o Dnipro e buscariam a nova equipe, mas a diretoria da usina teria de cuidar da programação da jornada de ida e volta a Slavutich.
“Naquele momento, as seguintes condições foram apresentadas ao diretor: decida, pesquise e aja por conta própria”, relatou Heiko.
‘O mais difícil foi convencer minha mulher que eu tinha de ir’
O diretor-geral da usina, Valerii Seida, teve de selecionar funcionários para o novo turno — pessoas dispostas a arriscar sua liberdade e, talvez, suas vidas no cativeiro russo. A viagem poderia ser só de ida.
Surpreendentemente, não faltaram voluntários.
No primeiro dia da guerra, quando o chefe de operações da usina, Ihor Aleksandrov, solicitou uma equipe de operadores voluntários, todos responderam positivamente. Muitos sabiam exatamente quem iriam substituir. Serhii Niushev, por exemplo, estava pronto para substituir seu vizinho Viacheslav Iakushev. Uma mulher de Slavutich se voluntariou para reforçar a equipe da cozinha da usina, já que seu marido e filho estavam lá — membros da uma unidade da Guarda Nacional ucraniana que tinha sido capturada e eram mantidos na usina pelos russos. Ela queria estar perto deles. Depois de um tenso impasse no primeiro dia da guerra, os guardas, portando apenas armas leves, decidiram se render para evitar uma batalha contra tanques e artilharia pesada da Rússia nas imediações da usina. Nem eles nem os bombeiros presentes no local foram incluídos na “troca”.
Volodmir Falshovnik e Serhii Makliuk foram selecionados para liderar o novo turno. O que fez sentido: a experiência de Heiko tinha mostrado que, com jornadas durando dias ou semanas, em vez de horas, haveria trabalho para dois chefes de equipe. Falshovnik e Makliuk estavam entre os funcionários mais experientes da usina, mas os fatores críticos para determinar sua seleção foram suas situações familiares. Falshovnik, um pai de família calmo, de fala mansa, relatou que, “no meu caso, graças a Deus, meus filhos já conseguem ganhar seu sustento, e essa pode ter sido a razão para eu ser escolhido, porque os filhos de todos os outros chefes de equipe na usina estão em idade escolar”.
Tais considerações indicavam o tamanho do risco da missão. “O mais difícil de tudo foi convencer minha mulher que eu tinha de ir”, afirmou Falshovnik. Para Makliuk, mais difícil foi deixar sua família para trás numa cidade — Slavutich estava atrás das linhas inimigas mas ainda era livre — que poderia cair nas mãos do inimigo a qualquer momento.
Apesar de todos concordarem que a equipe de plantão na usina de Chernobyl tinha de ser substituída e voluntários estarem a postos, não havia acordo com a força de ocupação russa sobre como e quando a substituição ocorreria. “Estava claro que naqueles dias e semanas todo o que podíamos fazer era nos preparar”, afirmou Falshovnik. “Nada aconteceria antes disso, especialmente com combates ativos ocorrendo por lá, assim como nas proximidades da usina e de Kiev.”
Tudo o que os membros da equipe substituta, um total de 46 homens e mulheres, podiam fazer era esperar.
‘Eles nos disseram: ‘Apressem-se, meninas, estamos saindo’.’
De acordo com a funcionária Zoia Ierashova, os empregados na usina sabiam que havia voluntários em Slavutich prontos para substituí-los: “Todos disseram que havia pessoas na cidade preparadas para ir, que existiam heróis — heróis, de fato — que sabiam aonde estavam indo, que nossos compatriotas não mandavam mais na usina, que estrangeiros tinham tomado a usina. Mas que havia substitutos para todos os funcionários. E que todos estavam dispostos a ir lá para o rodízio”.
Mas ninguém sabia se uma equipe de Slavutich chegaria a salvo na usina nem o que poderia acontecer com o turno de Heiko. Os funcionários poderiam voltar para a casa ou seriam detidos ao partir? Nadia Sira, outra integrante da equipe de Heiko, decidiu sair, mas somente com um grupo liderado por Heiko. “Eu falei diretamente que só iria se o chefe da equipe e todos os homens também fossem:”, afirmou ela. “Se eles fossem apenas as mulheres, quem poderia saber aonde eles nos levariam?”
Os preparativos para a substituição começaram em meados de março, com Heiko entrando em contato com Shelestii e pedindo-lhe para preparar listas de membros de sua equipe a serem substituídos. Ninguém confiava nos russos, e havia a preocupação deles poderem trazer um time próprio e manter o turno já em atividade na usina ou levar os funcionários ucranianos para outra posição, ainda mantendo todos reféns. Outro problema foi como manter a usina em atividade durante a mudança no plantão. Foi decidido que a equipe seria substituída em duas fases: as mulheres e os trabalhadores não essenciais sairiam primeiro, e os operadores dos equipamentos em funcionamento deixariam o local após o primeiro grupo do novo turno chegar.
Tudo estava acertado, mas as datas foram mudando conforme o plano exigiu coordenação de alto nível entre Rússia e Ucrânia. Consecutivos alarmes falsos foram acionados. Os grupos eram reunidos e logo se dispersavam.
Em 20 de março, mais de três semanas após o início do plantão, Heiko ordenou que sua equipe se aprontasse para partir às 8h. “Eles nos disseram: ‘Sejam rápidas, meninas. Estamos indo embora — estão nos aguardando’”, afirmou Ierashova. Na entrada do edifício da administração, a equipe foi inspecionada por soldados russos antes de embarcar nos ônibus. “Os ônibus chegaram com bandeiras brancas penduradas”, relatou ela. “Nós embarcamos, e eles nos indicaram os assentos. Então o general russo Alexei Rtishchev apareceu. Ele fez a chamada de todos os nomes das pessoas dentro do ônibus e lhes deu permissão para partir.”
O engenheiro Oleksandr Kalishuk, que estava no ônibus, afirmou que, quando esperavam ansiosamente a partida, todos ouviram uma mensagem de Heiko nas caixas de som do sistema de comunicação da usina: a partida tinha sido adiada novamente. Heiko pediu que todos retornassem aos seus postos de trabalho. Mas os passageiros que haviam esperado tanto para voltar para casa recusaram-se a desembarcar. O general Rtishchev entrou no edifício para informar-se sobre o que estava acontecendo e retornou com mais notícias perturbadoras: os ucranianos supostamente consideravam os funcionários da usina de Chernobyl colaboradores e estavam se recusando a aceitá-los. Era mentira, mas não importava: os ônibus não se moviam.
Totalmente decepcionados, os funcionários saíram dos ônibus e retornaram para seus dormitórios lotados. Mas a voz de Heiko logo ressoou novamente: o rodízio prosseguiria; ele estava trabalhando na logística e manteria todos informados.
O anúncio longamente aguardado veio finalmente às 10h. Heiko ordenou que os funcionários retornassem para os ônibus.
Cinquenta trabalhadores deixaram a usina, incluindo 16 mulheres, 8 membros da Guarda Nacional ucraniana e 1 membro da brigada de incêndio; o restante pertencia às equipes operacional e da cozinha. Os russos também libertaram quatro civis do sexo masculino que tinham sido encontrados na Zona de Exclusão de Chernobyl e um guarda nacional com câncer. O restante do grupo era composto por engenheiros e técnicos.
Os ônibus, escoltados por blindados russos de transporte de soldados, rumaram para a cidade de Chernobyl, chegando até o posto de controle de Leliv, no limite interno da zona de exclusão a 10 quilômetros da usina, parte da área de isolamento estabelecida após o desastre de 1986. Então atravessaram o Rio Pripiat e deixaram o raio de 30 quilômetros da zona de exclusão através do posto de controle de Parishiv. De lá, o comboio rumou para a fronteira bielorrussa, atravessando-a na região do vilarejo de Hdzen, no Rio Brahinka.
“Nós fomos escoltados por blindados de transporte de soldados”, relatou a enfermeira Liudmila Mikhailenko. Ao longo da estrada, ela viu dúzias de veículos militares russos. “Era assustador, então todos ficaram em silêncio, com medo”, afirmou ela.
“Nós ficamos muito apavorados”, ecoou Ierashova, “porque tínhamos escutado que ‘corredores verdes’ tinham sido estabelecidos em alguns lugares na Ucrânia, mas que (os russos) não os respeitavam e que alguns (indivíduos em retirada) tinham sido executados. Nós afastamos esses pensamentos mentalizando que tudo correria bem.”
“Eu tentei me tranquilizar repetindo para mim mesma que estávamos indo para casa”, afirmou Sira, com lágrimas nos olhos. Ela viajou ao lado de seu filho, que também trabalhava naquele turno, e preocupou-se com ele mais do que consigo mesma. “Eu chorei baixinho”, relatou ela. “Meu filho disse, ‘Mãe, eles estão nos levando para casa’. Mas eu disse, ‘Provavelmente eles estão nos levando reféns, para Belarus ou para a Rússia’.”
Na fronteira belarussa, todos atenderam à ordem de desembarcar e atravessaram um posto de controle. Os guardas examinaram seus documentos e objetos pessoais.
Sira não conseguiu disfarçar a emoção. Ela é casada com um belarusso, e tinha visitado com o marido sua família pouco antes do início da invasão. “Não chore, tudo ficará bem”, disse-lhe uma guarda de fronteira, tentando acalmá-la. Mas Sira estava inconsolável. “Como assim, ‘Vai ficar tudo bem’? Nós estávamos em nosso país, um mês atrás, e estava tudo bem. (…) Nós nunca mais veremos (a família do meu marido) novamente. É isso.” Sira sabia que a guerra mudaria as relações entre os dois povos por anos ou até gerações.
Os ucranianos voltaram para os ônibus e o comboio rumou para o leste, na direção de Slavutich. Eles atravessaram uma “península” de aproximadamente 20 quilômetros de território belarusso entre os Rios Brahinka e Dnipro. A ponte sobre o Dnipro que conecta Belarus e Ucrânia tinha sido explodida, e o posto de controle fronteiriço no vilarejo de Komarin estava desativado. Ainda havia guardas no lado belarusso da fronteira, mas nenhum no lado ucraniano.
Uma festa de boas-vindas organizada pelo diretor Seida aguardava os passageiros ucranianos enquanto os membros do novo turno rumavam para Falshovnik e Makliuk.
‘Uma exaustão tamanha que me marcará eternamente…’
Seida ficou encarregado de organizar a travessia das duas equipes. Ievhen Kosakovski, um voluntário do time de Falshovnik, lembrou que uma grande lancha, aparentemente confortável, estava ancorada próximo à fronteira, mas os russos insistiram que um pequeno barco de madeira, de convés aberto, fosse usado, para que eles pudessem ver tudo e todos. Kosakovski disse que não foi fácil encontrar um pescador disposto a transportá-los. “As negociações foram difíceis e se romperam diversas vezes”, afirmou ele. “Alguns pescadores não queriam arriscar suas vidas e seus barcos, enquanto outros afirmavam que levar nosso pessoal para uma posição ocupada os tornaria colaboradores.”
Eventualmente, Seida e sua equipe apelaram para Natalia Muzika, a prefeita de Mnev, um pequeno vilarejo de pescadores no lado ucraniano do rio. Muzika concordou em ajudar. Em 10 minutos, dois pescadores locais embarcaram em um pequeno barco de madeira que tinham construído com as próprias mãos e navegaram até um ponto 12 quilômetros rio abaixo, onde os trabalhadores do novo turno estavam aguardando. Os russos ordenaram que os pescadores pendurassem uma bandeira branca no barco. E não permitiram que eles levassem ninguém para o lado ucraniano até que todos os membros do novo turno tivessem sido transportados para o lado belarusso.
“Ficou acordado que o barco levaria as pessoas para a margem oriental e voltaria com as pessoas que estávamos substituindo. Isso significaria que o acordo estava sendo cumprido”, disse Oleksandr Loboda, membro do novo turno. Mas o barco levou seus colegas para o lado belarusso retornou vazio para o lado ucraniano. “E tente imaginar: o barco voltou vazio quatro vezes”, afirmou Loboda. “Nós ficamos seriamente apreensivos, pensando que se tratava de algum tipo de armadilha. Mas então, finalmente o barco retornou com as mulheres. E nós suspiramos aliviados.”
Russos armados com metralhadoras escoltaram as pessoas em grupos de oito da colina até a margem do rio. Zoia Ierashova relatou que os grupos eram escoltados por dois soldados, um à frente e outro atrás. Ao chegar à margem, os ucranianos embarcavam um a um no barco de madeira. Era perigoso embarcar mais do que algumas pessoas de cada vez, mas o convés do barco era aberto, como os russos queriam. “Havia pessoas que nunca tinham visto um barco em suas vidas”, relatou Chobotar, um dos pescadores que transportou os trabalhadores da usina através do rio.
Cada travessia durou de 15 a 20 minutos. No total, os pescadores fizeram duas dúzias de viagens atravessando o rio. Os membros de ambas as equipes se encontraram no lado belarusso. “Foi altamente emocionante o momento que encontramos nossos substitutos”, afirmou a enfermeira Liudmila Mikhailenko, do turno de Heiko. “Nós tivemos literalmente poucos segundos, no máximo um minuto, para nos abraçar e chorar. Nós tínhamos passado 25 dias em companhia (limitada), e lá estavam nossos colegas de Slavutich.”
Os membros do novo turno ficaram chocados ao ver como seus amigos tinham mudado. “Nós cruzamos com o ônibus que trouxe a equipe da usina”, afirmou Kosakovski. Quando se encontrou com seus colegas, ele ficou chocado com “os olhares de pessoas que talvez não fossem de medo — eram provavelmente olhares de exaustão, mas uma exaustão tamanha que me marcará eternamente; terrível”.
Heiko, o chefe de equipe, deixou a usina com o segundo grupo, no fim da tarde de 20 de março. Para os coordenadores que o substituíram, ele parecia não ter se abalado com o estresse das semanas anteriores. “Foi muito bom ver Valentin Heiko são e salvo — e ativo”, relatou Falshovnik. O outro novo chefe, Makliuk, teve a mesma impressão. “Pensei que ele estaria completamente exausto e deprimido; mas não, ele estava em plena forma. Muito energético, pronto para o trabalho — ele nos contou tudo.” Depois de colocar Falshovnik e Makliuk a par da situação na usina, Heiko rumou para a travessia do rio. Ele ainda tinha um dever como chefe de equipe: reportar-se ao diretor da usina.
Quando os últimos membros do turno de Heiko atravessaram o rio já era noite. Seida deu boas-vindas ao pessoal por seu retorno ao lado ucraniano da fronteira. Ofereceu-lhes chá, café e cigarros. “Nós faremos tudo o que pudermos por vocês”, disse ele aos recém-chegados. Viacheslav Iakushev contou que todos o agradeceram. Então, quando embarcavam nos ônibus para Slavutych, Heiko, que tinha sido um dos últimos a atravessar o rio, aproximou-se de Seida. “Tenho um presente para o senhor”, disse ele ao diretor. Heiko abriu sua pequena bolsa e retirou uma bandeira azul e amarela da Ucrânia, que ele tinha convencido o comandante da força russa invasora a deixar com ele após a tomada da usina. Seida aceitou o presente.
Foi a última ação de Heiko como chefe de equipe em um turno que tinha durado 25 dias e noites. Manter a bandeira a salvo tinha sido o ato final de desafio.
‘Nós fabricaremos uma bomba nuclear tão suja que vocês não conseguirão escapar’
Quando chegaram à margem belarussa do rio, controlada por Moscou, os 46 homens e mulheres do novo turno embarcaram em ônibus. O comboio — liderado por dois blindados de transporte de soldados e composto por três ônibus com os recém-chegados e um micro-ônibus cheio de militares russos e outro blindado de transporte de soldados na retaguarda — partiu para a usina.
Na opinião de Heiko, os voluntários agiram como heróis. “Eles rumaram para o desconhecido”, afirmou o chefe de equipe posteriormente. “Ninguém sabia como aquilo ia acabar nem quanto tempo ficaria por lá. Nós tínhamos saído inteiros. Eu sempre dizia que o destino tinha determinado que estivéssemos de plantão naquele dia e não tivéssemos nenhum outro lugar para ir, mas para aqueles trabalhadores a caminho de lá a coisa era muito mais complicada.”
Heiko e sua equipe tinham passado 600 horas trabalhando na usina nuclear ocupada. Ninguém sabia quanto tempo Falshovnik, Makliuk e o restante do novo turno ficariam por lá.
Falshovnik e Makliuk chegaram na usina por volta das 15h de 20 de março. Às 16h30, após receber instruções e atualizações de Heiko, Falshovnik assumiu o controle das operações. Logo depois, os russos visitaram os novos chefes. “Os comandantes deles vieram — coronéis e generais — e disseram diretamente: ‘Nada aqui é propriedade da Ucrânia. Nós pegaremos o que precisarmos. Talvez informemos vocês, mas sua resposta não nos interessa’”, relatou Falshovnik. Ele já tinha ouvido de Heiko que os russos ditavam as regras e esperavam obediência. Ainda assim, ficou chocado com a atitude de desapreço.
“Os primeiros dias foram de fato dedicados a acostumar-se com o estado de guerra, apesar de não haver nenhum tiroteio por lá”, afirmou Falshovnik. Heiko tinha lhe deixado um memorando descrevendo a estrutura das forças russas na usina, e Falshovnik ficou muito agradecido. “Havia várias unidades militares de todos os tipo no local”, afirmou ele. “Guarda Nacional, forças especiais, forças ‘normais’, por assim dizer, e representantes da Rosatom”, a estatal russa de energia nuclear. Falshovnik passou longas horas tentando entender com quais autoridades estava lidando.
O fato de alguns funcionários do turno de Heiko não terem deixado a usina ajudou. Dezesseis engenheiros e mecânicos permaneceram por várias razões. Primeiramente, quem não vivia em Slavutich, mas em cidades como Kiev ou Chernihiv, não poderia ir para casa facilmente, já que os combates estavam concentrados em seu entorno. Os moradores de Ivankiv, ao norte de Kiev, não podiam retornar porque sua cidade estava ocupada pelos russos. Outros funcionários decidiram ficar para não expor a si mesmos nem quem fosse substituí-los ao risco de acabar detidos pelos russos no caminho. E outros, sabendo que o abastecimento de alimentos estava baixando em Slavutich, decidiram não complicar ainda mais a situação de suas famílias ao retornar.
Havia mais um motivo para permanecer na usina: o novo turno precisava de ajuda. Quarenta e seis pessoas simplesmente não conseguiriam dar conta de um volume de trabalho normalmente realizado por 100.
Os russos tinham ordens para não tocar nos trabalhadores ucranianos, mas disciplina nunca foi seu forte. Makliuk relatou que nas dependências da usina os soldados russos não intimidavam nem ameaçavam ninguém. Mas do lado de fora a coisa complicava. “Quando funcionários circulavam de carro ou caminhavam longe de seus postos de trabalho havia incidentes”, afirmou. “Eles apontavam lançadores de granada para as pessoas. Coisas assim aconteceram. Quando um veículo levava lixo para Leliv, eles apontaram metralhadoras para o motorista na ida e na volta. E houve incidentes similares no centro de produção.”
O maior problema com os ocupantes russos era que eles saqueavam constantemente qualquer instalação, roubando tudo o que pudessem carregar. “Antes de chegarmos, metade do prédio (administrativo) já estava destruída, com as portas arrombadas. Tudo saqueado”, afirmou Falshovnik.
Os roubos de equipamentos valiosos da usina foram noticiados por meios de imprensa internacionais dias depois de Falshovnik e seu turno chegarem. Em 23 de março, a CNN informou que os ocupantes russos tinham destruído o laboratório de monitoramento financiado pela União Europeia e retirado amostras de elementos radioativos. Em resposta ao escândalo internacional, o canal de TV oficial das Forças Armadas russas enviou repórteres ao local.
As imagens veiculadas não deixaram dúvidas de que o laboratório tinha realmente sido saqueado. A câmera mostrou computadores com os discos rígidos arrancados e pedaços de equipamentos espalhados pelo recinto, assim como papel higiênico e muitas garrafas vazias de bebidas alcoólicas. Os repórteres afirmaram que os responsáveis eram os próprios ucranianos. De acordo com a TV russa, a destruição tinha sido praticada para “criar uma impressão negativa sobre os militares russos, sobre sua atividade no território ucraniano e especificamente no território e na usina de Chernobyl”.
Os comandantes russos tentaram manter uma relação em certa medida amigável com o novo turno tanto por sua própria segurança radioativa depender do bom serviço dos funcionários ucranianos quanto porque precisavam de assistência com necessidades cotidianas, como descarte de lixo. Mas a relação entre os ocupantes e os trabalhadores se deteriorou dramaticamente em 24 de março, o quinto dia de atividade do novo turno.
Falshovnik recebeu naquele dia um telefonema perturbador de sua mulher, que estava em Slavutich: tropas russas tinham lançado um ataque contra a cidade. A sede administrativa da usina em Slavutich tinha confirmado a notícia.
Ainda atrás das linhas inimigas, Slavutich estava prestes a se tornar um campo de batalha entre os russos e a unidade de defesa da cidade. Transtornado, Falshovnik afrontou os comandantes militares: eles tinham prometido que as forças russas não tocariam em Slavutich, mesmo que apenas por interesse próprio, de acordo com Falshovnik. Afinal, eles estavam bem cientes de que “seria necessário outro rodízio de pessoal. Se medidas ativas começassem aqui, os funcionários simplesmente desapareceriam, e não haveria ninguém para assumir nosso lugar”.
Os próprios russos pareceram surpresos. Eles asseguraram a Falshovnik que não tinham nada a ver com o que estava acontecendo na cidade. Eles telefonaram para seus superiores até o mais alto grau do Ministério da Defesa. Mas a resposta que transmitiram a Falshovnik foi tão decepcionante quanto cínica: “Não há soldados regulares da Federação Russa em Slavutich”.
Falshovnik e os demais funcionários ficaram furiosos. De seu ponto de vista, seu acordo informal com os russos tinha acabado. “Nós declaramos que encerraríamos qualquer cooperação com os ocupantes até que a ordem fosse restabelecida em Slavutich e a cidade fosse deixada em paz”, afirmou Falshovnik.
Vitalii Popov, membro do novo turno, recordou como reagiu à notícia: “Todos ficamos doidos de raiva”. Falshovnik e Makliuk ameaçaram os russos afirmando que a equipe pararia de trabalhar se os ataques continuassem. “A ameaça era simplesmente de uma catástrofe ecológica. ‘Olha, vocês serão responsáveis pelas consequências porque, falando francamente, os funcionários estão trabalhando sob suas ordens’.” Popov e seus colegas adotaram uma linha ainda mais radical. “Não ficamos apenas sentados sem fazer nada. Nós ameaçamos as Forças Armadas (da Federação Russa) de toda maneira possível, começando com contatos diretos: ‘Vocês vão morrer aqui, porque nós fabricaremos uma bomba nuclear tão suja que vocês não conseguirão escapar’.”
Uma semana depois, os russos foram embora./TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO