Após meses de negociações diplomáticas delicadas e em meio a um cenário internacional em ebulição, o presidente chinês Xi Jinping viajou aos Estados Unidos para encontrar, nesta quarta-feira, 15, seu homólogo americano Joe Biden na cúpula da Cooperação Econômica Ásia-Pacífico (APEC).
A visita, que marca o retorno do líder chinês aos EUA seis anos depois de encontrar o então presidente Donald Trump, tem o objetivo de estabilizar a conturbada relação entre ambos países — que atingiu seu maior ponto de crise em fevereiro deste ano, quando um balão espião chinês sobrevoou parte do território americano antes de ser derrubado por um caça na costa da Carolina do Sul.
No encontro de hoje, que ocorrerá em São Francisco, os líderes terão o desafio de abordar uma série de assuntos sensíveis que dividem profundamente os governos dos EUA e da China, como os atritos com Taiwan, a guerra comercial, a interferência nas eleições americanas e a influência na guerra de Israel contra Hamas. Mas de acordo com funcionários do governo Biden, a Casa Branca deve priorizar, acima de tudo, a retomada das comunicações normais entre as duas superpotências, incluindo contatos entre militares.
Para Biden, esta é a única forma de atenuar as tensões. Nesta terça-feira, ele afirmou para seus apoiadores que uma reunião bem-sucedida com Xi significaria “voltar a um curso normal de correspondência, ser capaz de pegar o telefone e falar um com o outro quando houver outra crise, ser capaz de garantir que nossos militares ainda tenham contato um com o outro”.
A expectativa do alto escalão da Casa Branca é que nesta reunião haja espaço também para negociar o apoio chinês em questões como a guerra na Ucrânia e o espalhamento do conflito árabe-israelense para outros países do Oriente Médio. A China busca reposicionar seu papel como líder do sul global e até o momento tem evitado o alinhamento direto com algum dos lados destes conflitos, mas sua influência tanto na Rússia quanto no Irã pode mudar os rumos das guerras recentes.
Relações entre os EUA e a China
O Irã é o maior financiador de grupos como o Hamas e o Hezbollah, e a Casa Branca teme um maior envolvimento do país na guerra do Israel com o grupo terrorista que domina a Faixa de Gaza. O secretário de Segurança Nacional dos EUA, Jake Sullivan, disse no início desta semana que Biden pode tentar convencer Xi de pressionar o Irã para frear a escalada do conflito na região.
“O presidente Biden vai dizer ao presidente Xi que o Irã, agindo de forma escalada e desestabilizadora que prejudica a estabilidade em todo o Oriente Médio, não é do interesse da [China] ou de qualquer outro país responsável”, disse Sullivan à imprensa. “E a [China] é claro, tem um relacionamento com o Irã, e é capaz, se quiser, de fazer essas observações diretamente ao governo iraniano.”
O porta-voz de segurança nacional dos EUA, John Kirby, disse ontem que Biden “não terá medo de confrontar quando o confronto for necessário em certas questões em que não estamos de acordo”, mas também procurará áreas para cooperar com a China.
“Eles podem ser francos e diretos um com o outro, e espero que seja esse o caso”, disse Kirby.
Tanto para Xi quanto para o presidente americano, esta reunião ocorre em um momento crucial. Faltando apenas doze meses para as eleições presidenciais nos Estados Unidos, a popularidade de Biden encontra-se em declínio, enquanto seu mandato corre o risco de ficar marcado pelas guerras em Gaza e na Ucrânia. Já do outro lado do mundo, a China vive o período mais economicamente frágil da última década, à medida que os atritos regionais aumentam e o potencial produtivo nacional fica para atrás quando comparado com outras nações como a Índia. Este cenário torna indesejável um embate entre os dois países, abrindo uma janela para soluções diplomáticas.
“Ambos os lados têm interesse em estabilizar as relações EUA-China, embora que por motivos diferentes”, disse ao Estadão o cientista político americano Scott Moore, diretor do programa de estudos estratégicos e China na Universidade da Pensilvânia. “Para os EUA, o motivo é principalmente geopolítico: com as guerras em andamento na Europa, no Oriente Médio e a violência aumentando em lugares como o Sudão e o Cáucaso, é importante colocar algumas barreiras para evitar que a concorrência com a China leve a um conflito total. É provável que os dois lados também tentem fazer algum progresso na cooperação diplomática em relação à mudança climática”, afirmou ele.
“Para a China, o maior problema é econômico. A China precisaria de um grande impulso na forma de tarifas reduzidas, maior investimento estrangeiro ou, idealmente, ambos, sem mencionar a transferência de tecnologia e outras formas de comércio e engajamento”, ponderou Moore.
O último encontro pessoal entre os líderes das maiores economias do mundo ocorreu em novembro do ano anterior, durante a cúpula do G-20, em Bali. À época, promessas de maior cooperação bilateral proporcionaram um clima efêmero de reconciliação. O comprometimento de ambas nações, contudo, foi submetido a árduas provas.
A guerra comercial iniciada por Trump em 2018 foi continuada pelo governo Biden, que adotou nos últimos meses uma série de medidas para bloquear a exportação de tecnologias avançadas de chips para impedir seu uso militar na China. Pequim não demorou em efetuar sua retaliação, ampliando as restrições comerciais sobre minerais essenciais para os EUA.
Enquanto isso, os exércitos destes países têm visto uma escalada de relações hostis após incidentes tanto no mar quanto no ar, envolvendo navios e caças no Estreito de Taiwan e no Mar do Sul da China — regiões disputadas que Pequim reivindica como parte de seu território. Trocas acaloradas de declarações marcaram a relação dos líderes de ambos países nos meses subsequentes: por um lado, Xi acusou os EUA de aspirarem conter e reprimir a China, enquanto Biden qualificou Xi como “ditador”.
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No cenário econômico a fissura entre ambos lados ficou ainda mais evidente. Mesmo à medida em que as restrições econômicas impostas por Washington se recrudesciam, no ano anterior a China realizou mais transações comerciais com nações em desenvolvimento do que com os Estados Unidos, Europa e Japão combinados. Isto se deu maioritariamente pelo aumento da presença chinesa na América Latina e na África, superando amplamente a presença americana em parcerias comerciais em países como Brasil e Argentina.
Além disso, a influência militar chinesa no hemisfério ocidental também tem se tornado outra incômodo para os EUA. Recentemente, os americanos denunciaram a existência de uma base de espionagem chinesa em solo cubano, a aproximadamente 150 quilômetros da Flórida. A Casa Branca, que teme a volta de um cenário como o da Guerra Fria, tem manifestado seu desconforto com a suposta base chinesa, cujas atividades datam, de acordo com o governo, desde pelo menos 2019. Mas Havana e Pequim negam a existência da suposta estação de espionagem.
De acordo com Lizzi C. Lee, pesquisadora afiliada do programa de Economia Chinesa no Centro de Análise da China do Asia Society Policy Institute, em antecipação à reunião desta semana, os EUA estão trabalhando para consertar o seu relacionamento com a China, priorizando o gerenciamento das diferenças em vez de buscar grandes avanços.
“O objetivo principal é evitar uma escalada na retórica e nas ações tensas, com foco específico em abordar as preocupações relacionadas às interações militares, à crise do fentanil e ao estabelecimento de barreiras [comerciais]”, disse a especialista em entrevista ao Estadão.
“Essa reunião tem uma importância significativa para o presidente Biden, especialmente considerando desafios simultâneos como a guerra russo-ucraniana e o conflito entre Israel e Hamas”, afirmou ela.
O governo chinês cortou abruptamente a comunicação militar direta com os EUA em agosto de 2022, quando a democrata e ex-presidente da Câmara dos Representantes, Nancy Pelosi, realizou uma visita oficial a Taiwan em uma clara demonstração de apoio americano ao governo de Taipei, devido ao aumento das preocupações de uma possível invasão chinesa à ilha, que tem um governo independente, mas cuja autonomia é questionada pela China.
Durante meses, os EUA ofereceram convites para reuniões entre os respectivos ministros da defesa, Li Shangfu e Lloyd Austin, com o intuito de acalmar as tensões, mas todos foram rejeitados pela China. Para Pequim, Taiwan é parte da China, e qualquer tentativa de reconhecimento oficial torna-se uma afronta direta à autoridade chinesa.
Para o mundo, o congelamento das relações entre estas potências econômicas tem um impacto profundamente negativo, com a geração de crises sistêmicas nas cadeias de produção globais — especialmente em tempos de guerra —, devido a que a China e os EUA produzem cerca de 40% dos bens e serviços do planeta juntos.
Para Lizzi C. Lee, a reunião desta semana ocorre em um novo contexto e dá indícios de que ambos países têm interesse em mudar a situação atual. Biden, então, pode pressionar para restabelecer o contato militar e garantir maior tranquilidade no Mar do Sul da China.
Neste ano, Biden mobilizou funcionários do alto escalão do seu governo para reconfigurar sua intrincada relação com a China. Em julho, por exemplo, a secretária do Tesouro dos EUA, Janet Yellen, visitou Pequim em uma viajem sigilosa, onde proferiu um discurso reconciliatório, afirmando que apesar das “discordâncias significativas” entre os dois países, os EUA não viam seu poder econômico como uma arma a ser usada contra a China.
“O presidente Biden e eu não vemos o relacionamento entre os EUA e a China como um conflito de grandes potências. Acreditamos que o mundo é grande o suficiente para que nossos dois países prosperem”, disse ela.
Em setembro, o secretário de Segurança Nacional da Casa Branca, Jake Sullivan, realizou diversas reuniões secretas com o ministro das Relações Exteriores da China, Wang Yi, em Malta, onde ambos tiveram conversas “francas, substantivas e construtivas”, em uma tentativa de comunicar a mensagem de reconciliação dos EUA.
Agora, do lado chinês, Lizzi C. Lee acredita que “Pequim pretende reconstruir a confiança dos investidores, especificamente atraindo investimentos americanos para combater a desaceleração econômica da China”, motivo que pode abrir oportunidades para discutir outros assuntos de igual importância para as superpotências.
Para a especialista, há grandes expectativas para as relações entre os EUA e a China após o encontro de Xi e Biden nesta semana, com uma possível retomada do diálogo comercial e militar, assim como a resolução “o progresso na cooperação climática, a redução da exportação de precursores de fentanil da China para o México e a manutenção de compromissos de alto nível”.
“No entanto”, explica ela, “o impacto geral depende da capacidade de ambas as nações de estabilizar seu relacionamento deteriorado e evitar uma nova escalada”. “O sucesso da reunião será medido por sua contribuição para o gerenciamento eficaz do relacionamento em meio à atual era de competição entre os EUA e a China”, comentou a especialista.
Já Scott Moore acredita que é possível esperar uma ruptura na deterioração quase constante das relações nos últimos anos e algumas medidas de boa vontade, como a expansão do número de voos entre as duas maiores economias do mundo. Mas, de acordo com ele, há limites claros na reconstrução das relações entre estes países, que não planejam abrir mão das suas respectivas posições em relação a assuntos considerados de alto interesse nacional.
“Infelizmente, no entanto, qualquer impulso na melhoria dos laços provavelmente será interrompido pela eleição presidencial dos EUA no próximo ano, e uma série de eventos intermediários, incluindo a eleição presidencial de Taiwan em janeiro, também pode complicar a melhoria das relações”, disse Moore.