Como a luta titânica em Gaza e na Ucrânia decidirá os rumos da geopolítica mundial


Na arena da política internacional, conflitos entre grupos de nações e atores não estatais de interesses opostos podem mudar os rumos do mundo nos próximos anos

Por Thomas Friedman
Atualização:

Há muitas maneiras de explicar os dois maiores conflitos no mundo hoje, mas minhas notas taquigráficas indicam que a Ucrânia quer se unir ao Ocidente e Israel quer se unir ao Leste Árabe — e a Rússia, com ajuda do Irã, tenta impedir os ucranianos, e o Irã e o Hamas tentam impedir os israelenses.

Ainda que possam parecer muito diferentes, na realidade essas duas frentes de batalha têm muito em comum: refletem uma luta geopolítica titânica entre duas redes opostas de nações e atores não estatais cujos valores e interesses dominarão nosso mundo pós-pós-Guerra Fria — em seguida à relativamente estável era da Pax Americana/globalização iniciada com a queda do Muro de Berlim, em 1989, e o fim do bloco soviético, o maior rival dos Estados Unidos na Guerra Fria.

Este momento geopolítico não é de nenhuma maneira trivial.

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Palestinos procuram por corpos e sobreviventes nos escombros de um prédio residencial destruído em um ataque aéreo israelense, em Rafah, no sul da Faixa de Gaza, na quarta-feira, 20 de dezembro de 2023.  Foto: Fatima Shbair / AP

De um lado temos a Rede da Resistência, dedicada a preservar sistemas fechados e autocráticos onde o passado enterra o futuro. Do outro lado temos a Rede da Inclusão, tentando forjar sistemas mais abertos, conectados e pluralizantes, onde o futuro enterra o passado. Quem vencer os combates entre as duas redes determinará em grande medida o caráter dominante desta época pós-pós-Guerra Fria.

(E caso você esteja anotando o placar em casa, a China sob o presidente Xi Jinping se esparrama por ambas as redes, juntamente com grande parte dos países da região que veio a ser chamada de sul global. Seus corações — e com frequência suas carteiras — estão com os Resistentes, mas suas mentes estão com os Inclusivos.)

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A Ucrânia tenta escapar da sufocante esfera de influência russa para se tornar parte da União Europeia. Vladimir Putin tenta bloquear esse movimento porque sabe que se a Ucrânia eslava — com seu vasto talento para engenharia, Exército terrestre e rendimento agrícola — aderir à rede europeia, sua bandida autocracia eslava ficará mais isolada e deslegitimada do que nunca. Mas Putin não será derrotado facilmente, especialmente obtendo ajuda em armas de seus aliados de rede Irã e Coreia do Norte — e apoio passivo de China, Belarus e muitos países do sul global sedentos por seu petróleo barato.

Israel estava tentando forjar uma relação normalizada com a Arábia Saudita, que é o portal para muitos Estados árabes no Oriente Médio e Estados muçulmanos no Sul da Ásia com que o Estado judaico ainda não tem relações. Mas não são apenas os israelenses que querem ver aviões da El Al e especialistas em tecnologia de seu país aterrissando em Riad.

A própria Arábia Saudita, sob o príncipe-herdeiro Mohammed bin Salman, aspira tornar-se um polo gigantesco de relações econômicas capaz de ligar Ásia, África, Europa, o mundo árabe — e Israel — em uma rede centrada no reino saudita. A visão de MBS é um tipo de União Europeia do Oriente Médio, com a Arábia Saudita desempenhando a mesma função de âncora que a Alemanha desempenha na UE real.

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O Irã e o Hamas querem impedir esse movimento por razões comuns e distintas. Conjuntamente, ambos sabiam que se Israel cimentasse relações com uma Arábia Saudita recém-modernizada — além das relações de Israel com Emirados Árabes Unidos, Marrocos e Bahrein forjadas sob os Acordos de Abraão — o equilíbrio de poder entre a rede secularizante, pluralizante e mais orientada aos mercados na região e a rede mais fechada, antipluralizante e de inspiração islamista poderia pender decisivamente contra o Irã e o Hamas, isolando-os.

O Hamas não quer ver Israel normalizar relações com a Arábia Saudita sem ter de fazer nenhuma concessão aos palestinos em termos de suas próprias aspirações por estatuto de Estado. O primeiro-ministro israelense, Binyamin Netanyahu, acreditou que coroaria sua carreira — provando que todos os seus críticos estavam errados — ele ser capaz de firmar relações diplomáticas abertas com a Arábia Saudita, lar dos lugares mais sagrados do Islã, sem ceder nenhum bocadinho para os palestinos.

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Era um objetivo irrefletido — Netanyahu deveria ter oferecido aos palestinos pelo menos um caminho para mais autonomia, mesmo que fosse apenas para a Arábia Saudita usar como propaganda domesticamente — e é Israel que está está pagando o preço agora. A Arábia Saudita afirma que ainda está aberta para a normalização com os israelenses, mas apenas se Israel oferecer um comprometimento firme neste momento para uma eventual solução de dois Estados.

Então não deixe que ninguém lhe diga que as guerras na Ucrânia e em Gaza não são importantes ou não estão conectadas — ou que não são importantes para os EUA.

Soldados ucranianos da brigada de assalto "Bureviy" (Furacão), uma unidade da Guarda Nacional Ucraniana, fazem uma pausa durante o treinamento militar antes de seu destacamento para a linha de frente, em um campo de tiro ao norte de Kiev, na Ucrânia, em 01 de novembro de 2023.  Foto: SERGEY DOLZHENKO / EFE
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Essas guerras são em grande medida importantes para nós — e agora claramente inescapáveis, já que estamos profundamente enredados em ambos os conflitos. O que é crucial manter em mente a respeito dos EUA — enquanto líderes da Rede da Inclusão — é que neste momento nós estamos lutando na guerra na Ucrânia segundo os nossos termos, mas estamos lutando na guerra no Oriente Médio segundo os termos do Irã.

Por quê?

Na guerra russo-ucraniana, o Exército e o povo da Ucrânia suportam o castigo total do conflito — e estão prontos para continuar a continuar a fazê-lo. Eles só pedem para os EUA e seus aliados armas avançadas e ajudas financeiras. Como nós poderíamos possivelmente recusar? Por dezenas de bilhões de dólares e nenhum soldado americano morto, a Ucrânia infligiu um profundo revés ao Exército de Putin, que o torna muito menos perigoso para o Ocidente e para Kiev. É a maior barganha que a Otan já obteve.

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Conforme a CNN descreveu recentemente, por meio de uma fonte familiarizada com o tema, uma análise de inteligência tornada pública e fornecida ao Congresso afirma que a Rússia perdeu 87% de suas tropas terrestres ativas anteriormente à guerra e dois terços dos tanques que possuía antes de invadir a Ucrânia. Putin ainda é capaz de infligir muito dano à Ucrânia com mísseis, mas seu sonho de ocupar o país inteiro e usá-lo como plataforma de lançamento para ameaçar a Rede da Inclusão — particularmente a União Europeia, protegida pela Otan — está agora fora do alcance. Obrigado, Kiev.

Em um café da manhã com líderes da Otan dedicado à questão ucraniana em Davos, este ano, a vice-primeira-ministra do Canadá, Chrystia Freeland, notou que nós, o Ocidente, deveríamos agradecer os ucranianos, não forçá-los a nos implorar por mais armas.

Ela também formulou eloquentemente o que está em jogo: “O que Putin quer é transformar a ordem mundial” que evoluiu desde a 2.ª Guerra e o pós-Guerra Fria — na qual “a competição entre as nações tratava de quem conseguia enriquecer mais e ajudar mais seus povos a prosperar. (…) Putin odeia esse mundo porque nesse mundo ele sai perdendo — o sistema dele perde em um paradigma pacífico, global e gerador de riqueza. E o que ele quer é nos levar de volta ao mundo cão, a um século 19, a mais competição entre potências, porque ele acha que é capaz de, mesmo se não vencer, ser mais eficaz por lá. (…) Nós não devemos pensar nisso como um problema ucraniano, esse problema é de todos nós”.

Ela está perfeitamente correta.

A luta no Oriente Médio tem raízes diferentes e fascinantes: a Rede da Resistência e a Rede da Inclusão nasceram com dois meses de diferença, em 1979.

A Rede da Resistência do Oriente Médio veio ao mundo em 1.º de fevereiro de 1979, quando o aiatolá Ruhollah Khomeini voou de Paris para Teerã e deu à luz a República Islâmica iraniana, que tentaria exportar sua ideologia ao mesmo tempo buscando expulsar os EUA da região e aniquilar Israel.

Um soldado israelense caminha ao lado de um obus móvel no norte de Israel, perto da fronteira com o Líbano, na segunda-feira, 15 de janeiro de 2024.  Foto: Ohad Zwigenberg / AP

A Rede de Inclusão do Oriente Médio foi parida naquele mesmo ano, quando os EUA intermediaram o tratado de paz entre Egito e Israel, possibilitando pela primeira vez uma colaboração árabe-israelense. Também em 1979, o xeque Rashid ibn Saeed Al Maktoum — governante da cidade portuária de Dubai, nos Emirados Árabes Unidos — concluiu a construção do Porto de Jebel Ali, um dos maiores do mundo, estabelecendo Dubai e os EAU como polo global de conexão do Leste Árabe — por meio de comércio, turismo, serviços, frete, investimentos e empresas aéreas de nível mundial — com quase todos os cantos do planeta.

Em 2015, essa Rede de Inclusão do Oriente Médio recebeu um impulso enorme com a ascensão do príncipe-herdeiro Mohammed bin Salman — com quem me encontrei recentemente em Riad — e sua aspiração de transformar a Arábia Saudita numa Dubai bombada, gigantesca, um centro de cultura, investimento, conferências, turismo e manufatura de uma região muito mais integrada.

O analista político libanês-emiradense Nadim Koteich, gerente-geral da Sky News Arabia, que me ajudou a perceber o contraste dessas duas redes em luta para moldar o Oriente Médio, explicou que a Rede da Resistência “é orquestrada pelo Irã, islamistas e jihadistas” em um processo ao qual eles se referem como “unidade dos campos de batalha”. Essa rede, notou ele, “busca unir milícias, rejeicionistas, seitas religiosas e líderes sectários” criando um eixo anti-Israel, anti-EUA e anti-Ocidente capaz de pressionar Israel simultaneamente em Gaza, na Cisjordânia e na fronteira libanesa — assim como os EUA no Mar Vermelho, na Síria e no Iraque; e a Arábia Saudita a partir de todas as direções.

Num contraste acentuado, afirmou Koteich, encontra-se a Rede da Inclusão, que tem como foco construir — em vez de campos de batalha — mercados globais e regionais, conferências de negócios, organizações de imprensa, elites, fundos de hedge, incubadoras de empresas de tecnologia e grandes rotas comerciais. Essa rede de inclusão, acrescentou ele, “transcende fronteiras tradicionais, criando uma rede de interdependência econômica e tecnológica com potencial de redefinir estruturas de poder e criar novos paradigmas de estabilidade regional”.

Então hoje, enquanto os EUA degradam indiretamente as capacidades da Rússia por meio de sua aliada Ucrânia, as coisas estão diferentes no Oriente Médio. Por lá é o Irã que assiste a tudo confortavelmente — em guerra indireta contra Israel e EUA, às vezes também contra Arábia Saudita, combatendo por meio dos aliados de Teerã: o Hamas em Gaza, os houthis no Iêmen, o Hezbollah no Líbano e na Síria e as milícias xiitas no Iraque.

O Irã colhe todos os benefícios tendo virtualmente custo zero pelo trabalho de seus aliados; e EUA, Israel e seus tácitos aliados árabes ainda não manifestaram disposição nem indicaram caminho para pressionar o Irã a recuar — sem entrar numa guerra quente, que todos eles querem evitar.

Na minha visão, a melhor maneira de dissuadir o Irã é incrementando pressões internamente — onde a Rede da Inclusão tem mais aliados: os jovens iranianos e suas aspirações de ser parte da Rede da Inclusão. Como sabemos disso? Muitos jovens iranianos, sedentos de inclusão, estão em revolta aberta contra o regime desde setembro de 2022, quando uma mulher de 22 anos, Mahsa Amini, foi presa em Teerã pela polícia da moralidade iraniana por supostamente usar seu hijab de maneira inapropriada e morreu sob custódia.

Um regime sob o qual mulheres morrem sob custódia após serem presas por não se cobrir o suficiente não é estável nem popular. Além disso, muitos iranianos escolarizados sabem que seu regime está apenas usando o apoio à causa palestina como disfarce para o imperialismo iraniano sobre toda a região, onde Teerã controla indiretamente Síria, Líbano, Iraque e Iêmen. E por isso — notavelmente — nós não paramos de ver pipocar manifestações no Irã expressando apoio a Israel desde o ataque do Hamas de 7 de outubro e contra as custosas aventuras de Teerã. Sim, você leu corretamente.

Crianças palestinas desalojadas caminham em uma colina em frente ao seu acampamento improvisado em Rafah, no sul da Faixa de Gaza, na fronteira com o Egito, em 19 de janeiro de 2024, em meio a contínuas batalhas entre Israel e o grupo militante Hamas. Foto: AFP

“Durante um jogo entre os clubes de futebol Persepolis e Gol Gohar no estádio nacional de futebol do país, operadores do Exército dos Guardiões da Revolução Islâmica tentaram estimular apoio à causa palestina balançando bandeiras palestinas no campo”, noticiou o jornal Jewish Chronicle, de Londres, em 9 de outubro, postando um vídeo na plataforma X, o antigo Twitter. “Em vez de simpatia, os basij — uma das cinco forças do Egri — foram respondidos com cantos de fãs nas arquibancadas dizendo-lhes para ‘enfiar essas bandeiras palestinas no c…!’ As imagens do incidente viralizaram em redes sociais”. E incluíram tuítes como: “Iranianos de verdade sempre apoiarão Israel! A República Islâmica é uma força de ocupação”.

O não partidário Centro Stimson, de Washington, publicou um comentário de um analista radicado no Irã em outubro sobre a oposição no país ao ataque do Hamas que incluiu um vídeo de Instagram impressionante postado por um proeminente analista iraniano mostrando “estudantes de faculdade recusando-se a caminhar sobre bandeiras dos EUA e de Israel que com frequência são colocadas no chão de entradas de universidades no Irã para mostrar apoio aos palestinos”. Enquanto isso, a revista The Economist noticiou que “baristas em cafés” iranianos “pregam broches de estrelas de David em seus aventais”.

Essa atitude não é de nenhuma maneira universal; muitos outros iranianos certamente apoiam o Hamas, especialmente com as baixas civis em Gaza. Não obstante, notou o Iran International, um canal da oposição iraniana em Londres. “‘Gaza não, Líbano não, eu hei de morrer pelo Irã' tem sido um slogan recorrente em muitos protestos no Irã.”

Os membros da Rede da Resistência são ótimos em rasgar e quebrar coisas, mas, ao contrário da Rede da Inclusão, não mostraram nenhuma capacidade de construir uma sociedade ou um governo ao qual qualquer pessoa gostaria de migrar, quem dirá emular. (A fila para obter visto de entrada para o Iêmen sob controle houthi não é nada longa.) Nós não enfatizamos isso o suficiente.

Por todas essas razões, o atual momento é de grande risco tanto quanto de grande oportunidade — especialmente para Israel. A competição entre a Rede da Resistência e a Rede da Inclusão significa que a região nunca foi mais hostil ou mais acolhedora a aceitar um Estado judaico.

É uma pena que neste momento o traumatizado Estado de Israel sob a liderança falida de Netanyahu não consiga ver isso. Israel conseguir algum dia concordar com um processo de longo prazo para construir dois Estados para dois povos com uma Autoridade Palestina transformada poderia alterar definitivamente o equilíbrio entre a Rede da Resistência e a Rede da Inclusão.

A Rede da Resistência não teria nada para justificar as guerras dispendiosas que trava e as armas que empilha — supostamente para derrotar Israel e EUA, mas na realidade para manter seu povo quieto e a si mesma no poder. Enquanto isso, seria muito mais fácil para a Rede da Inclusão ampliar-se, unir-se e vencer.

Como eu disse, há muito mais em jogo hoje do que parece. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

Há muitas maneiras de explicar os dois maiores conflitos no mundo hoje, mas minhas notas taquigráficas indicam que a Ucrânia quer se unir ao Ocidente e Israel quer se unir ao Leste Árabe — e a Rússia, com ajuda do Irã, tenta impedir os ucranianos, e o Irã e o Hamas tentam impedir os israelenses.

Ainda que possam parecer muito diferentes, na realidade essas duas frentes de batalha têm muito em comum: refletem uma luta geopolítica titânica entre duas redes opostas de nações e atores não estatais cujos valores e interesses dominarão nosso mundo pós-pós-Guerra Fria — em seguida à relativamente estável era da Pax Americana/globalização iniciada com a queda do Muro de Berlim, em 1989, e o fim do bloco soviético, o maior rival dos Estados Unidos na Guerra Fria.

Este momento geopolítico não é de nenhuma maneira trivial.

Palestinos procuram por corpos e sobreviventes nos escombros de um prédio residencial destruído em um ataque aéreo israelense, em Rafah, no sul da Faixa de Gaza, na quarta-feira, 20 de dezembro de 2023.  Foto: Fatima Shbair / AP

De um lado temos a Rede da Resistência, dedicada a preservar sistemas fechados e autocráticos onde o passado enterra o futuro. Do outro lado temos a Rede da Inclusão, tentando forjar sistemas mais abertos, conectados e pluralizantes, onde o futuro enterra o passado. Quem vencer os combates entre as duas redes determinará em grande medida o caráter dominante desta época pós-pós-Guerra Fria.

(E caso você esteja anotando o placar em casa, a China sob o presidente Xi Jinping se esparrama por ambas as redes, juntamente com grande parte dos países da região que veio a ser chamada de sul global. Seus corações — e com frequência suas carteiras — estão com os Resistentes, mas suas mentes estão com os Inclusivos.)

A Ucrânia tenta escapar da sufocante esfera de influência russa para se tornar parte da União Europeia. Vladimir Putin tenta bloquear esse movimento porque sabe que se a Ucrânia eslava — com seu vasto talento para engenharia, Exército terrestre e rendimento agrícola — aderir à rede europeia, sua bandida autocracia eslava ficará mais isolada e deslegitimada do que nunca. Mas Putin não será derrotado facilmente, especialmente obtendo ajuda em armas de seus aliados de rede Irã e Coreia do Norte — e apoio passivo de China, Belarus e muitos países do sul global sedentos por seu petróleo barato.

Israel estava tentando forjar uma relação normalizada com a Arábia Saudita, que é o portal para muitos Estados árabes no Oriente Médio e Estados muçulmanos no Sul da Ásia com que o Estado judaico ainda não tem relações. Mas não são apenas os israelenses que querem ver aviões da El Al e especialistas em tecnologia de seu país aterrissando em Riad.

A própria Arábia Saudita, sob o príncipe-herdeiro Mohammed bin Salman, aspira tornar-se um polo gigantesco de relações econômicas capaz de ligar Ásia, África, Europa, o mundo árabe — e Israel — em uma rede centrada no reino saudita. A visão de MBS é um tipo de União Europeia do Oriente Médio, com a Arábia Saudita desempenhando a mesma função de âncora que a Alemanha desempenha na UE real.

O Irã e o Hamas querem impedir esse movimento por razões comuns e distintas. Conjuntamente, ambos sabiam que se Israel cimentasse relações com uma Arábia Saudita recém-modernizada — além das relações de Israel com Emirados Árabes Unidos, Marrocos e Bahrein forjadas sob os Acordos de Abraão — o equilíbrio de poder entre a rede secularizante, pluralizante e mais orientada aos mercados na região e a rede mais fechada, antipluralizante e de inspiração islamista poderia pender decisivamente contra o Irã e o Hamas, isolando-os.

O Hamas não quer ver Israel normalizar relações com a Arábia Saudita sem ter de fazer nenhuma concessão aos palestinos em termos de suas próprias aspirações por estatuto de Estado. O primeiro-ministro israelense, Binyamin Netanyahu, acreditou que coroaria sua carreira — provando que todos os seus críticos estavam errados — ele ser capaz de firmar relações diplomáticas abertas com a Arábia Saudita, lar dos lugares mais sagrados do Islã, sem ceder nenhum bocadinho para os palestinos.

Era um objetivo irrefletido — Netanyahu deveria ter oferecido aos palestinos pelo menos um caminho para mais autonomia, mesmo que fosse apenas para a Arábia Saudita usar como propaganda domesticamente — e é Israel que está está pagando o preço agora. A Arábia Saudita afirma que ainda está aberta para a normalização com os israelenses, mas apenas se Israel oferecer um comprometimento firme neste momento para uma eventual solução de dois Estados.

Então não deixe que ninguém lhe diga que as guerras na Ucrânia e em Gaza não são importantes ou não estão conectadas — ou que não são importantes para os EUA.

Soldados ucranianos da brigada de assalto "Bureviy" (Furacão), uma unidade da Guarda Nacional Ucraniana, fazem uma pausa durante o treinamento militar antes de seu destacamento para a linha de frente, em um campo de tiro ao norte de Kiev, na Ucrânia, em 01 de novembro de 2023.  Foto: SERGEY DOLZHENKO / EFE

Essas guerras são em grande medida importantes para nós — e agora claramente inescapáveis, já que estamos profundamente enredados em ambos os conflitos. O que é crucial manter em mente a respeito dos EUA — enquanto líderes da Rede da Inclusão — é que neste momento nós estamos lutando na guerra na Ucrânia segundo os nossos termos, mas estamos lutando na guerra no Oriente Médio segundo os termos do Irã.

Por quê?

Na guerra russo-ucraniana, o Exército e o povo da Ucrânia suportam o castigo total do conflito — e estão prontos para continuar a continuar a fazê-lo. Eles só pedem para os EUA e seus aliados armas avançadas e ajudas financeiras. Como nós poderíamos possivelmente recusar? Por dezenas de bilhões de dólares e nenhum soldado americano morto, a Ucrânia infligiu um profundo revés ao Exército de Putin, que o torna muito menos perigoso para o Ocidente e para Kiev. É a maior barganha que a Otan já obteve.

Conforme a CNN descreveu recentemente, por meio de uma fonte familiarizada com o tema, uma análise de inteligência tornada pública e fornecida ao Congresso afirma que a Rússia perdeu 87% de suas tropas terrestres ativas anteriormente à guerra e dois terços dos tanques que possuía antes de invadir a Ucrânia. Putin ainda é capaz de infligir muito dano à Ucrânia com mísseis, mas seu sonho de ocupar o país inteiro e usá-lo como plataforma de lançamento para ameaçar a Rede da Inclusão — particularmente a União Europeia, protegida pela Otan — está agora fora do alcance. Obrigado, Kiev.

Em um café da manhã com líderes da Otan dedicado à questão ucraniana em Davos, este ano, a vice-primeira-ministra do Canadá, Chrystia Freeland, notou que nós, o Ocidente, deveríamos agradecer os ucranianos, não forçá-los a nos implorar por mais armas.

Ela também formulou eloquentemente o que está em jogo: “O que Putin quer é transformar a ordem mundial” que evoluiu desde a 2.ª Guerra e o pós-Guerra Fria — na qual “a competição entre as nações tratava de quem conseguia enriquecer mais e ajudar mais seus povos a prosperar. (…) Putin odeia esse mundo porque nesse mundo ele sai perdendo — o sistema dele perde em um paradigma pacífico, global e gerador de riqueza. E o que ele quer é nos levar de volta ao mundo cão, a um século 19, a mais competição entre potências, porque ele acha que é capaz de, mesmo se não vencer, ser mais eficaz por lá. (…) Nós não devemos pensar nisso como um problema ucraniano, esse problema é de todos nós”.

Ela está perfeitamente correta.

A luta no Oriente Médio tem raízes diferentes e fascinantes: a Rede da Resistência e a Rede da Inclusão nasceram com dois meses de diferença, em 1979.

A Rede da Resistência do Oriente Médio veio ao mundo em 1.º de fevereiro de 1979, quando o aiatolá Ruhollah Khomeini voou de Paris para Teerã e deu à luz a República Islâmica iraniana, que tentaria exportar sua ideologia ao mesmo tempo buscando expulsar os EUA da região e aniquilar Israel.

Um soldado israelense caminha ao lado de um obus móvel no norte de Israel, perto da fronteira com o Líbano, na segunda-feira, 15 de janeiro de 2024.  Foto: Ohad Zwigenberg / AP

A Rede de Inclusão do Oriente Médio foi parida naquele mesmo ano, quando os EUA intermediaram o tratado de paz entre Egito e Israel, possibilitando pela primeira vez uma colaboração árabe-israelense. Também em 1979, o xeque Rashid ibn Saeed Al Maktoum — governante da cidade portuária de Dubai, nos Emirados Árabes Unidos — concluiu a construção do Porto de Jebel Ali, um dos maiores do mundo, estabelecendo Dubai e os EAU como polo global de conexão do Leste Árabe — por meio de comércio, turismo, serviços, frete, investimentos e empresas aéreas de nível mundial — com quase todos os cantos do planeta.

Em 2015, essa Rede de Inclusão do Oriente Médio recebeu um impulso enorme com a ascensão do príncipe-herdeiro Mohammed bin Salman — com quem me encontrei recentemente em Riad — e sua aspiração de transformar a Arábia Saudita numa Dubai bombada, gigantesca, um centro de cultura, investimento, conferências, turismo e manufatura de uma região muito mais integrada.

O analista político libanês-emiradense Nadim Koteich, gerente-geral da Sky News Arabia, que me ajudou a perceber o contraste dessas duas redes em luta para moldar o Oriente Médio, explicou que a Rede da Resistência “é orquestrada pelo Irã, islamistas e jihadistas” em um processo ao qual eles se referem como “unidade dos campos de batalha”. Essa rede, notou ele, “busca unir milícias, rejeicionistas, seitas religiosas e líderes sectários” criando um eixo anti-Israel, anti-EUA e anti-Ocidente capaz de pressionar Israel simultaneamente em Gaza, na Cisjordânia e na fronteira libanesa — assim como os EUA no Mar Vermelho, na Síria e no Iraque; e a Arábia Saudita a partir de todas as direções.

Num contraste acentuado, afirmou Koteich, encontra-se a Rede da Inclusão, que tem como foco construir — em vez de campos de batalha — mercados globais e regionais, conferências de negócios, organizações de imprensa, elites, fundos de hedge, incubadoras de empresas de tecnologia e grandes rotas comerciais. Essa rede de inclusão, acrescentou ele, “transcende fronteiras tradicionais, criando uma rede de interdependência econômica e tecnológica com potencial de redefinir estruturas de poder e criar novos paradigmas de estabilidade regional”.

Então hoje, enquanto os EUA degradam indiretamente as capacidades da Rússia por meio de sua aliada Ucrânia, as coisas estão diferentes no Oriente Médio. Por lá é o Irã que assiste a tudo confortavelmente — em guerra indireta contra Israel e EUA, às vezes também contra Arábia Saudita, combatendo por meio dos aliados de Teerã: o Hamas em Gaza, os houthis no Iêmen, o Hezbollah no Líbano e na Síria e as milícias xiitas no Iraque.

O Irã colhe todos os benefícios tendo virtualmente custo zero pelo trabalho de seus aliados; e EUA, Israel e seus tácitos aliados árabes ainda não manifestaram disposição nem indicaram caminho para pressionar o Irã a recuar — sem entrar numa guerra quente, que todos eles querem evitar.

Na minha visão, a melhor maneira de dissuadir o Irã é incrementando pressões internamente — onde a Rede da Inclusão tem mais aliados: os jovens iranianos e suas aspirações de ser parte da Rede da Inclusão. Como sabemos disso? Muitos jovens iranianos, sedentos de inclusão, estão em revolta aberta contra o regime desde setembro de 2022, quando uma mulher de 22 anos, Mahsa Amini, foi presa em Teerã pela polícia da moralidade iraniana por supostamente usar seu hijab de maneira inapropriada e morreu sob custódia.

Um regime sob o qual mulheres morrem sob custódia após serem presas por não se cobrir o suficiente não é estável nem popular. Além disso, muitos iranianos escolarizados sabem que seu regime está apenas usando o apoio à causa palestina como disfarce para o imperialismo iraniano sobre toda a região, onde Teerã controla indiretamente Síria, Líbano, Iraque e Iêmen. E por isso — notavelmente — nós não paramos de ver pipocar manifestações no Irã expressando apoio a Israel desde o ataque do Hamas de 7 de outubro e contra as custosas aventuras de Teerã. Sim, você leu corretamente.

Crianças palestinas desalojadas caminham em uma colina em frente ao seu acampamento improvisado em Rafah, no sul da Faixa de Gaza, na fronteira com o Egito, em 19 de janeiro de 2024, em meio a contínuas batalhas entre Israel e o grupo militante Hamas. Foto: AFP

“Durante um jogo entre os clubes de futebol Persepolis e Gol Gohar no estádio nacional de futebol do país, operadores do Exército dos Guardiões da Revolução Islâmica tentaram estimular apoio à causa palestina balançando bandeiras palestinas no campo”, noticiou o jornal Jewish Chronicle, de Londres, em 9 de outubro, postando um vídeo na plataforma X, o antigo Twitter. “Em vez de simpatia, os basij — uma das cinco forças do Egri — foram respondidos com cantos de fãs nas arquibancadas dizendo-lhes para ‘enfiar essas bandeiras palestinas no c…!’ As imagens do incidente viralizaram em redes sociais”. E incluíram tuítes como: “Iranianos de verdade sempre apoiarão Israel! A República Islâmica é uma força de ocupação”.

O não partidário Centro Stimson, de Washington, publicou um comentário de um analista radicado no Irã em outubro sobre a oposição no país ao ataque do Hamas que incluiu um vídeo de Instagram impressionante postado por um proeminente analista iraniano mostrando “estudantes de faculdade recusando-se a caminhar sobre bandeiras dos EUA e de Israel que com frequência são colocadas no chão de entradas de universidades no Irã para mostrar apoio aos palestinos”. Enquanto isso, a revista The Economist noticiou que “baristas em cafés” iranianos “pregam broches de estrelas de David em seus aventais”.

Essa atitude não é de nenhuma maneira universal; muitos outros iranianos certamente apoiam o Hamas, especialmente com as baixas civis em Gaza. Não obstante, notou o Iran International, um canal da oposição iraniana em Londres. “‘Gaza não, Líbano não, eu hei de morrer pelo Irã' tem sido um slogan recorrente em muitos protestos no Irã.”

Os membros da Rede da Resistência são ótimos em rasgar e quebrar coisas, mas, ao contrário da Rede da Inclusão, não mostraram nenhuma capacidade de construir uma sociedade ou um governo ao qual qualquer pessoa gostaria de migrar, quem dirá emular. (A fila para obter visto de entrada para o Iêmen sob controle houthi não é nada longa.) Nós não enfatizamos isso o suficiente.

Por todas essas razões, o atual momento é de grande risco tanto quanto de grande oportunidade — especialmente para Israel. A competição entre a Rede da Resistência e a Rede da Inclusão significa que a região nunca foi mais hostil ou mais acolhedora a aceitar um Estado judaico.

É uma pena que neste momento o traumatizado Estado de Israel sob a liderança falida de Netanyahu não consiga ver isso. Israel conseguir algum dia concordar com um processo de longo prazo para construir dois Estados para dois povos com uma Autoridade Palestina transformada poderia alterar definitivamente o equilíbrio entre a Rede da Resistência e a Rede da Inclusão.

A Rede da Resistência não teria nada para justificar as guerras dispendiosas que trava e as armas que empilha — supostamente para derrotar Israel e EUA, mas na realidade para manter seu povo quieto e a si mesma no poder. Enquanto isso, seria muito mais fácil para a Rede da Inclusão ampliar-se, unir-se e vencer.

Como eu disse, há muito mais em jogo hoje do que parece. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

Há muitas maneiras de explicar os dois maiores conflitos no mundo hoje, mas minhas notas taquigráficas indicam que a Ucrânia quer se unir ao Ocidente e Israel quer se unir ao Leste Árabe — e a Rússia, com ajuda do Irã, tenta impedir os ucranianos, e o Irã e o Hamas tentam impedir os israelenses.

Ainda que possam parecer muito diferentes, na realidade essas duas frentes de batalha têm muito em comum: refletem uma luta geopolítica titânica entre duas redes opostas de nações e atores não estatais cujos valores e interesses dominarão nosso mundo pós-pós-Guerra Fria — em seguida à relativamente estável era da Pax Americana/globalização iniciada com a queda do Muro de Berlim, em 1989, e o fim do bloco soviético, o maior rival dos Estados Unidos na Guerra Fria.

Este momento geopolítico não é de nenhuma maneira trivial.

Palestinos procuram por corpos e sobreviventes nos escombros de um prédio residencial destruído em um ataque aéreo israelense, em Rafah, no sul da Faixa de Gaza, na quarta-feira, 20 de dezembro de 2023.  Foto: Fatima Shbair / AP

De um lado temos a Rede da Resistência, dedicada a preservar sistemas fechados e autocráticos onde o passado enterra o futuro. Do outro lado temos a Rede da Inclusão, tentando forjar sistemas mais abertos, conectados e pluralizantes, onde o futuro enterra o passado. Quem vencer os combates entre as duas redes determinará em grande medida o caráter dominante desta época pós-pós-Guerra Fria.

(E caso você esteja anotando o placar em casa, a China sob o presidente Xi Jinping se esparrama por ambas as redes, juntamente com grande parte dos países da região que veio a ser chamada de sul global. Seus corações — e com frequência suas carteiras — estão com os Resistentes, mas suas mentes estão com os Inclusivos.)

A Ucrânia tenta escapar da sufocante esfera de influência russa para se tornar parte da União Europeia. Vladimir Putin tenta bloquear esse movimento porque sabe que se a Ucrânia eslava — com seu vasto talento para engenharia, Exército terrestre e rendimento agrícola — aderir à rede europeia, sua bandida autocracia eslava ficará mais isolada e deslegitimada do que nunca. Mas Putin não será derrotado facilmente, especialmente obtendo ajuda em armas de seus aliados de rede Irã e Coreia do Norte — e apoio passivo de China, Belarus e muitos países do sul global sedentos por seu petróleo barato.

Israel estava tentando forjar uma relação normalizada com a Arábia Saudita, que é o portal para muitos Estados árabes no Oriente Médio e Estados muçulmanos no Sul da Ásia com que o Estado judaico ainda não tem relações. Mas não são apenas os israelenses que querem ver aviões da El Al e especialistas em tecnologia de seu país aterrissando em Riad.

A própria Arábia Saudita, sob o príncipe-herdeiro Mohammed bin Salman, aspira tornar-se um polo gigantesco de relações econômicas capaz de ligar Ásia, África, Europa, o mundo árabe — e Israel — em uma rede centrada no reino saudita. A visão de MBS é um tipo de União Europeia do Oriente Médio, com a Arábia Saudita desempenhando a mesma função de âncora que a Alemanha desempenha na UE real.

O Irã e o Hamas querem impedir esse movimento por razões comuns e distintas. Conjuntamente, ambos sabiam que se Israel cimentasse relações com uma Arábia Saudita recém-modernizada — além das relações de Israel com Emirados Árabes Unidos, Marrocos e Bahrein forjadas sob os Acordos de Abraão — o equilíbrio de poder entre a rede secularizante, pluralizante e mais orientada aos mercados na região e a rede mais fechada, antipluralizante e de inspiração islamista poderia pender decisivamente contra o Irã e o Hamas, isolando-os.

O Hamas não quer ver Israel normalizar relações com a Arábia Saudita sem ter de fazer nenhuma concessão aos palestinos em termos de suas próprias aspirações por estatuto de Estado. O primeiro-ministro israelense, Binyamin Netanyahu, acreditou que coroaria sua carreira — provando que todos os seus críticos estavam errados — ele ser capaz de firmar relações diplomáticas abertas com a Arábia Saudita, lar dos lugares mais sagrados do Islã, sem ceder nenhum bocadinho para os palestinos.

Era um objetivo irrefletido — Netanyahu deveria ter oferecido aos palestinos pelo menos um caminho para mais autonomia, mesmo que fosse apenas para a Arábia Saudita usar como propaganda domesticamente — e é Israel que está está pagando o preço agora. A Arábia Saudita afirma que ainda está aberta para a normalização com os israelenses, mas apenas se Israel oferecer um comprometimento firme neste momento para uma eventual solução de dois Estados.

Então não deixe que ninguém lhe diga que as guerras na Ucrânia e em Gaza não são importantes ou não estão conectadas — ou que não são importantes para os EUA.

Soldados ucranianos da brigada de assalto "Bureviy" (Furacão), uma unidade da Guarda Nacional Ucraniana, fazem uma pausa durante o treinamento militar antes de seu destacamento para a linha de frente, em um campo de tiro ao norte de Kiev, na Ucrânia, em 01 de novembro de 2023.  Foto: SERGEY DOLZHENKO / EFE

Essas guerras são em grande medida importantes para nós — e agora claramente inescapáveis, já que estamos profundamente enredados em ambos os conflitos. O que é crucial manter em mente a respeito dos EUA — enquanto líderes da Rede da Inclusão — é que neste momento nós estamos lutando na guerra na Ucrânia segundo os nossos termos, mas estamos lutando na guerra no Oriente Médio segundo os termos do Irã.

Por quê?

Na guerra russo-ucraniana, o Exército e o povo da Ucrânia suportam o castigo total do conflito — e estão prontos para continuar a continuar a fazê-lo. Eles só pedem para os EUA e seus aliados armas avançadas e ajudas financeiras. Como nós poderíamos possivelmente recusar? Por dezenas de bilhões de dólares e nenhum soldado americano morto, a Ucrânia infligiu um profundo revés ao Exército de Putin, que o torna muito menos perigoso para o Ocidente e para Kiev. É a maior barganha que a Otan já obteve.

Conforme a CNN descreveu recentemente, por meio de uma fonte familiarizada com o tema, uma análise de inteligência tornada pública e fornecida ao Congresso afirma que a Rússia perdeu 87% de suas tropas terrestres ativas anteriormente à guerra e dois terços dos tanques que possuía antes de invadir a Ucrânia. Putin ainda é capaz de infligir muito dano à Ucrânia com mísseis, mas seu sonho de ocupar o país inteiro e usá-lo como plataforma de lançamento para ameaçar a Rede da Inclusão — particularmente a União Europeia, protegida pela Otan — está agora fora do alcance. Obrigado, Kiev.

Em um café da manhã com líderes da Otan dedicado à questão ucraniana em Davos, este ano, a vice-primeira-ministra do Canadá, Chrystia Freeland, notou que nós, o Ocidente, deveríamos agradecer os ucranianos, não forçá-los a nos implorar por mais armas.

Ela também formulou eloquentemente o que está em jogo: “O que Putin quer é transformar a ordem mundial” que evoluiu desde a 2.ª Guerra e o pós-Guerra Fria — na qual “a competição entre as nações tratava de quem conseguia enriquecer mais e ajudar mais seus povos a prosperar. (…) Putin odeia esse mundo porque nesse mundo ele sai perdendo — o sistema dele perde em um paradigma pacífico, global e gerador de riqueza. E o que ele quer é nos levar de volta ao mundo cão, a um século 19, a mais competição entre potências, porque ele acha que é capaz de, mesmo se não vencer, ser mais eficaz por lá. (…) Nós não devemos pensar nisso como um problema ucraniano, esse problema é de todos nós”.

Ela está perfeitamente correta.

A luta no Oriente Médio tem raízes diferentes e fascinantes: a Rede da Resistência e a Rede da Inclusão nasceram com dois meses de diferença, em 1979.

A Rede da Resistência do Oriente Médio veio ao mundo em 1.º de fevereiro de 1979, quando o aiatolá Ruhollah Khomeini voou de Paris para Teerã e deu à luz a República Islâmica iraniana, que tentaria exportar sua ideologia ao mesmo tempo buscando expulsar os EUA da região e aniquilar Israel.

Um soldado israelense caminha ao lado de um obus móvel no norte de Israel, perto da fronteira com o Líbano, na segunda-feira, 15 de janeiro de 2024.  Foto: Ohad Zwigenberg / AP

A Rede de Inclusão do Oriente Médio foi parida naquele mesmo ano, quando os EUA intermediaram o tratado de paz entre Egito e Israel, possibilitando pela primeira vez uma colaboração árabe-israelense. Também em 1979, o xeque Rashid ibn Saeed Al Maktoum — governante da cidade portuária de Dubai, nos Emirados Árabes Unidos — concluiu a construção do Porto de Jebel Ali, um dos maiores do mundo, estabelecendo Dubai e os EAU como polo global de conexão do Leste Árabe — por meio de comércio, turismo, serviços, frete, investimentos e empresas aéreas de nível mundial — com quase todos os cantos do planeta.

Em 2015, essa Rede de Inclusão do Oriente Médio recebeu um impulso enorme com a ascensão do príncipe-herdeiro Mohammed bin Salman — com quem me encontrei recentemente em Riad — e sua aspiração de transformar a Arábia Saudita numa Dubai bombada, gigantesca, um centro de cultura, investimento, conferências, turismo e manufatura de uma região muito mais integrada.

O analista político libanês-emiradense Nadim Koteich, gerente-geral da Sky News Arabia, que me ajudou a perceber o contraste dessas duas redes em luta para moldar o Oriente Médio, explicou que a Rede da Resistência “é orquestrada pelo Irã, islamistas e jihadistas” em um processo ao qual eles se referem como “unidade dos campos de batalha”. Essa rede, notou ele, “busca unir milícias, rejeicionistas, seitas religiosas e líderes sectários” criando um eixo anti-Israel, anti-EUA e anti-Ocidente capaz de pressionar Israel simultaneamente em Gaza, na Cisjordânia e na fronteira libanesa — assim como os EUA no Mar Vermelho, na Síria e no Iraque; e a Arábia Saudita a partir de todas as direções.

Num contraste acentuado, afirmou Koteich, encontra-se a Rede da Inclusão, que tem como foco construir — em vez de campos de batalha — mercados globais e regionais, conferências de negócios, organizações de imprensa, elites, fundos de hedge, incubadoras de empresas de tecnologia e grandes rotas comerciais. Essa rede de inclusão, acrescentou ele, “transcende fronteiras tradicionais, criando uma rede de interdependência econômica e tecnológica com potencial de redefinir estruturas de poder e criar novos paradigmas de estabilidade regional”.

Então hoje, enquanto os EUA degradam indiretamente as capacidades da Rússia por meio de sua aliada Ucrânia, as coisas estão diferentes no Oriente Médio. Por lá é o Irã que assiste a tudo confortavelmente — em guerra indireta contra Israel e EUA, às vezes também contra Arábia Saudita, combatendo por meio dos aliados de Teerã: o Hamas em Gaza, os houthis no Iêmen, o Hezbollah no Líbano e na Síria e as milícias xiitas no Iraque.

O Irã colhe todos os benefícios tendo virtualmente custo zero pelo trabalho de seus aliados; e EUA, Israel e seus tácitos aliados árabes ainda não manifestaram disposição nem indicaram caminho para pressionar o Irã a recuar — sem entrar numa guerra quente, que todos eles querem evitar.

Na minha visão, a melhor maneira de dissuadir o Irã é incrementando pressões internamente — onde a Rede da Inclusão tem mais aliados: os jovens iranianos e suas aspirações de ser parte da Rede da Inclusão. Como sabemos disso? Muitos jovens iranianos, sedentos de inclusão, estão em revolta aberta contra o regime desde setembro de 2022, quando uma mulher de 22 anos, Mahsa Amini, foi presa em Teerã pela polícia da moralidade iraniana por supostamente usar seu hijab de maneira inapropriada e morreu sob custódia.

Um regime sob o qual mulheres morrem sob custódia após serem presas por não se cobrir o suficiente não é estável nem popular. Além disso, muitos iranianos escolarizados sabem que seu regime está apenas usando o apoio à causa palestina como disfarce para o imperialismo iraniano sobre toda a região, onde Teerã controla indiretamente Síria, Líbano, Iraque e Iêmen. E por isso — notavelmente — nós não paramos de ver pipocar manifestações no Irã expressando apoio a Israel desde o ataque do Hamas de 7 de outubro e contra as custosas aventuras de Teerã. Sim, você leu corretamente.

Crianças palestinas desalojadas caminham em uma colina em frente ao seu acampamento improvisado em Rafah, no sul da Faixa de Gaza, na fronteira com o Egito, em 19 de janeiro de 2024, em meio a contínuas batalhas entre Israel e o grupo militante Hamas. Foto: AFP

“Durante um jogo entre os clubes de futebol Persepolis e Gol Gohar no estádio nacional de futebol do país, operadores do Exército dos Guardiões da Revolução Islâmica tentaram estimular apoio à causa palestina balançando bandeiras palestinas no campo”, noticiou o jornal Jewish Chronicle, de Londres, em 9 de outubro, postando um vídeo na plataforma X, o antigo Twitter. “Em vez de simpatia, os basij — uma das cinco forças do Egri — foram respondidos com cantos de fãs nas arquibancadas dizendo-lhes para ‘enfiar essas bandeiras palestinas no c…!’ As imagens do incidente viralizaram em redes sociais”. E incluíram tuítes como: “Iranianos de verdade sempre apoiarão Israel! A República Islâmica é uma força de ocupação”.

O não partidário Centro Stimson, de Washington, publicou um comentário de um analista radicado no Irã em outubro sobre a oposição no país ao ataque do Hamas que incluiu um vídeo de Instagram impressionante postado por um proeminente analista iraniano mostrando “estudantes de faculdade recusando-se a caminhar sobre bandeiras dos EUA e de Israel que com frequência são colocadas no chão de entradas de universidades no Irã para mostrar apoio aos palestinos”. Enquanto isso, a revista The Economist noticiou que “baristas em cafés” iranianos “pregam broches de estrelas de David em seus aventais”.

Essa atitude não é de nenhuma maneira universal; muitos outros iranianos certamente apoiam o Hamas, especialmente com as baixas civis em Gaza. Não obstante, notou o Iran International, um canal da oposição iraniana em Londres. “‘Gaza não, Líbano não, eu hei de morrer pelo Irã' tem sido um slogan recorrente em muitos protestos no Irã.”

Os membros da Rede da Resistência são ótimos em rasgar e quebrar coisas, mas, ao contrário da Rede da Inclusão, não mostraram nenhuma capacidade de construir uma sociedade ou um governo ao qual qualquer pessoa gostaria de migrar, quem dirá emular. (A fila para obter visto de entrada para o Iêmen sob controle houthi não é nada longa.) Nós não enfatizamos isso o suficiente.

Por todas essas razões, o atual momento é de grande risco tanto quanto de grande oportunidade — especialmente para Israel. A competição entre a Rede da Resistência e a Rede da Inclusão significa que a região nunca foi mais hostil ou mais acolhedora a aceitar um Estado judaico.

É uma pena que neste momento o traumatizado Estado de Israel sob a liderança falida de Netanyahu não consiga ver isso. Israel conseguir algum dia concordar com um processo de longo prazo para construir dois Estados para dois povos com uma Autoridade Palestina transformada poderia alterar definitivamente o equilíbrio entre a Rede da Resistência e a Rede da Inclusão.

A Rede da Resistência não teria nada para justificar as guerras dispendiosas que trava e as armas que empilha — supostamente para derrotar Israel e EUA, mas na realidade para manter seu povo quieto e a si mesma no poder. Enquanto isso, seria muito mais fácil para a Rede da Inclusão ampliar-se, unir-se e vencer.

Como eu disse, há muito mais em jogo hoje do que parece. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

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