Crise econômica e migratória afasta novos governos de esquerda da Venezuela


Novos líderes da região iniciam uma retomada das relações com o governo de Nicolás Maduro, mas erosão democrática e violações de direitos deixam vizinhos receosos

Por Carolina Marins

Logo após a vitória de Gustavo Petro na Colômbia, que consolidou uma nova virada à esquerda nos governos da América Latina, o presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, se apressou em cumprimentá-lo e celebrar as “mudanças radicais” nas relações. Os primeiros sinais, contudo, indicam uma distância maior entre os vizinhos que a relação próxima mantida na primeira década do século, quando o chavismo era cortejado por diferentes governos de esquerda, da Argentina a Honduras.

A razão para isso, dizem analistas, é a pressão provocada pela crise migratória venezuelana e a atual crise inflacionária que atinge a América do Sul quase como um todo. Na prática, a Venezuela - assim como a Nicarágua - se transformou numa dor de cabeça para governos de esquerda da região.

Enquanto a chamada primeira onda de esquerda, encabeçada por Lula, o casal Kirschner, Rafael Correa, Evo Morales, etc, no início dos anos 2000 não se constrangia em sair em fotos ao lado de Hugo Chávez e depois, Maduro, as lideranças da chamada nova esquerda se mostram mais receosas. De meados de 2014 - quando analistas apontam ser o fim da primeira onda - até agora, não só os regimes venezuelanos e nicaraguenses se tornaram ditatoriais, quanto outros países caminham no mesmo sentido, como Haiti e El Salvador.

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Segundo analistas ouvidos pelo Estadão, Gustavo Petro, Gabriel Boric, Pedro Castillo, Alberto Fernández, Andrés Manuel López Obrador, Xiomara Castro e Luis Arce terão de lidar com a Venezuela e outros regimes que caminham numa direção autoritária, mas até o momento não sabem como fazê-lo.

O presidente venezuelano, Nicolás Maduro, em ato governamental, em Caracas Foto: Escritório de Imprensa do Palácio de Miraflores/EFE

“A Venezuela de alguma forma se tornou um problema, não só pela natureza abertamente ditatorial de seu governo que não vem de agora, mas porque é um governo que tem um processo aberto de investigações e apuração de responsabilidades em crimes lesa humanidade”, afirma Xavier Rodríguez-Franco, mestre em Estudos Latino-Americanos pela Universidad de Salamanca.

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“Esses novos líderes têm dois desafios muito grandes, que não sabem como resolver: um é como lidar politicamente com o governo de Maduro, outro é como resolver a enorme crise migratória, onde centenas de venezuelanos cruzam a fronteira todos os dias”, completa.

Atualmente há mais de 6 milhões de venezuelanos refugiados no mundo todo, segundo dados do Alto-comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur), que já considera esta a maior crise de deslocamento externo no mundo.

A Colômbia é o principal país de destino, com mais de 1,8 milhões de refugiados recebidos, o que torna a questão venezuelana um tema sensível na sociedade, com mais de 50% dos colombianos sendo contra a regularização dos imigrantes, segundo pesquisa realizada pela 40dB para o jornal espanhol El País em maio deste ano, antes da vitória de Petro. Em seguida vem Peru, Equador, EUA e Chile.

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A este contexto de uma crise de deslocamentos que não tem previsão de terminar se soma a forte crise inflacionária que esses novos líderes estão herdando e que está custando suas popularidades. Venezuelanos fogem de uma hiperinflação acima dos 100% e encontram, agora, inflações de quase dois dígitos - ou acima - em muitos dos países que chegam. Falta, porém, uma integração sobre como lidar com o somatório de crises.

Falta de consensos

O governo de Gabriel Boric, segundo analistas chilenos, quer distância de Maduro. “O governo Boric detesta profundamente o governo venezuelano”, afirma Jaime Baeza, professor da Facultad de Gobierno da Universidad de Chile. “Já durante a campanha o Boric, então candidato, se referiu à Venezuela e à Nicarágua como ditaduras. Ele não queria ter nenhum relacionamento e isso até gerou uma tensão dentro de sua coalizão, porque o Partido Comunista não gostou disso”.

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Baeza ainda ressalta que a ministra de Relações Exteriores de Boric, Antonia Urrejola, foi membro da Organização dos Estados Americanos (OEA) e era encarregada de lidar com as perseguições políticas do regime nicaraguense. “Ela disse abertamente que tanto a Nicarágua quanto a Venezuela a incomodam”, afirma.

“Não estamos falando da mesma esquerda dos anos 2000, e esta nova esquerda está fazendo um cálculo político sobre a Venezuela”, explica María Isabel Puerta Riera, professora de Ciência Política e Política Internacional no Valencia College, na Flórida. “Há uma certa solidariedade implícita, por exemplo, no caso da Argentina a Venezuela continua sendo tratada como um governo legítimo. Não é o mesmo no caso de Boric e Petro. Eles estão tomando mais cuidado porque sabem que representa um alto custo político tratarem o regime venezuelano como um regime de iguais.”

O presidente chileno Gabriel Boric acena para a imprensa ao chegar para um jantar no Getty Villa durante a Cúpula das Américas em Los Angeles Foto: Jae C. Hong/AP
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Porém, explica a professora, mesmo que não haja um apoio institucional desses governos com o regime de Maduro, invariavelmente haverá uma reaproximação, seja por razões econômicas seja para resolver a crise migratória. Por consequência, isso dará mais legitimidade a Nicolás Maduro em detrimento da oposição representada por Juan Guaidó, e, sem dúvidas, Maduro utilizará disso para ganhos políticos.

“Não tenho dúvidas de que Maduro vai aproveitar essa situação para dar a entender que ele tem mais aliados, como ele já disse com Petro. E apostando na vitória de Lula, ele falará em termos de crescimento qualitativo e quantitativo de sua aliança. A questão é como os países vão manejar isso”, afirma.

O desafio, porém, é como fazer com que governos tão distintos cooperem entre si no assunto. Ainda que sejam todos classificados como uma nova esquerda - com pautas e características distintas da onda dos anos 2000 - há diferenças profundas de uma liderança para outra.

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Diferentemente de Petro e Boric, Alberto Fernández retirou a Argentina do Grupo de Lima, que reconhecia Juan Guaidó como presidente legítimo da Venezuela. Fernández inclusive defendeu a retomada de laços com a Venezuela em visita ao seu homólogo equatoriano, Guillermo Lasso, que é de direita. Mais recentemente, Obrador do México se recusou à comparecer à Cúpula das Américas, pois os Estados Unidos haviam excluído Venezuela, Nicarágua e Cuba. Pedro Castillo do Peru também retomou os laços rompidos.

O papel de Petro

A maior mudança nesta nova onda é a vitória de Petro na Colômbia, o primeiro esquerdista no poder do país. Durante a campanha presidencial, Petro tentou descolar sua imagem de Maduro, em um movimento para se mostrar menos radical - e se afastar do passado guerrilheiro. Mas antes mesmo de tomar posse, o colombiano conversou com o venezuelano sobre reabrir suas fronteiras, fechadas desde 2019.

Sua vitória na Colômbia é, por um lado, também uma vitória política para Maduro que finalmente terá relações mais amigáveis com o país mais próximo economicamente e com quem compartilha uma fronteira porosa. Por outro, coloca em xeque a retórica da Colômbia uribista como a “grande inimiga” da Venezuela.

Iván Duque encabeçou durante seu governo a oposição dos países da região ao regime de Maduro. Com isso, o presidente venezuelano se apoiou no discurso de que colombianos queriam derrubá-lo e até mesmo assassiná-lo. A incógnita, agora, é como ficará esse discurso, caso Petro não atenda às suas expectativas de mudanças radicais.

“É uma pergunta que nós venezuelanos estamos fazendo: qual vai ser a relação com o novo governo de Petro”, pontua Xavier Rodrigues-Franco. “A política de atuação dele quando era deputado não era a mesma quando ele era prefeito e agora vai ser presidente. Ele tinha um perfil muito mais combativo sendo a oposição e agora ele é o governo”.

A vice-presidente-eleita da Colômbia, Francia Márquez, ao lado do presidente-eleito, Gustavo Petro Foto: Luisa Gonzalez/Reuters

Nesse sentido, o cientista político vê uma oportunidade em Petro de liderar a mudança nas relações diplomáticas dos líderes sul-americanos com a Venezuela. “As lideranças de esquerda na região não sabem o que fazer com a Venezuela, e acho que Petro pode ter essa resposta. Porque de alguma forma ele é um cara que vem da esquerda, tem experiência política, sabe quais são as dificuldades envolvidas em estabelecer relações com um governo criminoso como o da Venezuela, e além disso, sabe o impacto de ter essa situação sem solução”.

“Petro tem uma oportunidade grande de gerar as condições facilitadoras de negociações reais e efetivas que possibilitem o processo de transição e podemos falar até de restauração da vigência da Constituição da Venezuela”, concorda María Elena Rodríguez, professora do Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio e pesquisadora do Brics Policy Center.

“Petro tem uma relação histórica com a Venezuela, teve em algum momento com Chávez. Então talvez o seu papel mais importante seja contribuir realmente nesse conflito venezuelano. E talvez o que todo mundo espera é que ele tenha mais coragem e influência que o governo do México, por exemplo, em liderar essas negociações”, finaliza.

Logo após a vitória de Gustavo Petro na Colômbia, que consolidou uma nova virada à esquerda nos governos da América Latina, o presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, se apressou em cumprimentá-lo e celebrar as “mudanças radicais” nas relações. Os primeiros sinais, contudo, indicam uma distância maior entre os vizinhos que a relação próxima mantida na primeira década do século, quando o chavismo era cortejado por diferentes governos de esquerda, da Argentina a Honduras.

A razão para isso, dizem analistas, é a pressão provocada pela crise migratória venezuelana e a atual crise inflacionária que atinge a América do Sul quase como um todo. Na prática, a Venezuela - assim como a Nicarágua - se transformou numa dor de cabeça para governos de esquerda da região.

Enquanto a chamada primeira onda de esquerda, encabeçada por Lula, o casal Kirschner, Rafael Correa, Evo Morales, etc, no início dos anos 2000 não se constrangia em sair em fotos ao lado de Hugo Chávez e depois, Maduro, as lideranças da chamada nova esquerda se mostram mais receosas. De meados de 2014 - quando analistas apontam ser o fim da primeira onda - até agora, não só os regimes venezuelanos e nicaraguenses se tornaram ditatoriais, quanto outros países caminham no mesmo sentido, como Haiti e El Salvador.

Segundo analistas ouvidos pelo Estadão, Gustavo Petro, Gabriel Boric, Pedro Castillo, Alberto Fernández, Andrés Manuel López Obrador, Xiomara Castro e Luis Arce terão de lidar com a Venezuela e outros regimes que caminham numa direção autoritária, mas até o momento não sabem como fazê-lo.

O presidente venezuelano, Nicolás Maduro, em ato governamental, em Caracas Foto: Escritório de Imprensa do Palácio de Miraflores/EFE

“A Venezuela de alguma forma se tornou um problema, não só pela natureza abertamente ditatorial de seu governo que não vem de agora, mas porque é um governo que tem um processo aberto de investigações e apuração de responsabilidades em crimes lesa humanidade”, afirma Xavier Rodríguez-Franco, mestre em Estudos Latino-Americanos pela Universidad de Salamanca.

“Esses novos líderes têm dois desafios muito grandes, que não sabem como resolver: um é como lidar politicamente com o governo de Maduro, outro é como resolver a enorme crise migratória, onde centenas de venezuelanos cruzam a fronteira todos os dias”, completa.

Atualmente há mais de 6 milhões de venezuelanos refugiados no mundo todo, segundo dados do Alto-comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur), que já considera esta a maior crise de deslocamento externo no mundo.

A Colômbia é o principal país de destino, com mais de 1,8 milhões de refugiados recebidos, o que torna a questão venezuelana um tema sensível na sociedade, com mais de 50% dos colombianos sendo contra a regularização dos imigrantes, segundo pesquisa realizada pela 40dB para o jornal espanhol El País em maio deste ano, antes da vitória de Petro. Em seguida vem Peru, Equador, EUA e Chile.

A este contexto de uma crise de deslocamentos que não tem previsão de terminar se soma a forte crise inflacionária que esses novos líderes estão herdando e que está custando suas popularidades. Venezuelanos fogem de uma hiperinflação acima dos 100% e encontram, agora, inflações de quase dois dígitos - ou acima - em muitos dos países que chegam. Falta, porém, uma integração sobre como lidar com o somatório de crises.

Falta de consensos

O governo de Gabriel Boric, segundo analistas chilenos, quer distância de Maduro. “O governo Boric detesta profundamente o governo venezuelano”, afirma Jaime Baeza, professor da Facultad de Gobierno da Universidad de Chile. “Já durante a campanha o Boric, então candidato, se referiu à Venezuela e à Nicarágua como ditaduras. Ele não queria ter nenhum relacionamento e isso até gerou uma tensão dentro de sua coalizão, porque o Partido Comunista não gostou disso”.

Baeza ainda ressalta que a ministra de Relações Exteriores de Boric, Antonia Urrejola, foi membro da Organização dos Estados Americanos (OEA) e era encarregada de lidar com as perseguições políticas do regime nicaraguense. “Ela disse abertamente que tanto a Nicarágua quanto a Venezuela a incomodam”, afirma.

“Não estamos falando da mesma esquerda dos anos 2000, e esta nova esquerda está fazendo um cálculo político sobre a Venezuela”, explica María Isabel Puerta Riera, professora de Ciência Política e Política Internacional no Valencia College, na Flórida. “Há uma certa solidariedade implícita, por exemplo, no caso da Argentina a Venezuela continua sendo tratada como um governo legítimo. Não é o mesmo no caso de Boric e Petro. Eles estão tomando mais cuidado porque sabem que representa um alto custo político tratarem o regime venezuelano como um regime de iguais.”

O presidente chileno Gabriel Boric acena para a imprensa ao chegar para um jantar no Getty Villa durante a Cúpula das Américas em Los Angeles Foto: Jae C. Hong/AP

Porém, explica a professora, mesmo que não haja um apoio institucional desses governos com o regime de Maduro, invariavelmente haverá uma reaproximação, seja por razões econômicas seja para resolver a crise migratória. Por consequência, isso dará mais legitimidade a Nicolás Maduro em detrimento da oposição representada por Juan Guaidó, e, sem dúvidas, Maduro utilizará disso para ganhos políticos.

“Não tenho dúvidas de que Maduro vai aproveitar essa situação para dar a entender que ele tem mais aliados, como ele já disse com Petro. E apostando na vitória de Lula, ele falará em termos de crescimento qualitativo e quantitativo de sua aliança. A questão é como os países vão manejar isso”, afirma.

O desafio, porém, é como fazer com que governos tão distintos cooperem entre si no assunto. Ainda que sejam todos classificados como uma nova esquerda - com pautas e características distintas da onda dos anos 2000 - há diferenças profundas de uma liderança para outra.

Diferentemente de Petro e Boric, Alberto Fernández retirou a Argentina do Grupo de Lima, que reconhecia Juan Guaidó como presidente legítimo da Venezuela. Fernández inclusive defendeu a retomada de laços com a Venezuela em visita ao seu homólogo equatoriano, Guillermo Lasso, que é de direita. Mais recentemente, Obrador do México se recusou à comparecer à Cúpula das Américas, pois os Estados Unidos haviam excluído Venezuela, Nicarágua e Cuba. Pedro Castillo do Peru também retomou os laços rompidos.

O papel de Petro

A maior mudança nesta nova onda é a vitória de Petro na Colômbia, o primeiro esquerdista no poder do país. Durante a campanha presidencial, Petro tentou descolar sua imagem de Maduro, em um movimento para se mostrar menos radical - e se afastar do passado guerrilheiro. Mas antes mesmo de tomar posse, o colombiano conversou com o venezuelano sobre reabrir suas fronteiras, fechadas desde 2019.

Sua vitória na Colômbia é, por um lado, também uma vitória política para Maduro que finalmente terá relações mais amigáveis com o país mais próximo economicamente e com quem compartilha uma fronteira porosa. Por outro, coloca em xeque a retórica da Colômbia uribista como a “grande inimiga” da Venezuela.

Iván Duque encabeçou durante seu governo a oposição dos países da região ao regime de Maduro. Com isso, o presidente venezuelano se apoiou no discurso de que colombianos queriam derrubá-lo e até mesmo assassiná-lo. A incógnita, agora, é como ficará esse discurso, caso Petro não atenda às suas expectativas de mudanças radicais.

“É uma pergunta que nós venezuelanos estamos fazendo: qual vai ser a relação com o novo governo de Petro”, pontua Xavier Rodrigues-Franco. “A política de atuação dele quando era deputado não era a mesma quando ele era prefeito e agora vai ser presidente. Ele tinha um perfil muito mais combativo sendo a oposição e agora ele é o governo”.

A vice-presidente-eleita da Colômbia, Francia Márquez, ao lado do presidente-eleito, Gustavo Petro Foto: Luisa Gonzalez/Reuters

Nesse sentido, o cientista político vê uma oportunidade em Petro de liderar a mudança nas relações diplomáticas dos líderes sul-americanos com a Venezuela. “As lideranças de esquerda na região não sabem o que fazer com a Venezuela, e acho que Petro pode ter essa resposta. Porque de alguma forma ele é um cara que vem da esquerda, tem experiência política, sabe quais são as dificuldades envolvidas em estabelecer relações com um governo criminoso como o da Venezuela, e além disso, sabe o impacto de ter essa situação sem solução”.

“Petro tem uma oportunidade grande de gerar as condições facilitadoras de negociações reais e efetivas que possibilitem o processo de transição e podemos falar até de restauração da vigência da Constituição da Venezuela”, concorda María Elena Rodríguez, professora do Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio e pesquisadora do Brics Policy Center.

“Petro tem uma relação histórica com a Venezuela, teve em algum momento com Chávez. Então talvez o seu papel mais importante seja contribuir realmente nesse conflito venezuelano. E talvez o que todo mundo espera é que ele tenha mais coragem e influência que o governo do México, por exemplo, em liderar essas negociações”, finaliza.

Logo após a vitória de Gustavo Petro na Colômbia, que consolidou uma nova virada à esquerda nos governos da América Latina, o presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, se apressou em cumprimentá-lo e celebrar as “mudanças radicais” nas relações. Os primeiros sinais, contudo, indicam uma distância maior entre os vizinhos que a relação próxima mantida na primeira década do século, quando o chavismo era cortejado por diferentes governos de esquerda, da Argentina a Honduras.

A razão para isso, dizem analistas, é a pressão provocada pela crise migratória venezuelana e a atual crise inflacionária que atinge a América do Sul quase como um todo. Na prática, a Venezuela - assim como a Nicarágua - se transformou numa dor de cabeça para governos de esquerda da região.

Enquanto a chamada primeira onda de esquerda, encabeçada por Lula, o casal Kirschner, Rafael Correa, Evo Morales, etc, no início dos anos 2000 não se constrangia em sair em fotos ao lado de Hugo Chávez e depois, Maduro, as lideranças da chamada nova esquerda se mostram mais receosas. De meados de 2014 - quando analistas apontam ser o fim da primeira onda - até agora, não só os regimes venezuelanos e nicaraguenses se tornaram ditatoriais, quanto outros países caminham no mesmo sentido, como Haiti e El Salvador.

Segundo analistas ouvidos pelo Estadão, Gustavo Petro, Gabriel Boric, Pedro Castillo, Alberto Fernández, Andrés Manuel López Obrador, Xiomara Castro e Luis Arce terão de lidar com a Venezuela e outros regimes que caminham numa direção autoritária, mas até o momento não sabem como fazê-lo.

O presidente venezuelano, Nicolás Maduro, em ato governamental, em Caracas Foto: Escritório de Imprensa do Palácio de Miraflores/EFE

“A Venezuela de alguma forma se tornou um problema, não só pela natureza abertamente ditatorial de seu governo que não vem de agora, mas porque é um governo que tem um processo aberto de investigações e apuração de responsabilidades em crimes lesa humanidade”, afirma Xavier Rodríguez-Franco, mestre em Estudos Latino-Americanos pela Universidad de Salamanca.

“Esses novos líderes têm dois desafios muito grandes, que não sabem como resolver: um é como lidar politicamente com o governo de Maduro, outro é como resolver a enorme crise migratória, onde centenas de venezuelanos cruzam a fronteira todos os dias”, completa.

Atualmente há mais de 6 milhões de venezuelanos refugiados no mundo todo, segundo dados do Alto-comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur), que já considera esta a maior crise de deslocamento externo no mundo.

A Colômbia é o principal país de destino, com mais de 1,8 milhões de refugiados recebidos, o que torna a questão venezuelana um tema sensível na sociedade, com mais de 50% dos colombianos sendo contra a regularização dos imigrantes, segundo pesquisa realizada pela 40dB para o jornal espanhol El País em maio deste ano, antes da vitória de Petro. Em seguida vem Peru, Equador, EUA e Chile.

A este contexto de uma crise de deslocamentos que não tem previsão de terminar se soma a forte crise inflacionária que esses novos líderes estão herdando e que está custando suas popularidades. Venezuelanos fogem de uma hiperinflação acima dos 100% e encontram, agora, inflações de quase dois dígitos - ou acima - em muitos dos países que chegam. Falta, porém, uma integração sobre como lidar com o somatório de crises.

Falta de consensos

O governo de Gabriel Boric, segundo analistas chilenos, quer distância de Maduro. “O governo Boric detesta profundamente o governo venezuelano”, afirma Jaime Baeza, professor da Facultad de Gobierno da Universidad de Chile. “Já durante a campanha o Boric, então candidato, se referiu à Venezuela e à Nicarágua como ditaduras. Ele não queria ter nenhum relacionamento e isso até gerou uma tensão dentro de sua coalizão, porque o Partido Comunista não gostou disso”.

Baeza ainda ressalta que a ministra de Relações Exteriores de Boric, Antonia Urrejola, foi membro da Organização dos Estados Americanos (OEA) e era encarregada de lidar com as perseguições políticas do regime nicaraguense. “Ela disse abertamente que tanto a Nicarágua quanto a Venezuela a incomodam”, afirma.

“Não estamos falando da mesma esquerda dos anos 2000, e esta nova esquerda está fazendo um cálculo político sobre a Venezuela”, explica María Isabel Puerta Riera, professora de Ciência Política e Política Internacional no Valencia College, na Flórida. “Há uma certa solidariedade implícita, por exemplo, no caso da Argentina a Venezuela continua sendo tratada como um governo legítimo. Não é o mesmo no caso de Boric e Petro. Eles estão tomando mais cuidado porque sabem que representa um alto custo político tratarem o regime venezuelano como um regime de iguais.”

O presidente chileno Gabriel Boric acena para a imprensa ao chegar para um jantar no Getty Villa durante a Cúpula das Américas em Los Angeles Foto: Jae C. Hong/AP

Porém, explica a professora, mesmo que não haja um apoio institucional desses governos com o regime de Maduro, invariavelmente haverá uma reaproximação, seja por razões econômicas seja para resolver a crise migratória. Por consequência, isso dará mais legitimidade a Nicolás Maduro em detrimento da oposição representada por Juan Guaidó, e, sem dúvidas, Maduro utilizará disso para ganhos políticos.

“Não tenho dúvidas de que Maduro vai aproveitar essa situação para dar a entender que ele tem mais aliados, como ele já disse com Petro. E apostando na vitória de Lula, ele falará em termos de crescimento qualitativo e quantitativo de sua aliança. A questão é como os países vão manejar isso”, afirma.

O desafio, porém, é como fazer com que governos tão distintos cooperem entre si no assunto. Ainda que sejam todos classificados como uma nova esquerda - com pautas e características distintas da onda dos anos 2000 - há diferenças profundas de uma liderança para outra.

Diferentemente de Petro e Boric, Alberto Fernández retirou a Argentina do Grupo de Lima, que reconhecia Juan Guaidó como presidente legítimo da Venezuela. Fernández inclusive defendeu a retomada de laços com a Venezuela em visita ao seu homólogo equatoriano, Guillermo Lasso, que é de direita. Mais recentemente, Obrador do México se recusou à comparecer à Cúpula das Américas, pois os Estados Unidos haviam excluído Venezuela, Nicarágua e Cuba. Pedro Castillo do Peru também retomou os laços rompidos.

O papel de Petro

A maior mudança nesta nova onda é a vitória de Petro na Colômbia, o primeiro esquerdista no poder do país. Durante a campanha presidencial, Petro tentou descolar sua imagem de Maduro, em um movimento para se mostrar menos radical - e se afastar do passado guerrilheiro. Mas antes mesmo de tomar posse, o colombiano conversou com o venezuelano sobre reabrir suas fronteiras, fechadas desde 2019.

Sua vitória na Colômbia é, por um lado, também uma vitória política para Maduro que finalmente terá relações mais amigáveis com o país mais próximo economicamente e com quem compartilha uma fronteira porosa. Por outro, coloca em xeque a retórica da Colômbia uribista como a “grande inimiga” da Venezuela.

Iván Duque encabeçou durante seu governo a oposição dos países da região ao regime de Maduro. Com isso, o presidente venezuelano se apoiou no discurso de que colombianos queriam derrubá-lo e até mesmo assassiná-lo. A incógnita, agora, é como ficará esse discurso, caso Petro não atenda às suas expectativas de mudanças radicais.

“É uma pergunta que nós venezuelanos estamos fazendo: qual vai ser a relação com o novo governo de Petro”, pontua Xavier Rodrigues-Franco. “A política de atuação dele quando era deputado não era a mesma quando ele era prefeito e agora vai ser presidente. Ele tinha um perfil muito mais combativo sendo a oposição e agora ele é o governo”.

A vice-presidente-eleita da Colômbia, Francia Márquez, ao lado do presidente-eleito, Gustavo Petro Foto: Luisa Gonzalez/Reuters

Nesse sentido, o cientista político vê uma oportunidade em Petro de liderar a mudança nas relações diplomáticas dos líderes sul-americanos com a Venezuela. “As lideranças de esquerda na região não sabem o que fazer com a Venezuela, e acho que Petro pode ter essa resposta. Porque de alguma forma ele é um cara que vem da esquerda, tem experiência política, sabe quais são as dificuldades envolvidas em estabelecer relações com um governo criminoso como o da Venezuela, e além disso, sabe o impacto de ter essa situação sem solução”.

“Petro tem uma oportunidade grande de gerar as condições facilitadoras de negociações reais e efetivas que possibilitem o processo de transição e podemos falar até de restauração da vigência da Constituição da Venezuela”, concorda María Elena Rodríguez, professora do Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio e pesquisadora do Brics Policy Center.

“Petro tem uma relação histórica com a Venezuela, teve em algum momento com Chávez. Então talvez o seu papel mais importante seja contribuir realmente nesse conflito venezuelano. E talvez o que todo mundo espera é que ele tenha mais coragem e influência que o governo do México, por exemplo, em liderar essas negociações”, finaliza.

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