Os motores de um robusto avião de transporte militar rugiam na pista do principal aeroporto de Grozny, capital da República da Chechênia, no sudeste da Rússia, enquanto um grupo de 120 combatentes voluntários a caminho da Ucrânia embarcava. Trajando uniformes camuflados, os soldados recém-recrutados tinham acabado de completar um mínimo de 10 dias de treinamento em Gudermes, próximo a Grozny, na Universidade de Forças Especiais, que aceita homens de toda a Rússia em busca de instrução militar.
Alguns dos recrutas em treinamento não tinham nenhuma experiência em combate. Outros eram veteranos retornando à Ucrânia pela segunda ou terceira vez — incluindo ex-mercenários do Grupo Wagner, desmantelado em 2023 após um breve motim contra o Kremlin.
Incomodados com a ideia de trabalhar diretamente para o Ministério da Defesa da Rússia, alguns combatentes Wagner transferiram unidades inteiras para as forças treinadas na Chechênia, conhecidas como batalhões Akhmat, que tinham intenção de absorver combatentes de fora do Exército russo. Os veteranos Wagner foram com frequência recrutados em prisões, incluindo um homem esguio, com um dente de ouro frontal, que se identificou apenas por seu codinome militar, “Jedi”, por temer represálias.
“Lutar pela pátria? Que pátria é essa, que me manteve na prisão toda minha vida? “, disse Jedi, de 39 anos, trabalhador da construção civil que foi condenado por roubo e fraude. Entrando e saindo da cadeia desde os 14 anos, Jedi tinha seis meses a cumprir de uma sentença de seis anos quando se alistou.
“Os voluntários entram pelo dinheiro”, afirmou Jedi. “Não vi ninguém aqui por causa da ideologia.” Ele afirmou que também buscou um recomeço.
Grandes bônus em troca do alistamento e salários de aproximadamente US$ 2 mil ao mês, pelo menos o dobro da média salarial na Rússia, estimulam o recrutamento.
O treinamento nas proximidades de Grozny sublinha a evolução de lealdades étnicas manifesta nesta guerra. Alguns dos recrutas em treinamento estiveram na Chechênia pela última vez como jovens conscritos do Exército russo, lutando contra chechenos que eram parte de um movimento separatista.
A participação de alguns chechenos representa outra inversão histórica: depois de centenas de anos de inimizade com a Rússia, os chechenos estão indo para a Ucrânia lutar por Moscou.
O movimento separatista dos anos 90 culminou em duas guerra brutais contra Moscou que, intermitentemente, duraram mais de uma década. A cidade de Grozny foi arrasada, e dezenas de milhares de chechenos morreram.
O líder autoritário da Chechênia, Ramzan Kadyrov, adotou uma posição agressiva em relação à Ucrânia desde o início da invasão russa, em fevereiro de 2022. Forças chechenas assumiram papéis decisivos em algumas batalhas importantes, incluindo o cerco a Mariupol, no início da guerra.
Mas Kadyrov foi acusado de ter se recusado a enviar seus combatentes às batalhas mais intensas, o que teria feito com que morressem menos chechenos do que soldados de outras minorias presentes na Rússia. Poupar seus soldados mantém intacta sua milícia privada, a principal força de segurança que garante seu governo na Chechênia.
Em vez disso, Kadyrov tentou reiterar sua lealdade ao presidente russo, Vladimir Putin, injetando recursos nesse centro de treinamento militar. O programa consiste de exercícios de artilharia com munição real e instruções sobre minagem, desminagem e primeiros-socorros.
Os vários batalhões Akhmat foram batizados, como muitas outras coisas na Chechênia, com o nome do pai de Kadyrov, Akhmat Kadyrov, que mudou de lado para se juntar a Moscou na luta separatista e posteriormente foi assassinado, em 2004.
A Rússia recrutou soldados para seu esforço de guerra em todos os lugares onde conseguiu encontrá-los, buscando minimizar a necessidade de um recrutamento obrigatório. Em 2022, Moscou suspendeu um banimento quase total a chechenos nas Forças Armadas russas, imposto como reação ao movimento separatista.
No grupo enviado à Ucrânia no outono (Hemisfério Norte) a partir do aeroporto de Grozny, muitos voluntários tinham idades entre 30 e 40 anos — e menos de 10 eram chechenos. E, apesar do que diz Jedi, dinheiro não é a única motivação.
Alguns fogem de vidas domésticas atribuladas. Outros querem escapar da rotina de trabalho duro. Outros, evidentemente, dizem estar lutando por patriotismo. Muitos soldados concordaram em falar sob a condição de ser identificados apenas por seus primeiros nomes ou nomes de guerra, por temer represálias.
Anatoli, de 24 anos, se voluntariou juntamente com outros nove moradores de um vilarejo de alta altitude em uma região montanhosa da pitoresca região de Altai, na Ásia Central. “Meu pai me forçava a remover neve, trabalhar, retirar o estrume das vacas”, afirmou ele. “Eu fugi desse trabalho para fazer outra coisa. Todo ano era mesma coisa”, disse, admitindo que o dinheiro também serviu de incentivo.
Outro trabalhador rural, um pastor de 45 anos que usa o nome de guerra “Masiania”, viajou cerca de 4,5 mil quilômetros, da República da Cacássia, para participar do treinamento. “Vou defender minha Mãe Pátria, para que a guerra não chegue aqui”, disse ele.
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O contrato com o batalhão de Akhmat dura apenas quatro meses, um grande incentivo em comparação aos alistamentos sem prazo de expiração dos soldados regulares.
No outono, Kadyrov formou uma nova unidade, o batalhão Xeque Mansour, batizado com o nome de um imã do século 18 que lutou contra o Império Russo. Os soldados são todos chechenos ou oriundos de pequenas repúblicas vizinhas, da montanhosa região do Cáucaso, a maioria na faixa dos 20 anos de idade. Chechenos que lutam a favor da Ucrânia contra a Rússia usaram o nome do xeque Mansour para batizar seu batalhão antes, agora Kadyrov está tentando reaver o nome.
Turpal, de 20 anos, trabalhava como segurança de uma grande cadeia de supermercados em Moscou quando obteve permissão de seu pai para se alistar na nova unidade, afirmando que queria lutar contra “esses demônios que estão na Ucrânia e querem trazer para cá suas ideias pervertidas”.
Quando deixou o centro de treinamento para visitar a família num fim de semana, Turpal ganhou um abraço da mãe e um aperto de mão do pai. “A Rússia está lutando por sua existência”, disse Mairali, o pai de Turpal. “Não dá para vencê-la. É melhor para a Chechênia estar do lado da Rússia do que contra.”
Veteranos Wagner também servem no batalhão Xeque Mansour. Um combatente de 35 anos, que usa o nome de guerra “Dikii”, ou “Selvagem”, afirmou que cumpria o 18.º mês de uma sentença de quase 10 anos por assassinato quando se alistou. Ele combateu na Ucrânia por 11 meses, foi ferido três vezes e ainda sofre dores de cabeça terríveis.
De volta à Chechênia, Selvagem achou a ideia de trabalhar por US$ 200 ao mês humilhante, então decidiu voltar para a guerra. “Não sei fazer outra coisa”, disse ele.
Os soldados Akhmat são mais bem equipados que o Exército russo regular. Ao contrário de alguns soldados regulares da Rússia, os membros dos batalhões Akhmat não têm de comprar seu próprio equipamento básico.
Jedi afirmou que, quando serviu pela primeira vez com o Grupo Wagner na Ucrânia, alguns jovens do Exército russo vinham suplicar-lhe insumos, combustível e alimentos. “No Akhmat, eu nem lavo minhas meias. Eu uso, coloco para lavar e uso novamente”, afirmou ele. “O mesmo vale para as cuecas e a roupa de cama. Nós temos tudo.”
Estima-se que Moscou subsidie 80% do orçamento da Chechênia, mas não é claro quanto vai para o treinamento militar.
No aeroporto, antes do batalhão partir, um oficial graduado passou a tropa em revista para desejar boa sorte aos novos soldados. “Os combatentes estão prontos?”, gritou ele. “Sim senhor”, responderam em uníssono, complementando com a expressão muçulmana, “Allahu akbar!”, ou “Deus é grande”, e o grito de guerra checheno “Akhmat Sila!”, ou “Akhmat manda!”.
Quando chegaram à região do Donbas, no leste da Ucrânia, alguns soldados receberam a missão de manter o controle russo sobre Bakhmut, atualmente esvaziada após meses de combates ferozes.
As ruas ficam desertas especialmente durante o dia, quando drones ucranianos circulam em busca de alvos. Em dias de nevoeiro, em certas ocasiões os combatentes podem ser vistos caminhando em meio a escombros.
Durante a noite, há movimento — quando os feridos em batalhas na região de Bakhmut são retirados. As ruas ficam repletas de ambulâncias em meio aos carros chamuscados.
Enquanto a guerra se arrasta implacavelmente acima do solo, o rugido da artilharia e das explosões de projéteis não reverberam muito abaixo da superfície, onde as forças Akhmat tomaram um hospital de campanha montado originalmente pelo Grupo Wagner.
A região de Bakhmut já foi famosa por seu vinho espumante, e o hospital opera em um labirinto de túneis subterrâneos onde dezenas de milhares de garrafas estão armazenadas. (A proibição de beber álcool imposta pelo Grupo Wagner e os batalhões Akhmat é em ampla medida respeitada.) No passado uma atração turística, sua antiga decoração ainda está intacta: estátuas de gesso empoeiradas retratando deuses antigos dividem o espaço com os feridos.
As cavas são amplas o suficiente para acomodar pelo menos duas vans lado a lado, e várias vezes ao dia veículos transportando feridos e mortos percorrem o obscuro e nevoento labirinto. Soldados descem dos veículos e rapidamente carregam seus camaradas, com frequência gemendo de dor, em macas até o ponto de estabilização improvisado.
Um dos cirurgiões, Bulia, de 34 anos, trabalhou para o Grupo Wagner, principalmente na África, desde 2017. Quando viajava para Moscou, afirmou ele, as pessoas da capital reagiam com expressões de “nojo” ao vê-lo de uniforme, mas na Chechênia ele encontrou mais respeito.
Bulia afirmou que, à medida que as baixas aumentaram, passou a desejar ardorosamente que o Exército russo conquiste Kiev. “Não preciso das suas negociações (…)”, disse ele, completando com um impropério. “Espero que Vladimir Vladimirovich Putin faça isso, que ele chegue até o final. Nós vamos chegar lá.”/ TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO