NEW YORK TIMES - Os últimos cinco anos têm sido uma aula magna de política comparada, porque algo que jamais havíamos visto aconteceu ao mesmo tempo: os três líderes mais poderosos do mundo – Vladimir Putin, Xi Jinping e Donald Trump – deram passos para aferrar-se ao poder além de seus mandatos. Um deles fracassou. Dois se saíram bem. E jaz aí uma anedota que diz muito a respeito do nosso mundo atual.
Trump fracassou por uma razão muito simples: as instituições, leis e normas americanas o forçaram a entregar o poder após quatro anos de mandato – por um fio –, apesar de seu esforço para desacreditar os resultados eleitorais e de ele ter incitado apoiadores a intimidar legisladores para que eles revertessem sua derrota nas urnas. Putin e Xi se saíram melhor – até agora. Sem ser contido por instituições e normas democráticas, eles instauraram novas leis para fazer de si mesmos presidentes vitalícios.
Deus sabe que as democracias têm seus problemas, mas elas ainda têm algo que falta às autocracias: a capacidade de mudar de rumo, alternando líderes com frequência, e a capacidade de examinar e debater publicamente ideias alternativas antes de adotar um curso de ação. Esses atributos são valiosos numa época de aceleradas mudanças tecnológicas e climáticas, quando há pouca chance de que alguém com quase 70 anos – como Putin e Xi – venha a tomar decisões cada vez melhores, se isolando conforme envelhece.
No rumo da autocracia
Ainda assim, Putin subjugou sua Duma em 2020, fazendo-a eliminar o limite de seu mandato, o que lhe permite concorrer novamente à presidência em 2024 e lhe dá a chance de permanecer na presidência até 2036. Em 2018, Xi induziu seus legisladores a mudar a Constituição da China e abolir o limite de mandatos, permitindo que ele possa permanecer na presidência por toda a vida.
Deng Xiaoping impôs um limite de dois mandatos consecutivos à presidência da China, em 1982, por uma razão: evitar o surgimento de outro Mao Tsé-tung, cuja liderança autocrática e culto à personalidade colaboraram para manter a China pobre, isolada e sob um caos sanguinário. Xi atropelou essa barreira e se considera indispensável e infalível.
O desempenho de Putin na Ucrânia é um alerta feroz sobre os perigos de um presidente vitalício, que se crê indispensável e infalível. A Ucrânia é a guerra de Putin, e ele errou feio: superestimou o poder de suas Forças Armadas, a determinação dos ucranianos e se equivocou a respeito da disposição ocidental, tanto de governos quanto de empresas, em apoiar a Ucrânia.
Ou Putin ouviu besteiras de conselheiros com medo de lhe dizer a verdade ou passou a estar tão certo de sua infalibilidade que jamais chegou a questionar a si mesmo, nem preparou seu governo e sua sociedade para uma guerra econômica “sem precedentes”, aberta pelo Ocidente. Só o que sabemos com certeza é que ele baniu toda crítica e tornou impossível para os russos puni-lo nas urnas por sua insensatez.
Uma aliança arriscada
A China é um país mais sério, tirou da pobreza extrema 800 milhões de habitantes desde os anos 70. E Xi é um homem mais sério que Putin. No entanto, os perigos da autocracia têm se revelado. Xi não se mostrou disposto a fazer uma investigação séria a respeito da maneira que o coronavírus emergiu, nem compartilhou suas descobertas com o mundo, temendo que pudesse prejudicar sua liderança. Sua confiança numa estratégia de lockdowns e nas vacinas chinesas, menos eficazes do que outras contra a variante Ômicron, está pressionando a economia.
E a aposta de Xi numa aliança com a Rússia se deteriorou rapidamente. Quando os dois se encontraram, em 4 de fevereiro, na abertura dos Jogos de Inverno na China, emitiram um comunicado declarando que a amizade entre os dois países não tinha limites e não havia áreas proibidas de cooperação”.
O fato de que Putin interpretou essa amizade ilimitada como um sinal verde para invadir a Ucrânia deixou Xi atordoado e desconfortável. A China é um grande importador de petróleo, milho e trigo da Rússia e da Ucrânia – e a invasão elevou os custos dessas commodities e de outros alimentos, ao mesmo tempo que colaborou para uma baixa no mercado de ações chinês.
A invasão também forçou a China a parecer indiferente à selvageria russa, tensionando as relações de Pequim com a União Europeia, a maior parceira comercial da China. O fato de que um dos mais banais clichês em política externa esteja se revelando uma besteira me consola. Os líderes chineses e russos são sagazes e sempre jogam o xadrez da geopolítica como mestres, enquanto os americanos estúpidos só sabem jogar damas.
A roleta russa de Putin
Na verdade, parece que Putin não tem jogado xadrez, mas roleta russa – e a sorte dele acabou, após disparar um tiro certeiro no coração da economia russa. E Xi parece paralisado, incapaz de definir seu jogo. Seu coração quer se opor ao Ocidente, mas sua cabeça lhe diz que ele não aguentaria. Então, a China permanece neutra diante dos maiores crimes de guerra na Europa desde a 2.ª Guerra.
Enquanto isso, Sleepy Joe (Biden) está em seu canto brincando com Legos – juntando os bloquinhos, aliado após aliado, ligados por valores e ameaças em comum, e construindo uma coalizão para administrar a crise. Em suma, as tumultuadas democracias, com suas alternâncias de poder, estão passando a perna nos presidentes vitalícios, que precisam estrangular a dissidência.
O contraste não poderia vir em melhor hora – no momento em que a democracia tem empacado por todo lado. É necessário considerar a evolução da democracia pelo planeta desde a 2.ª Guerra como um processo com diferentes fases, segundo Larry Diamond, especialista de Stanford.
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O ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergei Lavrov, acusou o governo americano de atrapalhar as negociações com a Ucrânia
As idas e vindas da democracia
Depois da 2.ª Guerra, os EUA e seus aliados ganharam um impulso impressionante. A democracia começou a se espalhar pelo planeta, até atolar na Guerra Fria e entrar em retrocesso nos anos 60, como resultado de uma onda de golpes de Estado militares e civis na África, na Ásia e na América Latina.
Mas uma nova onda de democracia começou em meados da década de 70, após a derrocada das ditaduras em Portugal, Espanha e Grécia. Posteriormente, a queda do Muro de Berlim, em 1989, desencadeou outra onda de democracia no Leste Europeu e na Europa Central – e na Rússia.
Mas, a partir de 2006, com o enfraquecimento dos EUA por causa de duas guerras no Oriente Médio e da crise financeira de 2008 – e da estarrecedora ascensão da China – a democracia entrou em “recessão global”, disse-me Diamond. “E China e Rússia propagaram implacavelmente a narrativa de que as democracias são fracas e decadentes, moralmente e politicamente, e não conseguem realizar nada. O autoritarismo é o futuro.”
Autocratas com o filme queimado
A questão agora, disse Diamond, é a seguinte: a declaração de 4 de fevereiro, de Xi e Putin, “desvelando as razões pelas quais seus sistemas eram superiores às democracias liberais”, atesta o auge de suas autocracias? Porque uma coisa é clara, segundo Diamond. “Os recentes passos em falso de Putin e Xi estão queimando o filme do autoritarismo.”
Mas, para a onda autoritária ser revertida, duas coisas são necessárias. Uma delas é a selvageria de Putin na Ucrânia fracassar. Isso poderia fazê-lo perder poder. Certamente uma Rússia sem Putin poderia não mudar para melhor – poderia até piorar. Mas, se a Rússia mudasse para melhor, com um líder decente, o mundo inteiro ficaria melhor.
A segunda coisa é ainda mais importante: os EUA demonstrarem que são bons não apenas em forjar alianças no exterior, mas que também são capazes de construir coalizões domesticamente. Nossa capacidade de fazer isso no passado foi o que nos garantiu estima do mundo e nos tornou exemplo. Já fomos assim e podemos ser assim novamente.
Se assim for, minhas estrofes favoritas do musical Hamilton se tornarão relevantes. São do trecho em que George Washington explica para Alexander Hamilton por que ele está entregando o poder voluntariamente, em vez de concorrer ao terceiro mandato: Washington: “Se acertarmos nisso, lhes ensinaremos a dizer adeus.” Hamilton responde: “Senhor presidente, eles dirão que o senhor é fraco”. E Washington conclui: “Não, eles verão que nós somos fortes”. /TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO