Quando assumiu o poder, na Venezuela, em 2013, Nicolás Maduro hesitava em cortar zeros da moeda local em virtude do aumento da inflação. A ordem do dia, à época, era evitar reconhecer o descalabro econômico venezuelano. Como resultado, os venezuelanos eram obrigados a carregar maços gigantes de notas de 100 bolívares para fazer transações financeiras corriqueiras.
Com o tempo, começou a faltar papel-moeda, tamanha era a impressão de dinheiro sem lastro, carcomido pela alta dos preços. Em 2018, pela primeira vez, Maduro cedeu e cortou três zeros do bolívar. Como a inflação continuou, teve de cortar mais cinco zeros, naquele mesmo ano. E nesta quinta-feira, 22, recorreu à mesma manobra pela terceira vez. Já são 14 zeros cortados desde então.
Além do corte mais recentes, este de seis zeros, m uma novidade: a Venezuela entrará na era da moeda digital.
“A partir de 1º de outubro de 2021, o bolívar digital entrará em vigor, aplicando-se uma escala monetária que retira seis zeros à moeda nacional. Ou seja, todos os valores monetários e tudo expresso em moeda nacional serão divididos por um milhão”, diz o Banco Central Venezuelano (BCV), em nota.
A moeda digital (ou Central Bank Digital Currencies, na expressão em inglês) é mais similar a uma moeda convencional – podendo ser definida como uma extensão dela – do que a uma criptomoeda como o bitcoin, pois ela tem lastro na própria moeda. Outra diferença é que ela é custodiada por instituições financeiras – ou seja, o saldo sempre está dentro de um banco, não podendo ser trocada livremente por dois particulares – o que dificulta operações criminosas, como lavagem de dinheiro, e impede sua especulação como ativo financeiro.
O bolívar digital não é a primeira inovação monetária venezuelana. Nos últimos anos, o chavismo flertou com as criptomoedas ao lançar o petro – uma tentativa mal sucedida de driblar o bloqueio de recursos externos impostos pelas sanções americanas e europeias, supostamente com lastro nas reservas de petróleo do país. Não deu muito certo.
Outra medida polêmica adotada pelo governo venezuelano foi deixar de publicar por anos os principais índices macroeconômicos do país, para esconder a deterioração e a crise provocadas pela restrição de importações e a âncora cambial.
Inclusão
Segundo o Banco Central Venezuelano, a introdução do bolívar digital não afetará o valor da moeda. A taxa de câmbio, raiz do desequilíbrio monetário venezuelano, seguirá a mesma.
Na mesma data do lançamento do bolívar digital, começarão a circular também as novas notas impressas, nos valores de 5, 10, 20, 50 e 100 bolívares, e uma moeda de 1 bolívar. Todas elas serão cunhadas com o rosto de Simón Bolívar, um dos libertadores da América, e com uma alusão à batalha de Carabobo, momento chave da independência venezuelana.
“O objetivo é manter a inclusão de todos os venezuelanos e atender a suas necessidades de transação em todo o território nacional”, diz o BCV. Por isso, ressaltam que a entidade monetária continuará a emitir bolívar em papel-moeda.
Dolarização
No dia a dia, apesar de todos os planos, o impacto do corte de zeros deve ser minúsculo. A repulsa ao bolívar é tão grande que o país adotou uma espécie de dolarização informal. A moeda americana é a mais usada nos pagamentos à vista. É cada vez mais comum que os preços de qualquer comércio sejam refletidos em dólares.
A maioria dos pagamentos em bolívares é feita com cartão ou com transferência automática por meio de uma plataforma chamada Mobile Payment. No entanto, um dos maiores problemas que este tipo de pagamento apresenta deve-se ao precário serviço de internet no país.
Críticas
À agência de notícia Bloomberg, o economista e presidente da Datanalisis de Caracas, Luis Vicente Leon, lembrou que a manobra de cortar zeros da moeda pode ter efeito temporário, mas não soluciona os problemas que criaram a instabilidade no país.
“Remover os zeros não resolve, de jeito nenhum, o que motivou o problema”, disse. E completou: “Sem resolver o problema pela raiz, nós teremos a mesma situação em meses.”
A oposição ao chavismo também criticou a medida. “Nossa moeda cada vez vale menos. A crise se aprofunda e os venezuelanos ficam mais pobres”, escreveu o ex-candidato à Presidência venezuelana Henrique Capriles em sua conta no Twitter. “14 zeros não são uma recuperação, são a mostra da destruição econômica do regime.”
Nomeado por Juan Guaidó como encarregado pelas Relações Exteriores de seu governo autoproclamado, Julio Borges também descreveu o novo corte de zeros como um sintoma inequívoco do fracasso da política econômica chavista. “A hiperinflação seguirá galopando e, em alguns meses, esta nova reconversão terminará como as outras, em fracasso”, disse. / AFP e EFE