Uma ilha em disputa na maior das fronteiras


EUA e Canadá resolveram suas pendências territoriais, exceto por um pequeno rochedo sem recursos; acordo serviria de exemplo para casos mais complexos

Por É DIRETOR DO CENTRO PARA ESTUDOS CANADENSES NA UNIVERSIDADE DUKE, STEPHEN, KELLY, É DIRETOR DO CENTRO PARA ESTUDOS CANADENSES NA UNIVERSIDADE DUKE, STEPHEN e KELLY

Numa época em que disputas territoriais em torno de ilhas inóspitas e inabitadas no Mar da China Oriental deixam carros e crânios amassados, duas formações rochosas situadas num ponto remoto do Golfo do Maine são motivo de tensões similares, ainda que menos dramáticas, entre os Estados Unidos e o Canadá. Americanos e canadenses passaram 230 anos realizando esforços vigorosos, e por vezes violentos, para demarcar as fronteiras que os dividem. A Machias Seal Island e a adjacente North Rock são os únicos pedaços de terra cuja soberania ainda é reivindicada por ambos. Com exceção de eventuais trocas de ofensas entre barcos pesqueiros, essa disputa territorial é travada longe dos olhos do público e mesmo das autoridades, o que sem dúvida é um reflexo tanto da aparente falta de recursos naturais valiosos em jogo, como da relutância, de parte a parte, em ceder território, por menor que ele seja. Mas, apesar de ser pouco provável que se pegue em armas num futuro próximo para resolver essa questão, os embates na Ásia servem para mostrar como disputas territoriais aparentemente sem importância podem, de uma hora para a outra, acirrar tensões regionais e ânimos nacionalistas. A posição descontraída dos EUA em relação a essas rochas distantes talvez seja um equívoco. Embora os EUA e o Canadá tenham outras contendas em torno dos 8.891 quilômetros de sua fronteira, a mais extensa do mundo, essa é a única que envolve porções de terra propriamente ditas. A Machias Seal Island é um pedaço de rocha de 8 hectares, situado quase à mesma distância do Estado americano do Maine e da província canadense de New Brunswick. Essa ilhota e a North Rock, que é menor ainda, ficam numa área de 445 km² de águas que tanto o Canadá quanto os EUA dizem ser suas, e os pescadores de lagosta chamam de "zona cinzenta". O desentendimento data de 1783, quando foi assinado o Tratado de Paris, em que os britânicos reconheceram formalmente a independência dos EUA. O texto do tratado diz que todas as ilhas situadas a menos de 112 quilômetros da costa americana pertencem às 13 ex-colônias. Como a Machias Seal Island fica a menos de 20 quilômetros do Maine, a posição dos EUA sempre foi a de que ela está claramente em solo americano. O tratado exclui toda e qualquer ilha que tenha feito parte da Nova Escócia e os canadenses têm um documento de cessão de terras, emitido pelo governo britânico no século 17, que, segundo eles, prova que a ilha de fato pertencia àquela província, cuja porção oeste tornou-se, no fim do século 18, a atual Província de New Brunswick. Mais importante ainda para as aspirações canadenses é o fato de que os britânicos construíram um farol na Machias Seal Island em 1832. Desde então, ele é operado por faroleiros. Até hoje, dois homens são regularmente mandados de helicóptero para a ilha, onde permanecem por turnos de 28 dias - muito embora, como todos os faróis no Canadá, ele já seja automatizado. Embora as discussões jurídicas em torno da Machias Seal Island sejam abundantes, o mesmo não se pode dizer de seus recursos naturais. Não foram encontradas reservas de petróleo e gás na área, e, depois de ter sido usada durante a 1.ª Guerra como posto avançado para vigiar os submarinos alemães, a ilha nunca mais teve significado estratégico. Do Maine e de New Brunswick, partem barcos de turismo transportando grupos limitados de observadores de pássaros, que são atraídos pelos ninhos que os papagaios-do-mar fazem na ilha. As águas da região contêm lagostas que, em razão dos diferentes esquemas regulatórios e das pretensões territoriais sobrepostas, vez por outra causam conflitos entre pescadores do Maine e de New Brunswick, embora a ótima safra de lagostas deste verão tenha diminuído a demanda por crustáceos da chamada "zona cinzenta". Mas a ausência de hidrocarbonetos e a atual oferta abundante de lagostas oferecem uma ótima oportunidade para colorir essa área. Em 1984, americanos e canadenses submeteram-se à arbitragem da Corte Internacional de Justiça e resolveram todas as outras pendências que tinham no Golfo do Maine. Poderiam ter incluído a zona cinzenta, mas não o fizeram. O Canadá rejeitara uma proposta anterior que os EUA haviam feito para levar o caso à Corte Internacional. Segundo os canadenses, seu direito às ilhas é tão evidente que concordar com uma arbitragem seria como pôr um título de propriedade em questão. Essa posição precisa ser reexaminada. O fato de que estejam em jogo tão poucos recursos, longe de justificar a manutenção do atual estado de coisas, deveria ser o principal fator a estimular a busca de uma solução para o litígio. E, para os que temem ser futuramente acusados de ter cedido território "de mão beijada", não há salvaguarda melhor do que deixar a questão nas mãos da Corte Internacional. Como China e Japão atestam, as disputas em torno de fronteiras não cicatrizam por conta própria; elas inflamam. E, quando outros fatores as trazem de volta à superfície - a descoberta de recursos valiosos, uma afirmação de orgulho nacional, um acidente marítimo - os interesses em jogo podem subitamente tornar-se grandes demais para que soluções fáceis sejam viáveis. Antes que isso aconteça, os dois países deveriam resolver de uma vez por todas essa última disputa territorial e ganhar fama por ter a mais extensa fronteira pacífica do mundo. / TRADUÇÃO DE ALEXANDRE HUBNER

Numa época em que disputas territoriais em torno de ilhas inóspitas e inabitadas no Mar da China Oriental deixam carros e crânios amassados, duas formações rochosas situadas num ponto remoto do Golfo do Maine são motivo de tensões similares, ainda que menos dramáticas, entre os Estados Unidos e o Canadá. Americanos e canadenses passaram 230 anos realizando esforços vigorosos, e por vezes violentos, para demarcar as fronteiras que os dividem. A Machias Seal Island e a adjacente North Rock são os únicos pedaços de terra cuja soberania ainda é reivindicada por ambos. Com exceção de eventuais trocas de ofensas entre barcos pesqueiros, essa disputa territorial é travada longe dos olhos do público e mesmo das autoridades, o que sem dúvida é um reflexo tanto da aparente falta de recursos naturais valiosos em jogo, como da relutância, de parte a parte, em ceder território, por menor que ele seja. Mas, apesar de ser pouco provável que se pegue em armas num futuro próximo para resolver essa questão, os embates na Ásia servem para mostrar como disputas territoriais aparentemente sem importância podem, de uma hora para a outra, acirrar tensões regionais e ânimos nacionalistas. A posição descontraída dos EUA em relação a essas rochas distantes talvez seja um equívoco. Embora os EUA e o Canadá tenham outras contendas em torno dos 8.891 quilômetros de sua fronteira, a mais extensa do mundo, essa é a única que envolve porções de terra propriamente ditas. A Machias Seal Island é um pedaço de rocha de 8 hectares, situado quase à mesma distância do Estado americano do Maine e da província canadense de New Brunswick. Essa ilhota e a North Rock, que é menor ainda, ficam numa área de 445 km² de águas que tanto o Canadá quanto os EUA dizem ser suas, e os pescadores de lagosta chamam de "zona cinzenta". O desentendimento data de 1783, quando foi assinado o Tratado de Paris, em que os britânicos reconheceram formalmente a independência dos EUA. O texto do tratado diz que todas as ilhas situadas a menos de 112 quilômetros da costa americana pertencem às 13 ex-colônias. Como a Machias Seal Island fica a menos de 20 quilômetros do Maine, a posição dos EUA sempre foi a de que ela está claramente em solo americano. O tratado exclui toda e qualquer ilha que tenha feito parte da Nova Escócia e os canadenses têm um documento de cessão de terras, emitido pelo governo britânico no século 17, que, segundo eles, prova que a ilha de fato pertencia àquela província, cuja porção oeste tornou-se, no fim do século 18, a atual Província de New Brunswick. Mais importante ainda para as aspirações canadenses é o fato de que os britânicos construíram um farol na Machias Seal Island em 1832. Desde então, ele é operado por faroleiros. Até hoje, dois homens são regularmente mandados de helicóptero para a ilha, onde permanecem por turnos de 28 dias - muito embora, como todos os faróis no Canadá, ele já seja automatizado. Embora as discussões jurídicas em torno da Machias Seal Island sejam abundantes, o mesmo não se pode dizer de seus recursos naturais. Não foram encontradas reservas de petróleo e gás na área, e, depois de ter sido usada durante a 1.ª Guerra como posto avançado para vigiar os submarinos alemães, a ilha nunca mais teve significado estratégico. Do Maine e de New Brunswick, partem barcos de turismo transportando grupos limitados de observadores de pássaros, que são atraídos pelos ninhos que os papagaios-do-mar fazem na ilha. As águas da região contêm lagostas que, em razão dos diferentes esquemas regulatórios e das pretensões territoriais sobrepostas, vez por outra causam conflitos entre pescadores do Maine e de New Brunswick, embora a ótima safra de lagostas deste verão tenha diminuído a demanda por crustáceos da chamada "zona cinzenta". Mas a ausência de hidrocarbonetos e a atual oferta abundante de lagostas oferecem uma ótima oportunidade para colorir essa área. Em 1984, americanos e canadenses submeteram-se à arbitragem da Corte Internacional de Justiça e resolveram todas as outras pendências que tinham no Golfo do Maine. Poderiam ter incluído a zona cinzenta, mas não o fizeram. O Canadá rejeitara uma proposta anterior que os EUA haviam feito para levar o caso à Corte Internacional. Segundo os canadenses, seu direito às ilhas é tão evidente que concordar com uma arbitragem seria como pôr um título de propriedade em questão. Essa posição precisa ser reexaminada. O fato de que estejam em jogo tão poucos recursos, longe de justificar a manutenção do atual estado de coisas, deveria ser o principal fator a estimular a busca de uma solução para o litígio. E, para os que temem ser futuramente acusados de ter cedido território "de mão beijada", não há salvaguarda melhor do que deixar a questão nas mãos da Corte Internacional. Como China e Japão atestam, as disputas em torno de fronteiras não cicatrizam por conta própria; elas inflamam. E, quando outros fatores as trazem de volta à superfície - a descoberta de recursos valiosos, uma afirmação de orgulho nacional, um acidente marítimo - os interesses em jogo podem subitamente tornar-se grandes demais para que soluções fáceis sejam viáveis. Antes que isso aconteça, os dois países deveriam resolver de uma vez por todas essa última disputa territorial e ganhar fama por ter a mais extensa fronteira pacífica do mundo. / TRADUÇÃO DE ALEXANDRE HUBNER

Numa época em que disputas territoriais em torno de ilhas inóspitas e inabitadas no Mar da China Oriental deixam carros e crânios amassados, duas formações rochosas situadas num ponto remoto do Golfo do Maine são motivo de tensões similares, ainda que menos dramáticas, entre os Estados Unidos e o Canadá. Americanos e canadenses passaram 230 anos realizando esforços vigorosos, e por vezes violentos, para demarcar as fronteiras que os dividem. A Machias Seal Island e a adjacente North Rock são os únicos pedaços de terra cuja soberania ainda é reivindicada por ambos. Com exceção de eventuais trocas de ofensas entre barcos pesqueiros, essa disputa territorial é travada longe dos olhos do público e mesmo das autoridades, o que sem dúvida é um reflexo tanto da aparente falta de recursos naturais valiosos em jogo, como da relutância, de parte a parte, em ceder território, por menor que ele seja. Mas, apesar de ser pouco provável que se pegue em armas num futuro próximo para resolver essa questão, os embates na Ásia servem para mostrar como disputas territoriais aparentemente sem importância podem, de uma hora para a outra, acirrar tensões regionais e ânimos nacionalistas. A posição descontraída dos EUA em relação a essas rochas distantes talvez seja um equívoco. Embora os EUA e o Canadá tenham outras contendas em torno dos 8.891 quilômetros de sua fronteira, a mais extensa do mundo, essa é a única que envolve porções de terra propriamente ditas. A Machias Seal Island é um pedaço de rocha de 8 hectares, situado quase à mesma distância do Estado americano do Maine e da província canadense de New Brunswick. Essa ilhota e a North Rock, que é menor ainda, ficam numa área de 445 km² de águas que tanto o Canadá quanto os EUA dizem ser suas, e os pescadores de lagosta chamam de "zona cinzenta". O desentendimento data de 1783, quando foi assinado o Tratado de Paris, em que os britânicos reconheceram formalmente a independência dos EUA. O texto do tratado diz que todas as ilhas situadas a menos de 112 quilômetros da costa americana pertencem às 13 ex-colônias. Como a Machias Seal Island fica a menos de 20 quilômetros do Maine, a posição dos EUA sempre foi a de que ela está claramente em solo americano. O tratado exclui toda e qualquer ilha que tenha feito parte da Nova Escócia e os canadenses têm um documento de cessão de terras, emitido pelo governo britânico no século 17, que, segundo eles, prova que a ilha de fato pertencia àquela província, cuja porção oeste tornou-se, no fim do século 18, a atual Província de New Brunswick. Mais importante ainda para as aspirações canadenses é o fato de que os britânicos construíram um farol na Machias Seal Island em 1832. Desde então, ele é operado por faroleiros. Até hoje, dois homens são regularmente mandados de helicóptero para a ilha, onde permanecem por turnos de 28 dias - muito embora, como todos os faróis no Canadá, ele já seja automatizado. Embora as discussões jurídicas em torno da Machias Seal Island sejam abundantes, o mesmo não se pode dizer de seus recursos naturais. Não foram encontradas reservas de petróleo e gás na área, e, depois de ter sido usada durante a 1.ª Guerra como posto avançado para vigiar os submarinos alemães, a ilha nunca mais teve significado estratégico. Do Maine e de New Brunswick, partem barcos de turismo transportando grupos limitados de observadores de pássaros, que são atraídos pelos ninhos que os papagaios-do-mar fazem na ilha. As águas da região contêm lagostas que, em razão dos diferentes esquemas regulatórios e das pretensões territoriais sobrepostas, vez por outra causam conflitos entre pescadores do Maine e de New Brunswick, embora a ótima safra de lagostas deste verão tenha diminuído a demanda por crustáceos da chamada "zona cinzenta". Mas a ausência de hidrocarbonetos e a atual oferta abundante de lagostas oferecem uma ótima oportunidade para colorir essa área. Em 1984, americanos e canadenses submeteram-se à arbitragem da Corte Internacional de Justiça e resolveram todas as outras pendências que tinham no Golfo do Maine. Poderiam ter incluído a zona cinzenta, mas não o fizeram. O Canadá rejeitara uma proposta anterior que os EUA haviam feito para levar o caso à Corte Internacional. Segundo os canadenses, seu direito às ilhas é tão evidente que concordar com uma arbitragem seria como pôr um título de propriedade em questão. Essa posição precisa ser reexaminada. O fato de que estejam em jogo tão poucos recursos, longe de justificar a manutenção do atual estado de coisas, deveria ser o principal fator a estimular a busca de uma solução para o litígio. E, para os que temem ser futuramente acusados de ter cedido território "de mão beijada", não há salvaguarda melhor do que deixar a questão nas mãos da Corte Internacional. Como China e Japão atestam, as disputas em torno de fronteiras não cicatrizam por conta própria; elas inflamam. E, quando outros fatores as trazem de volta à superfície - a descoberta de recursos valiosos, uma afirmação de orgulho nacional, um acidente marítimo - os interesses em jogo podem subitamente tornar-se grandes demais para que soluções fáceis sejam viáveis. Antes que isso aconteça, os dois países deveriam resolver de uma vez por todas essa última disputa territorial e ganhar fama por ter a mais extensa fronteira pacífica do mundo. / TRADUÇÃO DE ALEXANDRE HUBNER

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