ESPECIAL PARA O ESTADÃO - O Uruguai enfrenta uma crise hídrica sem precedentes. Há dois meses, mais da metade do país está sem acesso a água filtrada de qualidade e não tem perspectiva sobre quando o cenário mudará. Na capital Montevidéu e na região metropolitana, 3,5 milhões de pessoas buscam formas de contornar o estado de emergência hídrica, decretado em junho pelo presidente Luis Lacalle Pou.
Para contornar a situação, o governo orientou a compra de água engarrafada, isentou os impostos do produto e anunciou a distribuição de galões para mais de 500 mil pessoas. Outra solução foi a de abastecer a população com água retirada do estuário do Rio da Prata. A medida foi acompanhada por uma mudança nos níveis máximos aceitáveis de sódio e cloreto para consumo, já que a água do estuário não tem a qualidade da água vinda dos reservatórios.
A decisão foi acompanhada por protestos na capital. Os uruguaios reclamam de encontrar água salobra, turva e, por vezes, com odor desagradável nas suas torneiras. A situação afeta desde o banho até o consumo do tradicional mate e levanta questões sobre os potenciais efeitos na saúde dos uruguaios.
Na capital e arredores, são consumidos 500 mil metros cúbicos de água diariamente. Em 4 de maio, o Ministério da Saúde Pública chegou a autorizar uma “exceção temporária” dos níveis máximos permitidos deste recurso fornecido pela OSE, aumentando para até 440mg/l de sódio e 720mg/l de cloretos, marca acima da regulamentação que estabelece o limite de 200mg/l e 250mg/l, respectivamente.
“É impossível de beber. Aqui a gente tem o costume de tomar água da torneira mesmo, mas não dá. É um gosto horrível. Ela é meio esbranquiçada, como se fosse um copo com sal mesmo”, descreve Ana Paula Nogueira, 42. A brasileira mora no país há cinco anos com o marido uruguaio e uma filha de três anos. Ela conta que tem receio principalmente pela criança já que teve amigas que desenvolveram alergias usando a água para o banho.
“Quando você escova os dentes é horrível, sente a água salgada, é nojento”, diz Isabel Moreira. A aposentada de 73 anos reclama que o sal desta água está queimando o sistema de aquecimento do reservatório de sua casa, assim como ocorre com outros moradores de Montevidéu recentemente.
Ela também lamenta o golpe no bolso. Desde o início da crise, ele compra cerca de 40 litros de água mineral por semana a um custo de 600 pesos (cerca de US$ 16 ou R$ 78) que, como seus vizinhos, usa até para dar aos seus animais de estimação.
No centro de Montevidéu, Nicolás Pérez dirige uma empresa que aumentou consideravelmente suas vendas de água mineral, isenta de impostos desde o mês passado.
“Por pessoa eles têm levado até 8, 12 (recipientes entre 6 e 10 litros). Depois temos lojas, restaurantes e alguns hotéis que têm levado até 20″, diz.
No Parque Batlle, principal da cidade, o primeiro poço perfurado pela OSE para extrair água subterrânea produz cerca de 30 mil litros por hora, que são distribuídos por caminhões-pipa aos hospitais.
Desde o início de julho, o governo fornece dois litros de água mineral por dia para mais de 500 mil pessoas em situação de vulnerabilidade que residem na região metropolitana.
O ministro do Meio Ambiente, Robert Bouvier, reconheceu que o líquido distribuído não é potável, de acordo com uma “definição perfeita”. “O que dizemos é que a água é bebível e consumível, que é uma outra definição”, afirmou no mês passado. O cenário vai de encontro com a própria Constituição do Uruguai, que, em 2004, foi a primeira do mundo a incluir a água potável como um direito humano fundamental.
Na quinta-feira, 13, a Organização das Nações Unidas (ONU) se pronunciou sobre a questão, repercutindo os riscos do consumo reconhecidos pelas autoridades uruguaias. O órgão, no entanto, alertou para os riscos de que a orientação do governo de comprar água engarrafada crie um risco de privatização da água para o consumo humano e destacou que o consumo humano deve ser prioritário.
Movimentos sociais acusam uma super exploração do agronegócio e de grandes empresas. O lema das manifestações, que começaram a tomar as ruas da capital no último dia 31, tem sido ‘No es sequia. Es saqueo’, em português: ‘Não é seca. É saque’.
O Google é um dos alvos dos protestos. A gigante de tecnologia comprou um terreno de 29 hectares para construir um centro de dados na região sul do país. A iniciativa requer o uso de até 7,6 milhões de litros diários de água para a manutenção de seus servidores. A empresa, em nota, afirmou que o projeto ainda está em fase inicial e se mantém em diálogo com as autoridades locais.
O futuro é incerto. O governo se fia na previsão de chuva e na construção de uma barragem e de uma estação de bombeamento no rio San José para levar água ao rio Santa Lucia, a principal fonte de abastecimento de Montevidéu. A obra está prevista para terminar em 26 de julho.
Ana Paula reclama da falta de perspectiva. “É horrível. Não há comunicação sobre se há algum tipo de plano, quando vai melhorar. A impressão é de que não somos informados sobre tudo”, disse ao Estadão.
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Estiagem histórica
O período de estiagem no Uruguai não é recente, mas se intensificou em maio deste ano. De lá para cá, o reservatório de Paso Severino, principal fonte de abastecimento de Montevidéu, há 70 quilômetros da cidade, chegou a ter apenas 1,8% de sua capacidade total. É a maior seca em sete décadas, segundo o Instituto Uruguaio de Meteorologia.
Desde 2020, a região sul-americana passa por um período de redução de chuvas. O prolongamento do fenômeno La Niña, intensificado pelas mudanças climáticas. Só no Uruguai, choveu 25% que a média histórica nos últimos três anos.
Um informe emitido nesta sexta-feira, 14, pela empresa pública Obras Sanitarias del Estado (OSE), indica uma leve melhora da situação. Com as chuvas que caíram entre o último mês e este, o Paso Severino chegou aos 4,5% dos seus 67 milhões de metros cúbicos.
Ainda que a gravidade do cenário seja inédita nos últimos cem ano, o país passou por períodos de déficit hídrico nas últimas décadas que forçaram o governo a repensar seus reservatórios. Ainda no governo de José Mujica, em 2014, foi anunciado o desenvolvimento do Projeto da Barragem Casupa, que aumentaria o aumento das reservas de água para o abastecimento da cidade de Montevidéu. Um acordo com o banco de desenvolvimento da América Latina, o CAF, chegou a ser assinado, mas o projeto está empacado.
A região deve amargar a pouca chuva durante todo o mês. A quantidade mais expressiva deve cair no próximo fim de semana, quando são previstos 6 mm.
Esforço para solucionar problema
Canos, valas, escavadeiras: o Uruguai trabalha contra o tempo para canalizar água doce para a área mais populosa do país, onde há mais de dois meses a água que sai da torneira é salgada devido a uma forte seca.
Em Paso Valdez, 65 quilômetros a noroeste de Montevidéu, o governo avança na instalação de 13,3 quilômetros de tubulações para levar água do rio San José ao rio Santa Lucía, a única usina que fornece o recurso natural desde o século XIX aos 1,8 milhão de habitantes da capital uruguaia e arredores.
A empresa estatal OSE está construindo uma barragem e uma estação de bombeamento no rio San José para aliviar o déficit hídrico que afeta a região há mais de três anos. As obras devem ser concluídas em 30 dias, estimou o presidente Luis Lacalle Pou em 19 de junho.
A medida é urgente, uma vez que a principal reserva de água doce da usina de Aguas Corrientes está quase esgotada. Em 11 de julho, restavam apenas 2,09 milhões de metros cúbicos no reservatório Paso Severino, que a alimenta, apenas 3,1% de sua capacidade total, segundo o último relatório oficial.
Diante da crescente escassez, a OSE construiu a represa Belastiquí, um barragem emergencial para garantir que o fluxo da parte baixa do rio Santa Lucía, que vem do estuário do Río de la Plata e contém água salgada do Oceano Atlântico, chegue a Aguas Corrientes.
Victoria Ichazo, subgerente de produção de Aguas Corrientes, destaca que três novas bombas se somaram às outras três que já captavam água do baixo Santa Lucía. Inicialmente o recurso não era tão salgado, mas a seca que atinge toda a região também reduziu a água doce fornecida ao estuário pelos rios Uruguai e Paraná.
A importante usina, que completou 150 anos em 2018, teve seu último grande projeto de infraestrutura ainda na década de 1980, quando aumentou as reservas de água doce para a área da capital com a construção da barragem de Paso Severino. / COM AFP