Os últimos tupiniquins (A ilusão da Terra sem Males). Leia a segunda parte da reportagem de 1976


Jornal da Tarde publicou relato sobre os indígenas aculturados que viviam da coleta de caranguejos numa aldeia no Espírito Santo

Por Edmundo Leite
Atualização:

Os repórteres Marcos Faerman, Rogério Medeiros e o fotógrafo Claudinê Petrolli viajaram até uma aldeia indígena no interior do Espírito Santo em 1976 para mostrar como era a vida dos Tupiniquins que ali viviam.

O relato mostrando a descaracterização da cultura indígena tupiniquim, a pobreza e o início da chegada de grandes empreendimentos de plantação de eucaliptos para a indústria de papel rendeu a reportagem “Os últimos tupiniquins (A ilusão da Terra Sem Males)”, publicada em duas páginas no Jornal da Tarde em 30 de março de 1976.

Leia a segunda parte da reportagem abaixo. Clique aqui para reler a primeira parte:

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Página do Jornal da Tarde de 30/3/1976 de 1976 com reportagem sobre índios tupiniquins. Foto: Acervo Estadão

Jornal da Tarde - 30 de março de 1976

“Os últimos tupiniquins (A ilusão da Terra Sem Males)”

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Reportagem de Marcos Faerman e Rogério Medeiros. Fotos de Claudinê Petrolli.

Parte II

Depois de um dia difícil, os trabalhadores do lugarejo imitam os índios, dançam em círculos, cantam muito. E o tema dessa festa quase sempre é a saudade.

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Histórias, histórias do sertão, que o sertão esconde.

Os velhos Quaraí e Alexandre Cizenanda vão subindo, quietos, pela grande ladeira que leva das margens do rio até a aldeia. Cizenanda carrega uma cesta cheia de caranguejos, trabalho de um dia inteiro. É um fim de tarde no sertão. O índio Quaraí, guarani, aproxima-se de Alexandre Cizenanda, o chefe tupiniquim. Estão perto do rio e os dois ficam olhando os barcos que se aproximam rapidamente, como se tivessem motores — mas têm apenas os braços índios a impulsioná-los.

fica é a Funai Ou o “governo dos índios”

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— Boa tarde.

— Boa tarde.

Quarai (ou João) está desconfiado com os visitantes. Não sabe o que é um repórter. Para ele, um branco com máquina fotográfica é a funai. Ou o “governo dos indios”, como eles dizem. E ele não se acha em dia com a Funai, embora não admita. Este homem calado e solitário não suportou viver na reserva para onde a Funai levou seus irmãos guaranis, em Minas Gerais. Os guaranis consideram que os seus anos mais felizes foram os que viveram com os irmãos tupiniquins, aqui.

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Mas foram mandados embora, para a reserva, longe do litoral, longe da Terra sem Males que procuravam, para longe dos tupiniquins. Alguns dizem que eles eram incômodos porque reclamavam terras — enquanto os 600 tupiniquins espalhados por aí, pela região, são quietos. Os guaranis eram 39 mas “contaminavam” os tupiniquins.

Um dia, foram levados embora em um caminhão.

Bem no alto da ladeira, está o caminhão que vai levar os caranguejos para postos de venda.

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— Isto é duro... mas a terra está seca... planta e não dá... diz Cizenanda.

O dono do caminhão recolhe os caranguejos. E o caminhão, na tardinha, vai embora, no meio da poeira, com a frase que o caminhoneiro tanto gosta: — E DURO TER AMOR POR QUEM SÓ NOS TEM AMIZADE.

O dono do caminhão e o dono da venda são os homens mais importantes do lugar. E o dono da venda é casado com uma tupiniquim — o pessoal gosta dele.

Curumins na escola

A esta hora, Quaraí e Alexandre Cizenanda podem ver algumas criancinhas índias e outras que não são índias voltando para casa, depois da aula no colégio. Uma indiazinha de cinco anos, num vestido vermelho, chorou muito neste dia na aula! As professoras Maria José e Enilza mal sabiam o que fazer com ela. As professoras são novas aqui, mas dizem que estão gostando tanto destas crianças! As curumins são tão queridas! Gostaram tanto de aprender o “Atirei um pau no gato-tô, mas o gato-tô não morreu...

As professorinhas vêm para a aldeia num ônibus. São quase duas horas de viagem. Mas elas estão satisfeitas... uma outra indiazinha, a Audinéia, não foi à aula. Teve que ir com o Pai Nonato procurar caranguejos no mangue. A professora entende estas coisas. São quase cinco da tarde, e no bar do Vantuil, antigo lavrador, alguém diz que o pessoal vai bater um Congo para os visitantes.

O bar do Vantuil abre às seis da manhã e não tem hora para fechar. É o lugar que o pessoal tem para fazer as compras e falar conversa fiada, sem hora para começar ou terminar, tomando uma pinga. Índio, branco, negro, ficam todos ali, sentados nos caixotes, tirando prosa

— Tudo amigo — diz um velhote que vive no Rio de Janeiro mas que só se sente neste fim de mundo. Tudo amigo... tudo gente de trabalho. Branco, negro, indio, tudo gente de paz. E quem não for de paz... apanha!

— Tudo gente boa do sertão —diz João Alexandre, um moço ruivo, inquieto, sonhador... “Ah Jesus, um fotógrafo, como eu queria uma foto do meu bebê, uma foto de binóculo... ah Jesus, quando vier a colheita eu compro uma máquina e faço uma foto de meu bebê... e depois compro um carro e saio por este mundão de Deus... saio rodando por aí... até as terras de seu Bufão, até mais longe, mais longe... levo quem quiser ir comigo... solto no mundo, no mundo da lua, bem como eu sou...mas será que a colheita vai ser boa... há tanto eucalipto, a gente vai ter que comer eucalipto, meu Deus!

A gente vai comer eucalipto?

A praga do eucalipto começou alguns anos atrás. Antes disto, veio a praga dos jagunços. Homens armados que andaram por toda a região assustando o povo. Eram dirigidos por um major que se dizia do Sindicato do Crime. E a turma do Sindicato do Crime não brincava, matava sem vacilar, matava por em preitada. “Aindo mata” — sussurra alguém.

0 pessoal tem até medo de falar destas coisas. Muito posseiro foi enxotado de suas terras pelos jagunços de fuzil. Os jagunços rebentaram cerâmica dos tupiniquins. “Os jagunços não respeitaram nem a memória do imperador” — diz um homem. Eles destruíram o marco que dizia que o imperador do Brasil queria proteger os tupiniquins.

— Por que fizeram isto?

No Espírito Santo, ninguém prova nada. Mas o certo é que a companhia que comprou (por um preço muito, muito baixo) estas terras... que até ganhou (de graça) muita terra, teve um lucro fantástico. A multinacional de nome Aracruz Investimentos vai extrair celulose do eucalipto — e esta celulose movimentará uma imensa fábrica de papel, cinco vezes maior do que a Borregaard, de Porto Alegre.

O pessoal tem medo de falar nestas coisas, no bar do Vantuil.

O rapaz sonhador diz, porém, que podem até “enfiar ele no cubículo da cadeia de Nova Almeida que ele diz que esta história dos eucaliptos... esta história não dá... não dá... a gente vai comer eucalipto?”

Quando as terras da região foram passadas para a Aracruz, uma das coisas que se falou é que lá não havia mais índios. Foi o que disse o antigo governador do Espírito Santo que fez o negócio. Hoje, ele é diretor da Aracruz. E a Aracruz só contrata trab alhador com todos os papéis, com carteira de identidade, com carteira do trabalho. Foi uma maneira de não contratarnenhum índio. A mata boa sumiu. A mata de eucaliptos não presta. Não tem caça. Isto dizem os índios. É uma mata triste. Não tem pássaros. Isto também dizem os índios. Os índios e os outros caboclos da região.

Qual é a diferença entre um índio e qualquer outro caboclo pobre do sertão? As casas são quase iguais quando não são iguais. São as mesmas calças remendadas E a mesma falta de condições de vida. Não hámédico nem remédios, nem para uns, nem para os outros.

Tiramos dos tupiniquins a condição de tupiniquins; o antigo equilíbrio entre eles e as matas (em que até os animais podiam viver!) foi cortado. E eles passaram apenas à condição de caboclos sem terra boa, sem nada, obrigados a passar o dia inteiro na lama do mangue, para poderem ganhar uns niqueis.

Bater o Congo

Mesmo assim, quando chega um visitante qualquer com uma máquina fotográfica na mão e um sorriso, eles correm para bater o Congo. O Congo éa última manifestação de união destes homens. E o Congo está ligado ao folclore africano! Eles batem o Congo com os instrumentos que fabricam — bumbos, tam borzinhos, uma espécie de reco-reco, e cantos.

O mastro em que são colocadas imagens de santos é recolhido na mata. E erguido à frente da igreja. O padre aparece de vez em quando. Uma vez, o padre não apareceu, e como era uma festa importante, um cacique subiu, vestiu as roupas do padre e rezou — em português e latim. Alguém espiou por trás e viu que o livro de rezas estava virado de cabeça para baixo... mas a oração do cacique padre foi perfeita.

Agora, os tupiniquins não vivem como os velhos tupiniquins. Não há mais um conselho da tribo. Manda na tribo o dono do Congo. Depois quemorreu o velho Francisco, o chefe do Congo é Alexandre Cizenanda. É ele quem está apitando, apitando, chamando o pessoal para bater o Congo para os visitantes. O povinho vai chegando.

Um dos reis do Congo é seu Arlindo. Descende de negros mas não admite que alguém diga isto. Nasceu ali e se considera índio. Chama sua mulher, dona Guilhermina, e diz, batendo no peito:

— índia pura...

Bate em seu peito e grita:

— Eu sou índio puro. Puro até no cuspe!

Saudade

E sai pulando no Congo. Uma turminha já está à nossa frente, tocando, cantando. Até o Antônio, moço índio de cabelos compridos (como se fosse um Beatle!) e idéias estranhas, se aproximou. E foi bater o congo.

Antônio não vive mais na aldeia. Seus pais vivem. Antônio agora é operário, tratorista, veste calças brancas, boca larga, usa um chapeuzinho malandro, e um sapato de saltão. Antônio é goleiro de um time de futebol de Nova Almeida e por ele seus pais iam embora da aldeia. Mas os pais não querem ir embora. Estão entusiasmados porque, dizem, o governo vai dar umas terrinhas para os índios...

Um bando de crianças cercou os homens que batem o Congo. É um Congo diferente do Congo negro. Eles dançam em círculos, como os índios costumam dançar. Eles cantam em português mas sé se entende um verso, triste, entoado melancolicamente:

—Meu coração

Eu vou te lava...

Minha saudade... ‘eu vou te deixá.

A palavra que mais se entende enquanto eles cantam é “saudade”

[Leia o primeiro capítulo]

Veja também: Acervo Estadão

Os repórteres Marcos Faerman, Rogério Medeiros e o fotógrafo Claudinê Petrolli viajaram até uma aldeia indígena no interior do Espírito Santo em 1976 para mostrar como era a vida dos Tupiniquins que ali viviam.

O relato mostrando a descaracterização da cultura indígena tupiniquim, a pobreza e o início da chegada de grandes empreendimentos de plantação de eucaliptos para a indústria de papel rendeu a reportagem “Os últimos tupiniquins (A ilusão da Terra Sem Males)”, publicada em duas páginas no Jornal da Tarde em 30 de março de 1976.

Leia a segunda parte da reportagem abaixo. Clique aqui para reler a primeira parte:

Página do Jornal da Tarde de 30/3/1976 de 1976 com reportagem sobre índios tupiniquins. Foto: Acervo Estadão

Jornal da Tarde - 30 de março de 1976

“Os últimos tupiniquins (A ilusão da Terra Sem Males)”

Reportagem de Marcos Faerman e Rogério Medeiros. Fotos de Claudinê Petrolli.

Parte II

Depois de um dia difícil, os trabalhadores do lugarejo imitam os índios, dançam em círculos, cantam muito. E o tema dessa festa quase sempre é a saudade.

Histórias, histórias do sertão, que o sertão esconde.

Os velhos Quaraí e Alexandre Cizenanda vão subindo, quietos, pela grande ladeira que leva das margens do rio até a aldeia. Cizenanda carrega uma cesta cheia de caranguejos, trabalho de um dia inteiro. É um fim de tarde no sertão. O índio Quaraí, guarani, aproxima-se de Alexandre Cizenanda, o chefe tupiniquim. Estão perto do rio e os dois ficam olhando os barcos que se aproximam rapidamente, como se tivessem motores — mas têm apenas os braços índios a impulsioná-los.

fica é a Funai Ou o “governo dos índios”

— Boa tarde.

— Boa tarde.

Quarai (ou João) está desconfiado com os visitantes. Não sabe o que é um repórter. Para ele, um branco com máquina fotográfica é a funai. Ou o “governo dos indios”, como eles dizem. E ele não se acha em dia com a Funai, embora não admita. Este homem calado e solitário não suportou viver na reserva para onde a Funai levou seus irmãos guaranis, em Minas Gerais. Os guaranis consideram que os seus anos mais felizes foram os que viveram com os irmãos tupiniquins, aqui.

Mas foram mandados embora, para a reserva, longe do litoral, longe da Terra sem Males que procuravam, para longe dos tupiniquins. Alguns dizem que eles eram incômodos porque reclamavam terras — enquanto os 600 tupiniquins espalhados por aí, pela região, são quietos. Os guaranis eram 39 mas “contaminavam” os tupiniquins.

Um dia, foram levados embora em um caminhão.

Bem no alto da ladeira, está o caminhão que vai levar os caranguejos para postos de venda.

— Isto é duro... mas a terra está seca... planta e não dá... diz Cizenanda.

O dono do caminhão recolhe os caranguejos. E o caminhão, na tardinha, vai embora, no meio da poeira, com a frase que o caminhoneiro tanto gosta: — E DURO TER AMOR POR QUEM SÓ NOS TEM AMIZADE.

O dono do caminhão e o dono da venda são os homens mais importantes do lugar. E o dono da venda é casado com uma tupiniquim — o pessoal gosta dele.

Curumins na escola

A esta hora, Quaraí e Alexandre Cizenanda podem ver algumas criancinhas índias e outras que não são índias voltando para casa, depois da aula no colégio. Uma indiazinha de cinco anos, num vestido vermelho, chorou muito neste dia na aula! As professoras Maria José e Enilza mal sabiam o que fazer com ela. As professoras são novas aqui, mas dizem que estão gostando tanto destas crianças! As curumins são tão queridas! Gostaram tanto de aprender o “Atirei um pau no gato-tô, mas o gato-tô não morreu...

As professorinhas vêm para a aldeia num ônibus. São quase duas horas de viagem. Mas elas estão satisfeitas... uma outra indiazinha, a Audinéia, não foi à aula. Teve que ir com o Pai Nonato procurar caranguejos no mangue. A professora entende estas coisas. São quase cinco da tarde, e no bar do Vantuil, antigo lavrador, alguém diz que o pessoal vai bater um Congo para os visitantes.

O bar do Vantuil abre às seis da manhã e não tem hora para fechar. É o lugar que o pessoal tem para fazer as compras e falar conversa fiada, sem hora para começar ou terminar, tomando uma pinga. Índio, branco, negro, ficam todos ali, sentados nos caixotes, tirando prosa

— Tudo amigo — diz um velhote que vive no Rio de Janeiro mas que só se sente neste fim de mundo. Tudo amigo... tudo gente de trabalho. Branco, negro, indio, tudo gente de paz. E quem não for de paz... apanha!

— Tudo gente boa do sertão —diz João Alexandre, um moço ruivo, inquieto, sonhador... “Ah Jesus, um fotógrafo, como eu queria uma foto do meu bebê, uma foto de binóculo... ah Jesus, quando vier a colheita eu compro uma máquina e faço uma foto de meu bebê... e depois compro um carro e saio por este mundão de Deus... saio rodando por aí... até as terras de seu Bufão, até mais longe, mais longe... levo quem quiser ir comigo... solto no mundo, no mundo da lua, bem como eu sou...mas será que a colheita vai ser boa... há tanto eucalipto, a gente vai ter que comer eucalipto, meu Deus!

A gente vai comer eucalipto?

A praga do eucalipto começou alguns anos atrás. Antes disto, veio a praga dos jagunços. Homens armados que andaram por toda a região assustando o povo. Eram dirigidos por um major que se dizia do Sindicato do Crime. E a turma do Sindicato do Crime não brincava, matava sem vacilar, matava por em preitada. “Aindo mata” — sussurra alguém.

0 pessoal tem até medo de falar destas coisas. Muito posseiro foi enxotado de suas terras pelos jagunços de fuzil. Os jagunços rebentaram cerâmica dos tupiniquins. “Os jagunços não respeitaram nem a memória do imperador” — diz um homem. Eles destruíram o marco que dizia que o imperador do Brasil queria proteger os tupiniquins.

— Por que fizeram isto?

No Espírito Santo, ninguém prova nada. Mas o certo é que a companhia que comprou (por um preço muito, muito baixo) estas terras... que até ganhou (de graça) muita terra, teve um lucro fantástico. A multinacional de nome Aracruz Investimentos vai extrair celulose do eucalipto — e esta celulose movimentará uma imensa fábrica de papel, cinco vezes maior do que a Borregaard, de Porto Alegre.

O pessoal tem medo de falar nestas coisas, no bar do Vantuil.

O rapaz sonhador diz, porém, que podem até “enfiar ele no cubículo da cadeia de Nova Almeida que ele diz que esta história dos eucaliptos... esta história não dá... não dá... a gente vai comer eucalipto?”

Quando as terras da região foram passadas para a Aracruz, uma das coisas que se falou é que lá não havia mais índios. Foi o que disse o antigo governador do Espírito Santo que fez o negócio. Hoje, ele é diretor da Aracruz. E a Aracruz só contrata trab alhador com todos os papéis, com carteira de identidade, com carteira do trabalho. Foi uma maneira de não contratarnenhum índio. A mata boa sumiu. A mata de eucaliptos não presta. Não tem caça. Isto dizem os índios. É uma mata triste. Não tem pássaros. Isto também dizem os índios. Os índios e os outros caboclos da região.

Qual é a diferença entre um índio e qualquer outro caboclo pobre do sertão? As casas são quase iguais quando não são iguais. São as mesmas calças remendadas E a mesma falta de condições de vida. Não hámédico nem remédios, nem para uns, nem para os outros.

Tiramos dos tupiniquins a condição de tupiniquins; o antigo equilíbrio entre eles e as matas (em que até os animais podiam viver!) foi cortado. E eles passaram apenas à condição de caboclos sem terra boa, sem nada, obrigados a passar o dia inteiro na lama do mangue, para poderem ganhar uns niqueis.

Bater o Congo

Mesmo assim, quando chega um visitante qualquer com uma máquina fotográfica na mão e um sorriso, eles correm para bater o Congo. O Congo éa última manifestação de união destes homens. E o Congo está ligado ao folclore africano! Eles batem o Congo com os instrumentos que fabricam — bumbos, tam borzinhos, uma espécie de reco-reco, e cantos.

O mastro em que são colocadas imagens de santos é recolhido na mata. E erguido à frente da igreja. O padre aparece de vez em quando. Uma vez, o padre não apareceu, e como era uma festa importante, um cacique subiu, vestiu as roupas do padre e rezou — em português e latim. Alguém espiou por trás e viu que o livro de rezas estava virado de cabeça para baixo... mas a oração do cacique padre foi perfeita.

Agora, os tupiniquins não vivem como os velhos tupiniquins. Não há mais um conselho da tribo. Manda na tribo o dono do Congo. Depois quemorreu o velho Francisco, o chefe do Congo é Alexandre Cizenanda. É ele quem está apitando, apitando, chamando o pessoal para bater o Congo para os visitantes. O povinho vai chegando.

Um dos reis do Congo é seu Arlindo. Descende de negros mas não admite que alguém diga isto. Nasceu ali e se considera índio. Chama sua mulher, dona Guilhermina, e diz, batendo no peito:

— índia pura...

Bate em seu peito e grita:

— Eu sou índio puro. Puro até no cuspe!

Saudade

E sai pulando no Congo. Uma turminha já está à nossa frente, tocando, cantando. Até o Antônio, moço índio de cabelos compridos (como se fosse um Beatle!) e idéias estranhas, se aproximou. E foi bater o congo.

Antônio não vive mais na aldeia. Seus pais vivem. Antônio agora é operário, tratorista, veste calças brancas, boca larga, usa um chapeuzinho malandro, e um sapato de saltão. Antônio é goleiro de um time de futebol de Nova Almeida e por ele seus pais iam embora da aldeia. Mas os pais não querem ir embora. Estão entusiasmados porque, dizem, o governo vai dar umas terrinhas para os índios...

Um bando de crianças cercou os homens que batem o Congo. É um Congo diferente do Congo negro. Eles dançam em círculos, como os índios costumam dançar. Eles cantam em português mas sé se entende um verso, triste, entoado melancolicamente:

—Meu coração

Eu vou te lava...

Minha saudade... ‘eu vou te deixá.

A palavra que mais se entende enquanto eles cantam é “saudade”

[Leia o primeiro capítulo]

Veja também: Acervo Estadão

Os repórteres Marcos Faerman, Rogério Medeiros e o fotógrafo Claudinê Petrolli viajaram até uma aldeia indígena no interior do Espírito Santo em 1976 para mostrar como era a vida dos Tupiniquins que ali viviam.

O relato mostrando a descaracterização da cultura indígena tupiniquim, a pobreza e o início da chegada de grandes empreendimentos de plantação de eucaliptos para a indústria de papel rendeu a reportagem “Os últimos tupiniquins (A ilusão da Terra Sem Males)”, publicada em duas páginas no Jornal da Tarde em 30 de março de 1976.

Leia a segunda parte da reportagem abaixo. Clique aqui para reler a primeira parte:

Página do Jornal da Tarde de 30/3/1976 de 1976 com reportagem sobre índios tupiniquins. Foto: Acervo Estadão

Jornal da Tarde - 30 de março de 1976

“Os últimos tupiniquins (A ilusão da Terra Sem Males)”

Reportagem de Marcos Faerman e Rogério Medeiros. Fotos de Claudinê Petrolli.

Parte II

Depois de um dia difícil, os trabalhadores do lugarejo imitam os índios, dançam em círculos, cantam muito. E o tema dessa festa quase sempre é a saudade.

Histórias, histórias do sertão, que o sertão esconde.

Os velhos Quaraí e Alexandre Cizenanda vão subindo, quietos, pela grande ladeira que leva das margens do rio até a aldeia. Cizenanda carrega uma cesta cheia de caranguejos, trabalho de um dia inteiro. É um fim de tarde no sertão. O índio Quaraí, guarani, aproxima-se de Alexandre Cizenanda, o chefe tupiniquim. Estão perto do rio e os dois ficam olhando os barcos que se aproximam rapidamente, como se tivessem motores — mas têm apenas os braços índios a impulsioná-los.

fica é a Funai Ou o “governo dos índios”

— Boa tarde.

— Boa tarde.

Quarai (ou João) está desconfiado com os visitantes. Não sabe o que é um repórter. Para ele, um branco com máquina fotográfica é a funai. Ou o “governo dos indios”, como eles dizem. E ele não se acha em dia com a Funai, embora não admita. Este homem calado e solitário não suportou viver na reserva para onde a Funai levou seus irmãos guaranis, em Minas Gerais. Os guaranis consideram que os seus anos mais felizes foram os que viveram com os irmãos tupiniquins, aqui.

Mas foram mandados embora, para a reserva, longe do litoral, longe da Terra sem Males que procuravam, para longe dos tupiniquins. Alguns dizem que eles eram incômodos porque reclamavam terras — enquanto os 600 tupiniquins espalhados por aí, pela região, são quietos. Os guaranis eram 39 mas “contaminavam” os tupiniquins.

Um dia, foram levados embora em um caminhão.

Bem no alto da ladeira, está o caminhão que vai levar os caranguejos para postos de venda.

— Isto é duro... mas a terra está seca... planta e não dá... diz Cizenanda.

O dono do caminhão recolhe os caranguejos. E o caminhão, na tardinha, vai embora, no meio da poeira, com a frase que o caminhoneiro tanto gosta: — E DURO TER AMOR POR QUEM SÓ NOS TEM AMIZADE.

O dono do caminhão e o dono da venda são os homens mais importantes do lugar. E o dono da venda é casado com uma tupiniquim — o pessoal gosta dele.

Curumins na escola

A esta hora, Quaraí e Alexandre Cizenanda podem ver algumas criancinhas índias e outras que não são índias voltando para casa, depois da aula no colégio. Uma indiazinha de cinco anos, num vestido vermelho, chorou muito neste dia na aula! As professoras Maria José e Enilza mal sabiam o que fazer com ela. As professoras são novas aqui, mas dizem que estão gostando tanto destas crianças! As curumins são tão queridas! Gostaram tanto de aprender o “Atirei um pau no gato-tô, mas o gato-tô não morreu...

As professorinhas vêm para a aldeia num ônibus. São quase duas horas de viagem. Mas elas estão satisfeitas... uma outra indiazinha, a Audinéia, não foi à aula. Teve que ir com o Pai Nonato procurar caranguejos no mangue. A professora entende estas coisas. São quase cinco da tarde, e no bar do Vantuil, antigo lavrador, alguém diz que o pessoal vai bater um Congo para os visitantes.

O bar do Vantuil abre às seis da manhã e não tem hora para fechar. É o lugar que o pessoal tem para fazer as compras e falar conversa fiada, sem hora para começar ou terminar, tomando uma pinga. Índio, branco, negro, ficam todos ali, sentados nos caixotes, tirando prosa

— Tudo amigo — diz um velhote que vive no Rio de Janeiro mas que só se sente neste fim de mundo. Tudo amigo... tudo gente de trabalho. Branco, negro, indio, tudo gente de paz. E quem não for de paz... apanha!

— Tudo gente boa do sertão —diz João Alexandre, um moço ruivo, inquieto, sonhador... “Ah Jesus, um fotógrafo, como eu queria uma foto do meu bebê, uma foto de binóculo... ah Jesus, quando vier a colheita eu compro uma máquina e faço uma foto de meu bebê... e depois compro um carro e saio por este mundão de Deus... saio rodando por aí... até as terras de seu Bufão, até mais longe, mais longe... levo quem quiser ir comigo... solto no mundo, no mundo da lua, bem como eu sou...mas será que a colheita vai ser boa... há tanto eucalipto, a gente vai ter que comer eucalipto, meu Deus!

A gente vai comer eucalipto?

A praga do eucalipto começou alguns anos atrás. Antes disto, veio a praga dos jagunços. Homens armados que andaram por toda a região assustando o povo. Eram dirigidos por um major que se dizia do Sindicato do Crime. E a turma do Sindicato do Crime não brincava, matava sem vacilar, matava por em preitada. “Aindo mata” — sussurra alguém.

0 pessoal tem até medo de falar destas coisas. Muito posseiro foi enxotado de suas terras pelos jagunços de fuzil. Os jagunços rebentaram cerâmica dos tupiniquins. “Os jagunços não respeitaram nem a memória do imperador” — diz um homem. Eles destruíram o marco que dizia que o imperador do Brasil queria proteger os tupiniquins.

— Por que fizeram isto?

No Espírito Santo, ninguém prova nada. Mas o certo é que a companhia que comprou (por um preço muito, muito baixo) estas terras... que até ganhou (de graça) muita terra, teve um lucro fantástico. A multinacional de nome Aracruz Investimentos vai extrair celulose do eucalipto — e esta celulose movimentará uma imensa fábrica de papel, cinco vezes maior do que a Borregaard, de Porto Alegre.

O pessoal tem medo de falar nestas coisas, no bar do Vantuil.

O rapaz sonhador diz, porém, que podem até “enfiar ele no cubículo da cadeia de Nova Almeida que ele diz que esta história dos eucaliptos... esta história não dá... não dá... a gente vai comer eucalipto?”

Quando as terras da região foram passadas para a Aracruz, uma das coisas que se falou é que lá não havia mais índios. Foi o que disse o antigo governador do Espírito Santo que fez o negócio. Hoje, ele é diretor da Aracruz. E a Aracruz só contrata trab alhador com todos os papéis, com carteira de identidade, com carteira do trabalho. Foi uma maneira de não contratarnenhum índio. A mata boa sumiu. A mata de eucaliptos não presta. Não tem caça. Isto dizem os índios. É uma mata triste. Não tem pássaros. Isto também dizem os índios. Os índios e os outros caboclos da região.

Qual é a diferença entre um índio e qualquer outro caboclo pobre do sertão? As casas são quase iguais quando não são iguais. São as mesmas calças remendadas E a mesma falta de condições de vida. Não hámédico nem remédios, nem para uns, nem para os outros.

Tiramos dos tupiniquins a condição de tupiniquins; o antigo equilíbrio entre eles e as matas (em que até os animais podiam viver!) foi cortado. E eles passaram apenas à condição de caboclos sem terra boa, sem nada, obrigados a passar o dia inteiro na lama do mangue, para poderem ganhar uns niqueis.

Bater o Congo

Mesmo assim, quando chega um visitante qualquer com uma máquina fotográfica na mão e um sorriso, eles correm para bater o Congo. O Congo éa última manifestação de união destes homens. E o Congo está ligado ao folclore africano! Eles batem o Congo com os instrumentos que fabricam — bumbos, tam borzinhos, uma espécie de reco-reco, e cantos.

O mastro em que são colocadas imagens de santos é recolhido na mata. E erguido à frente da igreja. O padre aparece de vez em quando. Uma vez, o padre não apareceu, e como era uma festa importante, um cacique subiu, vestiu as roupas do padre e rezou — em português e latim. Alguém espiou por trás e viu que o livro de rezas estava virado de cabeça para baixo... mas a oração do cacique padre foi perfeita.

Agora, os tupiniquins não vivem como os velhos tupiniquins. Não há mais um conselho da tribo. Manda na tribo o dono do Congo. Depois quemorreu o velho Francisco, o chefe do Congo é Alexandre Cizenanda. É ele quem está apitando, apitando, chamando o pessoal para bater o Congo para os visitantes. O povinho vai chegando.

Um dos reis do Congo é seu Arlindo. Descende de negros mas não admite que alguém diga isto. Nasceu ali e se considera índio. Chama sua mulher, dona Guilhermina, e diz, batendo no peito:

— índia pura...

Bate em seu peito e grita:

— Eu sou índio puro. Puro até no cuspe!

Saudade

E sai pulando no Congo. Uma turminha já está à nossa frente, tocando, cantando. Até o Antônio, moço índio de cabelos compridos (como se fosse um Beatle!) e idéias estranhas, se aproximou. E foi bater o congo.

Antônio não vive mais na aldeia. Seus pais vivem. Antônio agora é operário, tratorista, veste calças brancas, boca larga, usa um chapeuzinho malandro, e um sapato de saltão. Antônio é goleiro de um time de futebol de Nova Almeida e por ele seus pais iam embora da aldeia. Mas os pais não querem ir embora. Estão entusiasmados porque, dizem, o governo vai dar umas terrinhas para os índios...

Um bando de crianças cercou os homens que batem o Congo. É um Congo diferente do Congo negro. Eles dançam em círculos, como os índios costumam dançar. Eles cantam em português mas sé se entende um verso, triste, entoado melancolicamente:

—Meu coração

Eu vou te lava...

Minha saudade... ‘eu vou te deixá.

A palavra que mais se entende enquanto eles cantam é “saudade”

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