AP - Em uma viagem recente de compras do outro lado da fronteira, quatro amigas de Fray Bentos, no Uruguai, visitaram a cidade argentina de Gualeguaychú, onde elas conseguem desfrutar de luxos e arrematar ofertas de arregalar os olhos. Graças a uma enorme disparidade entre os valores das moedas desses dois países sul-americanos, Stella Ferreira e uma amiga puderam cuidar do visual em um salão de cabeleireiro a preços baixos enquanto suas duas outras amigas saíram em busca de calças estilosas e baratas.
Com a economia argentina à beira do colapso, o valor do peso em relação ao dólar despencou, e a inflação anual do país é de 115,6%, uma das mais altas no mundo. Em contraste, a economia uruguaia é mais estável, com inflação baixa e moeda mais forte.
O resultado tem sido um enorme fluxo de consumidores uruguaios que propicia um respiro econômico para lojas e restaurantes argentinos que passavam por dificuldades em cidades como Gualeguaychú, Concordia e Colón.
Mas os comércios uruguaios ao longo da fronteira estão sofrendo: nas Províncias de Salto, Paysandú, Río Negro e Soriano, autoridades municipais informam que 170 lojas fecharam nos primeiros cinco meses deste ano. Os proprietários dos estabelecimentos que continuam abertos se queixam em razão da falta de clientes.
Com cerca de US$ 100 no bolso cada, as quatro amigas planejavam fazer o cabelo, comprar roupas e outras mercadorias, encher o tanque do carro e comer em um restaurante em Gualeguaychú, na Província de Entre Ríos, que há mais de um ano tem sido uma meca das compras para uruguaios em busca de pechinchas. No Uruguai, Ferreira, de 29 anos, afirmou que US$ 100 “só pagariam o cabelo e pouco mais”.
Os comércios uruguaios próximos à fronteira têm dificuldades para competir com essas ofertas. “Tudo está quieto demais por aqui”, afirmou Susana Guerrero, dona de uma loja que vende queijos e doces em Salto. “Eu perdi um funcionário e não o substituí.”
Guerrero viajou para Gualeguaychú para ver o que está acontecendo por lá e percebeu por que os uruguaios estão preferindo fazer compras por lá. As diferenças de preços entre os dois países podem ser impressionantes. Um litro de óleo de girassol que custa US$ 5 no Uruguai custa US$ 0,50 na Argentina. Um pote de creme de cuidados com a pele que custa US$ 10 no Uruguai por ser adquirido por US$ 1 do outro lado da fronteira. E um litro de gasolina que custa quase US$ 2 no Uruguai na Província argentina de Entre Ríos custa US$ 0,52.
“É barato mesmo, nós não temos como competir”, afirmou Guerrero. As fachadas das lojas de Fray Bentos, enquanto isso, são cobertas de cartazes de ofertas especiais, tentando atrair clientes.
Crise na Argentina
“Neste ano as vendas caíram 40% ou mais”, afirmou Alicia Nedor, que trabalha em uma farmácia. Ela afirmou que o setor passa pela pior crise em décadas. Nedor, de 70 anos, disse que vários comércios pequenos fecharam em Fray Bentos e que lojas maiores demitiram funcionários.
Os caçadores de pechinchas transfronteiriços também chegam dos vizinhos Chile, Paraguai e Brasil. No Uruguai, representantes da indústria qualificaram o fenômeno como uma “pandemia fronteiriça” e até o presidente do país reconheceu o problema.
“Os preços das mercadorias na Argentina estão extremamente baratos, e naturalmente seus vizinhos consomem onde é melhor para eles”, afirmou o presidente Luis Lacalle Pou, no início de maio. “Isso cria um desequilíbrio. Nós temos aplicado medidas, mas isso não é suficiente.”
O governo introduziu, então, outras medidas, como isenções fiscais para empresas uruguaias e um limite de 5 quilos sobre o que uruguaios vindos da Argentina podem trazer. Mas líderes empresariais afirmam que os controles não têm sido aplicados e exigem uma política de “zero quilo” na fronteira, o que Lacalle Pou rejeitou.
O presidente uruguaio afirmou que seu governo buscará garantir que contrabando não atravesse a fronteira, mas acrescentou que “é impossível resolver o problema da taxa de câmbio com a Argentina”.
A Universidade Católica do Uruguai criou um Indicador de Preços Fronteiriços para a cidade argentina de Concordia, cerca de 200 quilômetros ao norte de Gualeguaychú. De acordo com os dados mais recentes do índice, em maio era 59% mais barato comprar alimentos da cesta básica, bebidas, roupas e produtos domésticos em Concordia do que na cidade uruguaia de Salto.
A diferença de preços é reflexo da desvalorização do peso argentino, que perdeu 47% de seu valor em relação ao dólar cotado oficialmente este ano.
A Argentina foi acometida por inflação várias vezes ao longo do século recente. A atual crise começou em 2018, mas piorou nos últimos 18 meses, afirmou María Castiglioni, diretora da C&T Asesores Económicos. O problema da inflação decorreu de diversos fatores, afirmou ela, incluindo gastos excessivos do governo e problemas na política monetária.
O país não tem recursos para liquidar seus gastos excessivos porque perdeu acesso ao mercado internacional de endividamento após dar vários calotes em seus empréstimos. A perda de acesso significa que outros países não sentem confiança em emprestar dinheiro para a Argentina.
À medida que esta crise de dívida irrompeu, o governo argentino voltou-se para o banco central do país em busca de assistência. Num esforço para sustentar a economia, o banco central não parou de imprimir pesos — o que ocasionou desvalorização da moeda. O aumento no fluxo de pesos também ocasionou o aumento na inflação que os argentinos testemunham em seu dia a dia.
Em feriados e fins de semana, longas filas de carros se formam para atravessar a Ponte Internacional General San Martín, sobre o Rio Uruguai, que liga as cidades de Gualeguaychú, na Argentina, e Fray Bentos, no Uruguai.
Entre 30 de junho e 4 de julho, período que incluiu os primeiros dias das férias de inverno dos uruguaios, mais de 100 mil pessoas entraram na Argentina vindas do Uruguai, a maior parte através de três passagens transfronteiriças em Entre Ríos. A maioria era de uruguaios, mas havia pessoas de outras nacionalidades. O Uruguai tem cerca de 3,4 milhões de habitantes.
“Aqui em Gualeguaychú a gente encontra Fray Bentos inteira fazendo compras”, afirmou dando risada Carolaine Sololuce, uma das amigas de Ferreira. “É agradável vir aqui por causa de toda a atividade, das lojas…”
Sololuce estava feliz porque tinha comprado calças por 9 mil pesos argentinos, ou US$ 18 no câmbio clandestino. Em Fray Bentos, as mesmas calças teriam custado US$ 48.
Claudio Gatt, dono do salão de beleza que Ferreira foi com as amigas, afirmou que desde a crise econômica provocada pela pandemia de coronavírus, entre 2020 e 2021, o fluxo de uruguaios tem sido seu oxigênio. “Se eles não estivessem aqui, as vendas teriam caído no mínimo 50%”, afirmou ele.
Cartazes informando que “aceita-se dólares” cobrem as vitrines das lojas de Gualeguaychú, e suas principais ruas ficam repletas de visitantes de diferentes partes do Uruguai. Metade dos medicamentos e produtos de limpeza vendidos na cidade é comprada por uruguaios, de acordo com a câmara de comércio local.
“Daqui a pouco nós viramos uruguaios”, afirmou o aposentado argentino Sixto Fernandez, de 68 anos. “Quando vamos ao supermercado, está sempre cheio. Eles estão por toda a parte, são como formigas.”
No estacionamento de um supermercado, Diana Rocco, de 30 anos, carregava o carro com várias sacolas cheias de produtos de limpeza e alimentos. Ela estava feliz com as mangas que tinha comprado por metade do preço cobrado no Uruguai.
Rocco, natural da cidade uruguaia de Palmitas, afirmou que planeja voltar a Gualeguaychú porque seu salário como agente de segurança particular quase não dá conta das despesas de sua casa.
Para o professor argentino Alejandro Ramos, de 49 anos, morador de Gualeguaychú, o problema não é os uruguaios, porque “eles vêm aqui e compram legalmente as coisas”. O problema “somos nós”, afirmou ele. “Primeiro nós temos de perceber que estamos em meio a um desastre econômico neste país.” / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO