A arte de ser ‘flâneur’: como vagar por cidades na companhia de autores que narraram essa exploração


Andar sem nenhum objetivo em mente a não ser seguir o som dos sinos das igrejas ou perambular por uma praça arborizada pode ser uma boa forma de conhecer lugares novos

Por Stephanie Rosenbloom

THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - Seu “primeiro cuidado deve ser ignorar o próprio sonho da pressa, andando por toda parte muito lentamente e muito ao acaso”, Henry James aconselhava aos visitantes de Perúgia, capital da região da Úmbria, na Itália.

Um autointitulado flâneur, ou andarilho ocioso, James também aplicou essa filosofia a outras cidades, vagando sem rumo pelas ruas de Roma no dia em que chegou, deixando o “acaso” ser seu guia. “Serviu-me com perfeição”, escreveu ele em “Horas Italianas”, publicado em 1909, “e me apresentou às melhores coisas”.

Às vezes, a melhor maneira de explorar uma cidade a pé é simplesmente vagar, sem nenhum objetivo em mente a não ser seguir o som dos sinos das igrejas ou perambular por uma praça arborizada. Foto: Victoria Tentler-Krylov/The New York Times
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O flâneur é um arquétipo que não surgiu em Roma, mas na Paris do século 19, que se transformava em uma cidade moderna. Charles Baudelaire descreveu esse personagem metropolitano como um “espectador apaixonado” que “entra na multidão como se fosse um imenso reservatório de energia elétrica”. O filósofo e ensaísta Walter Benjamin chamou o flâneur de pedestre com “nariz de detetive”. Como vários artistas e escritores, o pintor Edouard Manet era ele próprio um flâneur - um “homem da moda” como dizia um catálogo da exposição de 1982 para Manet and Modern Paris na National Gallery of Art em Washington, DC - que usava as ruas, jardins e cafés da cidade como suas musas.

Imagine ter tempo livre em Paris, deleitando-se com seus prazeres sensuais, passeando sozinho e sem medo. Não é de admirar que o flâneur tenha capturado imaginações, incluindo a minha, através de cidades e séculos.

Gosto de passar férias em cidades em que posso caminhar e, no espírito de James, gasto minhas primeiras horas vagando por elas. Para onde me direciono e em que momento é um jogo de azar. Posso seguir o som dos sinos da igreja, ou ir até uma praça arborizada, ou sentir o cheiro de pão quente no ar e acabar em uma padaria.

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Caminhar por uma cidade conduzido por seus sentidos, em vez de um destino, é despertar para a cidade e, possivelmente, para si mesmo. É uma oportunidade de expandir sua capacidade de se maravilhar, de descobrir e se deliciar com coisas que você poderia ter perdido se pretendesse chegar a algum lugar. “Para experienciar corretamente o flâneur”, como Franz Hessel explicou em “Walking in Berlin: A Flaneur in the Capital”, “você não pode ter nada muito particular em mente”.

Caminhar por uma cidade conduzido por seus sentidos, em vez de um destino, é despertar para a cidade e, possivelmente, para si mesmo

Em uma tarde de outubro, eu estava tentando encontrar um mausoléu no cemitério Porte Sante, em Florença, na Itália, que supostamente continha os restos mortais de C. Collodi (nascido Carlo Lorenzini), autor de As Aventuras de Pinóquio. Identificar o mausoléu tornou-se uma tarefa árdua e - para copiar Pinóquio - sinceramente, o mausoléu não foi tão intrigante quanto a caminhada que fiz depois. Sem o objetivo de caçar um destino, eu pude finalmente observar.

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Eu vaguei pelo cemitério, andando entre anjos e bustos de homens, passando por vistas panorâmicas do Duomo da Basílica de San Miniato al Monte, descendo a colina íngreme até a Ponte Santa Trinita. Atravessando a ponte, parei para olhar para a rachadura em torno do pescoço de Primavera, a estátua que representa a estação, resultado de ela ter perdido a cabeça quando os alemães em retirada explodiram a ponte no final da Segunda Guerra Mundial (a cabeça foi encontrada, numa restinga do rio Arno, em 1961).

Segui o rio em direção à Galeria Uffizi onde parei, encantada com a cena que vi abaixo. Um grupo de pessoas, algumas descalças, outras com meias listradas, tomavam sol, comiam e bebiam vinho tinto nas mesas dos cafés e liam jornais em cadeiras Adirondack em uma margem gramada do Arno. O que parecia uma fotografia de Slim Aarons era a Società Canottieri Firenze, o clube de remo de Florença, um refúgio sob a Galeria Uffizi onde, a qualquer momento, um integrante poderia entrar em um barco e deslizar para longe.

Esse tipo de passeio sem rumo leva a saborear, a encontrar alegria no momento, uma prática que alguns cientistas sociais descobriram que pode ser cultivada e pode ajudar a levar a uma vida mais gratificante. Em Savoring: A New Model of Positive Experience, os estudiosos Fred B. Bryant e Joseph Veroff descrevem saborear não como um mero prazer, mas como um processo ativo que requer presença e atenção plena. É “uma busca pelas delícias deleitáveis, quase gustativas do momento”, como eles dizem.

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Caminhar por uma cidade conduzido por seus sentidos, em vez de um destino, é despertar para a cidade e, possivelmente, para si mesmo. Foto: Victoria Tentler-Krylov/The New York Times

Ao caminhar pela cidade dessa maneira envolvente e descontraída, também podemos nos tornar mais abertos ao inesperado, às pequenas surpresas que às vezes acabam sendo a melhor parte de um dia ou de férias inteiras.

Os primeiros flâneurs eram tipicamente estudantes da modernidade, interessados em seu próprio tempo e lugar. No entanto, passear é uma maneira inegavelmente envolvente de sondar o passado de uma cidade. As pistas estão por toda parte. Às vezes, é simplesmente uma questão de ir devagar o suficiente para notar sinais e marcadores históricos. Outras vezes, um objeto ou detalhe arquitetônico que desperta seu interesse - um portão, uma gárgula - fornece um portal para outra época. Histórias de eras desaparecidas podem ser desencadeadas por uma única pedra e depois exploradas em casa por meio de livros e sites. Quando eu estava viajando por Istambul, tudo nas ruas - os carrinhos que vendiam simit, argolas de pão cobertos com sementes de gergelim; as mesas de livros no Sahaflar Carsisi, o bazar de livros usados; os degraus vertiginosos e em ruínas entre o Bósforo e os cafés de Cihangir; as casas de madeira à beira-mar chamadas yalis; os minaretes e os apelos à oração - tudo contava histórias de uma cidade fervilhante como ela é e como era.

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Estar em uma cidade grande entre tantos estranhos pode ser estimulante e perturbador. Na Paris do século 19, o anonimato da multidão e as questões de identidade alimentaram imaginações sombrias e deram origem a histórias como O Homem da Multidão de Edgar Allan Poe e O Mistério de Marie Roget, como escreve Benjamin em O Flâneur, um capítulo de Charles Baudelaire: um lírico no auge do alto capitalismo.

Hoje em dia, a maioria dos flâneurs não são bons vivants de cartola. O observador distante que assiste à transformação de Paris perante os seus olhos já não existe. Foto: Victoria Tentler-Krylov/The New York Times

Mas ficar incógnito não é apenas uma vantagem para os criminosos. É um benefício subestimado da flânerie, especialmente na era das redes sociais. Sozinho no meio da multidão, você pode fazer uma pausa de quem seus amigos e familiares esperam que você seja. Você pode ser você mesmo, ou estar “fora do palco”, para usar o termo do sociólogo Erving Goffman. Você tem espaço para seguir seu próprio ritmo, para deixar seus olhos e mente vagarem, para tropeçar em novas ideias, até mesmo em autorrealizações.

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Claro, por mais que alguém queira passear, existem todos os tipos de barreiras para fazê-lo, incluindo coisas como tempo, segurança, costumes e crenças pessoais. Virginia Woolf escreve em seu ensaio, Street Haunting: A London Adventure, publicado na Yale Review em 1927, que “o maior prazer da vida na cidade no inverno” é “perambular pelas ruas de Londres”. Mas ela lamenta que “deve-se, sempre se deve, fazer uma coisa ou outra; não é permitido simplesmente se divertir”. E então, em uma tarde de inverno, ela decide que deve comprar um lápis - o que ela prontamente admite ser um pretexto. Seu verdadeiro motivo para sair? Vagar.

Hoje em dia, a maioria dos flâneurs não são bons vivants de cartola. O observador distante que assiste à transformação de Paris perante os seus olhos já não existe. Somos do nosso tempo. Todos os tipos de pessoas hoje, incluindo aquelas para quem caminhar não é fácil ou possível, podem se considerar flâneurs e flâneuses. O que permanece do personagem privilegiado original é um certo romantismo, um ar de liberdade e uma vontade de buscar uma forma mais lenta e solta de vivenciar a cidade - nem que seja por uma tarde. Você acabará voltando ao seu hotel. Você caminhou por ruas desconhecidas e experimentou coisas novas. Se tiver sorte, você viu algo bonito ou provou algo excelente. Talvez você esteja se sentindo grato ou a alegria de viver tenha se reacendido. Você não saiu com um destino. Mas talvez você tenha finalmente chegado a algum lugar. /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times

THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - Seu “primeiro cuidado deve ser ignorar o próprio sonho da pressa, andando por toda parte muito lentamente e muito ao acaso”, Henry James aconselhava aos visitantes de Perúgia, capital da região da Úmbria, na Itália.

Um autointitulado flâneur, ou andarilho ocioso, James também aplicou essa filosofia a outras cidades, vagando sem rumo pelas ruas de Roma no dia em que chegou, deixando o “acaso” ser seu guia. “Serviu-me com perfeição”, escreveu ele em “Horas Italianas”, publicado em 1909, “e me apresentou às melhores coisas”.

Às vezes, a melhor maneira de explorar uma cidade a pé é simplesmente vagar, sem nenhum objetivo em mente a não ser seguir o som dos sinos das igrejas ou perambular por uma praça arborizada. Foto: Victoria Tentler-Krylov/The New York Times

O flâneur é um arquétipo que não surgiu em Roma, mas na Paris do século 19, que se transformava em uma cidade moderna. Charles Baudelaire descreveu esse personagem metropolitano como um “espectador apaixonado” que “entra na multidão como se fosse um imenso reservatório de energia elétrica”. O filósofo e ensaísta Walter Benjamin chamou o flâneur de pedestre com “nariz de detetive”. Como vários artistas e escritores, o pintor Edouard Manet era ele próprio um flâneur - um “homem da moda” como dizia um catálogo da exposição de 1982 para Manet and Modern Paris na National Gallery of Art em Washington, DC - que usava as ruas, jardins e cafés da cidade como suas musas.

Imagine ter tempo livre em Paris, deleitando-se com seus prazeres sensuais, passeando sozinho e sem medo. Não é de admirar que o flâneur tenha capturado imaginações, incluindo a minha, através de cidades e séculos.

Gosto de passar férias em cidades em que posso caminhar e, no espírito de James, gasto minhas primeiras horas vagando por elas. Para onde me direciono e em que momento é um jogo de azar. Posso seguir o som dos sinos da igreja, ou ir até uma praça arborizada, ou sentir o cheiro de pão quente no ar e acabar em uma padaria.

Caminhar por uma cidade conduzido por seus sentidos, em vez de um destino, é despertar para a cidade e, possivelmente, para si mesmo. É uma oportunidade de expandir sua capacidade de se maravilhar, de descobrir e se deliciar com coisas que você poderia ter perdido se pretendesse chegar a algum lugar. “Para experienciar corretamente o flâneur”, como Franz Hessel explicou em “Walking in Berlin: A Flaneur in the Capital”, “você não pode ter nada muito particular em mente”.

Caminhar por uma cidade conduzido por seus sentidos, em vez de um destino, é despertar para a cidade e, possivelmente, para si mesmo

Em uma tarde de outubro, eu estava tentando encontrar um mausoléu no cemitério Porte Sante, em Florença, na Itália, que supostamente continha os restos mortais de C. Collodi (nascido Carlo Lorenzini), autor de As Aventuras de Pinóquio. Identificar o mausoléu tornou-se uma tarefa árdua e - para copiar Pinóquio - sinceramente, o mausoléu não foi tão intrigante quanto a caminhada que fiz depois. Sem o objetivo de caçar um destino, eu pude finalmente observar.

Eu vaguei pelo cemitério, andando entre anjos e bustos de homens, passando por vistas panorâmicas do Duomo da Basílica de San Miniato al Monte, descendo a colina íngreme até a Ponte Santa Trinita. Atravessando a ponte, parei para olhar para a rachadura em torno do pescoço de Primavera, a estátua que representa a estação, resultado de ela ter perdido a cabeça quando os alemães em retirada explodiram a ponte no final da Segunda Guerra Mundial (a cabeça foi encontrada, numa restinga do rio Arno, em 1961).

Segui o rio em direção à Galeria Uffizi onde parei, encantada com a cena que vi abaixo. Um grupo de pessoas, algumas descalças, outras com meias listradas, tomavam sol, comiam e bebiam vinho tinto nas mesas dos cafés e liam jornais em cadeiras Adirondack em uma margem gramada do Arno. O que parecia uma fotografia de Slim Aarons era a Società Canottieri Firenze, o clube de remo de Florença, um refúgio sob a Galeria Uffizi onde, a qualquer momento, um integrante poderia entrar em um barco e deslizar para longe.

Esse tipo de passeio sem rumo leva a saborear, a encontrar alegria no momento, uma prática que alguns cientistas sociais descobriram que pode ser cultivada e pode ajudar a levar a uma vida mais gratificante. Em Savoring: A New Model of Positive Experience, os estudiosos Fred B. Bryant e Joseph Veroff descrevem saborear não como um mero prazer, mas como um processo ativo que requer presença e atenção plena. É “uma busca pelas delícias deleitáveis, quase gustativas do momento”, como eles dizem.

Caminhar por uma cidade conduzido por seus sentidos, em vez de um destino, é despertar para a cidade e, possivelmente, para si mesmo. Foto: Victoria Tentler-Krylov/The New York Times

Ao caminhar pela cidade dessa maneira envolvente e descontraída, também podemos nos tornar mais abertos ao inesperado, às pequenas surpresas que às vezes acabam sendo a melhor parte de um dia ou de férias inteiras.

Os primeiros flâneurs eram tipicamente estudantes da modernidade, interessados em seu próprio tempo e lugar. No entanto, passear é uma maneira inegavelmente envolvente de sondar o passado de uma cidade. As pistas estão por toda parte. Às vezes, é simplesmente uma questão de ir devagar o suficiente para notar sinais e marcadores históricos. Outras vezes, um objeto ou detalhe arquitetônico que desperta seu interesse - um portão, uma gárgula - fornece um portal para outra época. Histórias de eras desaparecidas podem ser desencadeadas por uma única pedra e depois exploradas em casa por meio de livros e sites. Quando eu estava viajando por Istambul, tudo nas ruas - os carrinhos que vendiam simit, argolas de pão cobertos com sementes de gergelim; as mesas de livros no Sahaflar Carsisi, o bazar de livros usados; os degraus vertiginosos e em ruínas entre o Bósforo e os cafés de Cihangir; as casas de madeira à beira-mar chamadas yalis; os minaretes e os apelos à oração - tudo contava histórias de uma cidade fervilhante como ela é e como era.

Estar em uma cidade grande entre tantos estranhos pode ser estimulante e perturbador. Na Paris do século 19, o anonimato da multidão e as questões de identidade alimentaram imaginações sombrias e deram origem a histórias como O Homem da Multidão de Edgar Allan Poe e O Mistério de Marie Roget, como escreve Benjamin em O Flâneur, um capítulo de Charles Baudelaire: um lírico no auge do alto capitalismo.

Hoje em dia, a maioria dos flâneurs não são bons vivants de cartola. O observador distante que assiste à transformação de Paris perante os seus olhos já não existe. Foto: Victoria Tentler-Krylov/The New York Times

Mas ficar incógnito não é apenas uma vantagem para os criminosos. É um benefício subestimado da flânerie, especialmente na era das redes sociais. Sozinho no meio da multidão, você pode fazer uma pausa de quem seus amigos e familiares esperam que você seja. Você pode ser você mesmo, ou estar “fora do palco”, para usar o termo do sociólogo Erving Goffman. Você tem espaço para seguir seu próprio ritmo, para deixar seus olhos e mente vagarem, para tropeçar em novas ideias, até mesmo em autorrealizações.

Claro, por mais que alguém queira passear, existem todos os tipos de barreiras para fazê-lo, incluindo coisas como tempo, segurança, costumes e crenças pessoais. Virginia Woolf escreve em seu ensaio, Street Haunting: A London Adventure, publicado na Yale Review em 1927, que “o maior prazer da vida na cidade no inverno” é “perambular pelas ruas de Londres”. Mas ela lamenta que “deve-se, sempre se deve, fazer uma coisa ou outra; não é permitido simplesmente se divertir”. E então, em uma tarde de inverno, ela decide que deve comprar um lápis - o que ela prontamente admite ser um pretexto. Seu verdadeiro motivo para sair? Vagar.

Hoje em dia, a maioria dos flâneurs não são bons vivants de cartola. O observador distante que assiste à transformação de Paris perante os seus olhos já não existe. Somos do nosso tempo. Todos os tipos de pessoas hoje, incluindo aquelas para quem caminhar não é fácil ou possível, podem se considerar flâneurs e flâneuses. O que permanece do personagem privilegiado original é um certo romantismo, um ar de liberdade e uma vontade de buscar uma forma mais lenta e solta de vivenciar a cidade - nem que seja por uma tarde. Você acabará voltando ao seu hotel. Você caminhou por ruas desconhecidas e experimentou coisas novas. Se tiver sorte, você viu algo bonito ou provou algo excelente. Talvez você esteja se sentindo grato ou a alegria de viver tenha se reacendido. Você não saiu com um destino. Mas talvez você tenha finalmente chegado a algum lugar. /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times

THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - Seu “primeiro cuidado deve ser ignorar o próprio sonho da pressa, andando por toda parte muito lentamente e muito ao acaso”, Henry James aconselhava aos visitantes de Perúgia, capital da região da Úmbria, na Itália.

Um autointitulado flâneur, ou andarilho ocioso, James também aplicou essa filosofia a outras cidades, vagando sem rumo pelas ruas de Roma no dia em que chegou, deixando o “acaso” ser seu guia. “Serviu-me com perfeição”, escreveu ele em “Horas Italianas”, publicado em 1909, “e me apresentou às melhores coisas”.

Às vezes, a melhor maneira de explorar uma cidade a pé é simplesmente vagar, sem nenhum objetivo em mente a não ser seguir o som dos sinos das igrejas ou perambular por uma praça arborizada. Foto: Victoria Tentler-Krylov/The New York Times

O flâneur é um arquétipo que não surgiu em Roma, mas na Paris do século 19, que se transformava em uma cidade moderna. Charles Baudelaire descreveu esse personagem metropolitano como um “espectador apaixonado” que “entra na multidão como se fosse um imenso reservatório de energia elétrica”. O filósofo e ensaísta Walter Benjamin chamou o flâneur de pedestre com “nariz de detetive”. Como vários artistas e escritores, o pintor Edouard Manet era ele próprio um flâneur - um “homem da moda” como dizia um catálogo da exposição de 1982 para Manet and Modern Paris na National Gallery of Art em Washington, DC - que usava as ruas, jardins e cafés da cidade como suas musas.

Imagine ter tempo livre em Paris, deleitando-se com seus prazeres sensuais, passeando sozinho e sem medo. Não é de admirar que o flâneur tenha capturado imaginações, incluindo a minha, através de cidades e séculos.

Gosto de passar férias em cidades em que posso caminhar e, no espírito de James, gasto minhas primeiras horas vagando por elas. Para onde me direciono e em que momento é um jogo de azar. Posso seguir o som dos sinos da igreja, ou ir até uma praça arborizada, ou sentir o cheiro de pão quente no ar e acabar em uma padaria.

Caminhar por uma cidade conduzido por seus sentidos, em vez de um destino, é despertar para a cidade e, possivelmente, para si mesmo. É uma oportunidade de expandir sua capacidade de se maravilhar, de descobrir e se deliciar com coisas que você poderia ter perdido se pretendesse chegar a algum lugar. “Para experienciar corretamente o flâneur”, como Franz Hessel explicou em “Walking in Berlin: A Flaneur in the Capital”, “você não pode ter nada muito particular em mente”.

Caminhar por uma cidade conduzido por seus sentidos, em vez de um destino, é despertar para a cidade e, possivelmente, para si mesmo

Em uma tarde de outubro, eu estava tentando encontrar um mausoléu no cemitério Porte Sante, em Florença, na Itália, que supostamente continha os restos mortais de C. Collodi (nascido Carlo Lorenzini), autor de As Aventuras de Pinóquio. Identificar o mausoléu tornou-se uma tarefa árdua e - para copiar Pinóquio - sinceramente, o mausoléu não foi tão intrigante quanto a caminhada que fiz depois. Sem o objetivo de caçar um destino, eu pude finalmente observar.

Eu vaguei pelo cemitério, andando entre anjos e bustos de homens, passando por vistas panorâmicas do Duomo da Basílica de San Miniato al Monte, descendo a colina íngreme até a Ponte Santa Trinita. Atravessando a ponte, parei para olhar para a rachadura em torno do pescoço de Primavera, a estátua que representa a estação, resultado de ela ter perdido a cabeça quando os alemães em retirada explodiram a ponte no final da Segunda Guerra Mundial (a cabeça foi encontrada, numa restinga do rio Arno, em 1961).

Segui o rio em direção à Galeria Uffizi onde parei, encantada com a cena que vi abaixo. Um grupo de pessoas, algumas descalças, outras com meias listradas, tomavam sol, comiam e bebiam vinho tinto nas mesas dos cafés e liam jornais em cadeiras Adirondack em uma margem gramada do Arno. O que parecia uma fotografia de Slim Aarons era a Società Canottieri Firenze, o clube de remo de Florença, um refúgio sob a Galeria Uffizi onde, a qualquer momento, um integrante poderia entrar em um barco e deslizar para longe.

Esse tipo de passeio sem rumo leva a saborear, a encontrar alegria no momento, uma prática que alguns cientistas sociais descobriram que pode ser cultivada e pode ajudar a levar a uma vida mais gratificante. Em Savoring: A New Model of Positive Experience, os estudiosos Fred B. Bryant e Joseph Veroff descrevem saborear não como um mero prazer, mas como um processo ativo que requer presença e atenção plena. É “uma busca pelas delícias deleitáveis, quase gustativas do momento”, como eles dizem.

Caminhar por uma cidade conduzido por seus sentidos, em vez de um destino, é despertar para a cidade e, possivelmente, para si mesmo. Foto: Victoria Tentler-Krylov/The New York Times

Ao caminhar pela cidade dessa maneira envolvente e descontraída, também podemos nos tornar mais abertos ao inesperado, às pequenas surpresas que às vezes acabam sendo a melhor parte de um dia ou de férias inteiras.

Os primeiros flâneurs eram tipicamente estudantes da modernidade, interessados em seu próprio tempo e lugar. No entanto, passear é uma maneira inegavelmente envolvente de sondar o passado de uma cidade. As pistas estão por toda parte. Às vezes, é simplesmente uma questão de ir devagar o suficiente para notar sinais e marcadores históricos. Outras vezes, um objeto ou detalhe arquitetônico que desperta seu interesse - um portão, uma gárgula - fornece um portal para outra época. Histórias de eras desaparecidas podem ser desencadeadas por uma única pedra e depois exploradas em casa por meio de livros e sites. Quando eu estava viajando por Istambul, tudo nas ruas - os carrinhos que vendiam simit, argolas de pão cobertos com sementes de gergelim; as mesas de livros no Sahaflar Carsisi, o bazar de livros usados; os degraus vertiginosos e em ruínas entre o Bósforo e os cafés de Cihangir; as casas de madeira à beira-mar chamadas yalis; os minaretes e os apelos à oração - tudo contava histórias de uma cidade fervilhante como ela é e como era.

Estar em uma cidade grande entre tantos estranhos pode ser estimulante e perturbador. Na Paris do século 19, o anonimato da multidão e as questões de identidade alimentaram imaginações sombrias e deram origem a histórias como O Homem da Multidão de Edgar Allan Poe e O Mistério de Marie Roget, como escreve Benjamin em O Flâneur, um capítulo de Charles Baudelaire: um lírico no auge do alto capitalismo.

Hoje em dia, a maioria dos flâneurs não são bons vivants de cartola. O observador distante que assiste à transformação de Paris perante os seus olhos já não existe. Foto: Victoria Tentler-Krylov/The New York Times

Mas ficar incógnito não é apenas uma vantagem para os criminosos. É um benefício subestimado da flânerie, especialmente na era das redes sociais. Sozinho no meio da multidão, você pode fazer uma pausa de quem seus amigos e familiares esperam que você seja. Você pode ser você mesmo, ou estar “fora do palco”, para usar o termo do sociólogo Erving Goffman. Você tem espaço para seguir seu próprio ritmo, para deixar seus olhos e mente vagarem, para tropeçar em novas ideias, até mesmo em autorrealizações.

Claro, por mais que alguém queira passear, existem todos os tipos de barreiras para fazê-lo, incluindo coisas como tempo, segurança, costumes e crenças pessoais. Virginia Woolf escreve em seu ensaio, Street Haunting: A London Adventure, publicado na Yale Review em 1927, que “o maior prazer da vida na cidade no inverno” é “perambular pelas ruas de Londres”. Mas ela lamenta que “deve-se, sempre se deve, fazer uma coisa ou outra; não é permitido simplesmente se divertir”. E então, em uma tarde de inverno, ela decide que deve comprar um lápis - o que ela prontamente admite ser um pretexto. Seu verdadeiro motivo para sair? Vagar.

Hoje em dia, a maioria dos flâneurs não são bons vivants de cartola. O observador distante que assiste à transformação de Paris perante os seus olhos já não existe. Somos do nosso tempo. Todos os tipos de pessoas hoje, incluindo aquelas para quem caminhar não é fácil ou possível, podem se considerar flâneurs e flâneuses. O que permanece do personagem privilegiado original é um certo romantismo, um ar de liberdade e uma vontade de buscar uma forma mais lenta e solta de vivenciar a cidade - nem que seja por uma tarde. Você acabará voltando ao seu hotel. Você caminhou por ruas desconhecidas e experimentou coisas novas. Se tiver sorte, você viu algo bonito ou provou algo excelente. Talvez você esteja se sentindo grato ou a alegria de viver tenha se reacendido. Você não saiu com um destino. Mas talvez você tenha finalmente chegado a algum lugar. /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times

THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - Seu “primeiro cuidado deve ser ignorar o próprio sonho da pressa, andando por toda parte muito lentamente e muito ao acaso”, Henry James aconselhava aos visitantes de Perúgia, capital da região da Úmbria, na Itália.

Um autointitulado flâneur, ou andarilho ocioso, James também aplicou essa filosofia a outras cidades, vagando sem rumo pelas ruas de Roma no dia em que chegou, deixando o “acaso” ser seu guia. “Serviu-me com perfeição”, escreveu ele em “Horas Italianas”, publicado em 1909, “e me apresentou às melhores coisas”.

Às vezes, a melhor maneira de explorar uma cidade a pé é simplesmente vagar, sem nenhum objetivo em mente a não ser seguir o som dos sinos das igrejas ou perambular por uma praça arborizada. Foto: Victoria Tentler-Krylov/The New York Times

O flâneur é um arquétipo que não surgiu em Roma, mas na Paris do século 19, que se transformava em uma cidade moderna. Charles Baudelaire descreveu esse personagem metropolitano como um “espectador apaixonado” que “entra na multidão como se fosse um imenso reservatório de energia elétrica”. O filósofo e ensaísta Walter Benjamin chamou o flâneur de pedestre com “nariz de detetive”. Como vários artistas e escritores, o pintor Edouard Manet era ele próprio um flâneur - um “homem da moda” como dizia um catálogo da exposição de 1982 para Manet and Modern Paris na National Gallery of Art em Washington, DC - que usava as ruas, jardins e cafés da cidade como suas musas.

Imagine ter tempo livre em Paris, deleitando-se com seus prazeres sensuais, passeando sozinho e sem medo. Não é de admirar que o flâneur tenha capturado imaginações, incluindo a minha, através de cidades e séculos.

Gosto de passar férias em cidades em que posso caminhar e, no espírito de James, gasto minhas primeiras horas vagando por elas. Para onde me direciono e em que momento é um jogo de azar. Posso seguir o som dos sinos da igreja, ou ir até uma praça arborizada, ou sentir o cheiro de pão quente no ar e acabar em uma padaria.

Caminhar por uma cidade conduzido por seus sentidos, em vez de um destino, é despertar para a cidade e, possivelmente, para si mesmo. É uma oportunidade de expandir sua capacidade de se maravilhar, de descobrir e se deliciar com coisas que você poderia ter perdido se pretendesse chegar a algum lugar. “Para experienciar corretamente o flâneur”, como Franz Hessel explicou em “Walking in Berlin: A Flaneur in the Capital”, “você não pode ter nada muito particular em mente”.

Caminhar por uma cidade conduzido por seus sentidos, em vez de um destino, é despertar para a cidade e, possivelmente, para si mesmo

Em uma tarde de outubro, eu estava tentando encontrar um mausoléu no cemitério Porte Sante, em Florença, na Itália, que supostamente continha os restos mortais de C. Collodi (nascido Carlo Lorenzini), autor de As Aventuras de Pinóquio. Identificar o mausoléu tornou-se uma tarefa árdua e - para copiar Pinóquio - sinceramente, o mausoléu não foi tão intrigante quanto a caminhada que fiz depois. Sem o objetivo de caçar um destino, eu pude finalmente observar.

Eu vaguei pelo cemitério, andando entre anjos e bustos de homens, passando por vistas panorâmicas do Duomo da Basílica de San Miniato al Monte, descendo a colina íngreme até a Ponte Santa Trinita. Atravessando a ponte, parei para olhar para a rachadura em torno do pescoço de Primavera, a estátua que representa a estação, resultado de ela ter perdido a cabeça quando os alemães em retirada explodiram a ponte no final da Segunda Guerra Mundial (a cabeça foi encontrada, numa restinga do rio Arno, em 1961).

Segui o rio em direção à Galeria Uffizi onde parei, encantada com a cena que vi abaixo. Um grupo de pessoas, algumas descalças, outras com meias listradas, tomavam sol, comiam e bebiam vinho tinto nas mesas dos cafés e liam jornais em cadeiras Adirondack em uma margem gramada do Arno. O que parecia uma fotografia de Slim Aarons era a Società Canottieri Firenze, o clube de remo de Florença, um refúgio sob a Galeria Uffizi onde, a qualquer momento, um integrante poderia entrar em um barco e deslizar para longe.

Esse tipo de passeio sem rumo leva a saborear, a encontrar alegria no momento, uma prática que alguns cientistas sociais descobriram que pode ser cultivada e pode ajudar a levar a uma vida mais gratificante. Em Savoring: A New Model of Positive Experience, os estudiosos Fred B. Bryant e Joseph Veroff descrevem saborear não como um mero prazer, mas como um processo ativo que requer presença e atenção plena. É “uma busca pelas delícias deleitáveis, quase gustativas do momento”, como eles dizem.

Caminhar por uma cidade conduzido por seus sentidos, em vez de um destino, é despertar para a cidade e, possivelmente, para si mesmo. Foto: Victoria Tentler-Krylov/The New York Times

Ao caminhar pela cidade dessa maneira envolvente e descontraída, também podemos nos tornar mais abertos ao inesperado, às pequenas surpresas que às vezes acabam sendo a melhor parte de um dia ou de férias inteiras.

Os primeiros flâneurs eram tipicamente estudantes da modernidade, interessados em seu próprio tempo e lugar. No entanto, passear é uma maneira inegavelmente envolvente de sondar o passado de uma cidade. As pistas estão por toda parte. Às vezes, é simplesmente uma questão de ir devagar o suficiente para notar sinais e marcadores históricos. Outras vezes, um objeto ou detalhe arquitetônico que desperta seu interesse - um portão, uma gárgula - fornece um portal para outra época. Histórias de eras desaparecidas podem ser desencadeadas por uma única pedra e depois exploradas em casa por meio de livros e sites. Quando eu estava viajando por Istambul, tudo nas ruas - os carrinhos que vendiam simit, argolas de pão cobertos com sementes de gergelim; as mesas de livros no Sahaflar Carsisi, o bazar de livros usados; os degraus vertiginosos e em ruínas entre o Bósforo e os cafés de Cihangir; as casas de madeira à beira-mar chamadas yalis; os minaretes e os apelos à oração - tudo contava histórias de uma cidade fervilhante como ela é e como era.

Estar em uma cidade grande entre tantos estranhos pode ser estimulante e perturbador. Na Paris do século 19, o anonimato da multidão e as questões de identidade alimentaram imaginações sombrias e deram origem a histórias como O Homem da Multidão de Edgar Allan Poe e O Mistério de Marie Roget, como escreve Benjamin em O Flâneur, um capítulo de Charles Baudelaire: um lírico no auge do alto capitalismo.

Hoje em dia, a maioria dos flâneurs não são bons vivants de cartola. O observador distante que assiste à transformação de Paris perante os seus olhos já não existe. Foto: Victoria Tentler-Krylov/The New York Times

Mas ficar incógnito não é apenas uma vantagem para os criminosos. É um benefício subestimado da flânerie, especialmente na era das redes sociais. Sozinho no meio da multidão, você pode fazer uma pausa de quem seus amigos e familiares esperam que você seja. Você pode ser você mesmo, ou estar “fora do palco”, para usar o termo do sociólogo Erving Goffman. Você tem espaço para seguir seu próprio ritmo, para deixar seus olhos e mente vagarem, para tropeçar em novas ideias, até mesmo em autorrealizações.

Claro, por mais que alguém queira passear, existem todos os tipos de barreiras para fazê-lo, incluindo coisas como tempo, segurança, costumes e crenças pessoais. Virginia Woolf escreve em seu ensaio, Street Haunting: A London Adventure, publicado na Yale Review em 1927, que “o maior prazer da vida na cidade no inverno” é “perambular pelas ruas de Londres”. Mas ela lamenta que “deve-se, sempre se deve, fazer uma coisa ou outra; não é permitido simplesmente se divertir”. E então, em uma tarde de inverno, ela decide que deve comprar um lápis - o que ela prontamente admite ser um pretexto. Seu verdadeiro motivo para sair? Vagar.

Hoje em dia, a maioria dos flâneurs não são bons vivants de cartola. O observador distante que assiste à transformação de Paris perante os seus olhos já não existe. Somos do nosso tempo. Todos os tipos de pessoas hoje, incluindo aquelas para quem caminhar não é fácil ou possível, podem se considerar flâneurs e flâneuses. O que permanece do personagem privilegiado original é um certo romantismo, um ar de liberdade e uma vontade de buscar uma forma mais lenta e solta de vivenciar a cidade - nem que seja por uma tarde. Você acabará voltando ao seu hotel. Você caminhou por ruas desconhecidas e experimentou coisas novas. Se tiver sorte, você viu algo bonito ou provou algo excelente. Talvez você esteja se sentindo grato ou a alegria de viver tenha se reacendido. Você não saiu com um destino. Mas talvez você tenha finalmente chegado a algum lugar. /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

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THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - Seu “primeiro cuidado deve ser ignorar o próprio sonho da pressa, andando por toda parte muito lentamente e muito ao acaso”, Henry James aconselhava aos visitantes de Perúgia, capital da região da Úmbria, na Itália.

Um autointitulado flâneur, ou andarilho ocioso, James também aplicou essa filosofia a outras cidades, vagando sem rumo pelas ruas de Roma no dia em que chegou, deixando o “acaso” ser seu guia. “Serviu-me com perfeição”, escreveu ele em “Horas Italianas”, publicado em 1909, “e me apresentou às melhores coisas”.

Às vezes, a melhor maneira de explorar uma cidade a pé é simplesmente vagar, sem nenhum objetivo em mente a não ser seguir o som dos sinos das igrejas ou perambular por uma praça arborizada. Foto: Victoria Tentler-Krylov/The New York Times

O flâneur é um arquétipo que não surgiu em Roma, mas na Paris do século 19, que se transformava em uma cidade moderna. Charles Baudelaire descreveu esse personagem metropolitano como um “espectador apaixonado” que “entra na multidão como se fosse um imenso reservatório de energia elétrica”. O filósofo e ensaísta Walter Benjamin chamou o flâneur de pedestre com “nariz de detetive”. Como vários artistas e escritores, o pintor Edouard Manet era ele próprio um flâneur - um “homem da moda” como dizia um catálogo da exposição de 1982 para Manet and Modern Paris na National Gallery of Art em Washington, DC - que usava as ruas, jardins e cafés da cidade como suas musas.

Imagine ter tempo livre em Paris, deleitando-se com seus prazeres sensuais, passeando sozinho e sem medo. Não é de admirar que o flâneur tenha capturado imaginações, incluindo a minha, através de cidades e séculos.

Gosto de passar férias em cidades em que posso caminhar e, no espírito de James, gasto minhas primeiras horas vagando por elas. Para onde me direciono e em que momento é um jogo de azar. Posso seguir o som dos sinos da igreja, ou ir até uma praça arborizada, ou sentir o cheiro de pão quente no ar e acabar em uma padaria.

Caminhar por uma cidade conduzido por seus sentidos, em vez de um destino, é despertar para a cidade e, possivelmente, para si mesmo. É uma oportunidade de expandir sua capacidade de se maravilhar, de descobrir e se deliciar com coisas que você poderia ter perdido se pretendesse chegar a algum lugar. “Para experienciar corretamente o flâneur”, como Franz Hessel explicou em “Walking in Berlin: A Flaneur in the Capital”, “você não pode ter nada muito particular em mente”.

Caminhar por uma cidade conduzido por seus sentidos, em vez de um destino, é despertar para a cidade e, possivelmente, para si mesmo

Em uma tarde de outubro, eu estava tentando encontrar um mausoléu no cemitério Porte Sante, em Florença, na Itália, que supostamente continha os restos mortais de C. Collodi (nascido Carlo Lorenzini), autor de As Aventuras de Pinóquio. Identificar o mausoléu tornou-se uma tarefa árdua e - para copiar Pinóquio - sinceramente, o mausoléu não foi tão intrigante quanto a caminhada que fiz depois. Sem o objetivo de caçar um destino, eu pude finalmente observar.

Eu vaguei pelo cemitério, andando entre anjos e bustos de homens, passando por vistas panorâmicas do Duomo da Basílica de San Miniato al Monte, descendo a colina íngreme até a Ponte Santa Trinita. Atravessando a ponte, parei para olhar para a rachadura em torno do pescoço de Primavera, a estátua que representa a estação, resultado de ela ter perdido a cabeça quando os alemães em retirada explodiram a ponte no final da Segunda Guerra Mundial (a cabeça foi encontrada, numa restinga do rio Arno, em 1961).

Segui o rio em direção à Galeria Uffizi onde parei, encantada com a cena que vi abaixo. Um grupo de pessoas, algumas descalças, outras com meias listradas, tomavam sol, comiam e bebiam vinho tinto nas mesas dos cafés e liam jornais em cadeiras Adirondack em uma margem gramada do Arno. O que parecia uma fotografia de Slim Aarons era a Società Canottieri Firenze, o clube de remo de Florença, um refúgio sob a Galeria Uffizi onde, a qualquer momento, um integrante poderia entrar em um barco e deslizar para longe.

Esse tipo de passeio sem rumo leva a saborear, a encontrar alegria no momento, uma prática que alguns cientistas sociais descobriram que pode ser cultivada e pode ajudar a levar a uma vida mais gratificante. Em Savoring: A New Model of Positive Experience, os estudiosos Fred B. Bryant e Joseph Veroff descrevem saborear não como um mero prazer, mas como um processo ativo que requer presença e atenção plena. É “uma busca pelas delícias deleitáveis, quase gustativas do momento”, como eles dizem.

Caminhar por uma cidade conduzido por seus sentidos, em vez de um destino, é despertar para a cidade e, possivelmente, para si mesmo. Foto: Victoria Tentler-Krylov/The New York Times

Ao caminhar pela cidade dessa maneira envolvente e descontraída, também podemos nos tornar mais abertos ao inesperado, às pequenas surpresas que às vezes acabam sendo a melhor parte de um dia ou de férias inteiras.

Os primeiros flâneurs eram tipicamente estudantes da modernidade, interessados em seu próprio tempo e lugar. No entanto, passear é uma maneira inegavelmente envolvente de sondar o passado de uma cidade. As pistas estão por toda parte. Às vezes, é simplesmente uma questão de ir devagar o suficiente para notar sinais e marcadores históricos. Outras vezes, um objeto ou detalhe arquitetônico que desperta seu interesse - um portão, uma gárgula - fornece um portal para outra época. Histórias de eras desaparecidas podem ser desencadeadas por uma única pedra e depois exploradas em casa por meio de livros e sites. Quando eu estava viajando por Istambul, tudo nas ruas - os carrinhos que vendiam simit, argolas de pão cobertos com sementes de gergelim; as mesas de livros no Sahaflar Carsisi, o bazar de livros usados; os degraus vertiginosos e em ruínas entre o Bósforo e os cafés de Cihangir; as casas de madeira à beira-mar chamadas yalis; os minaretes e os apelos à oração - tudo contava histórias de uma cidade fervilhante como ela é e como era.

Estar em uma cidade grande entre tantos estranhos pode ser estimulante e perturbador. Na Paris do século 19, o anonimato da multidão e as questões de identidade alimentaram imaginações sombrias e deram origem a histórias como O Homem da Multidão de Edgar Allan Poe e O Mistério de Marie Roget, como escreve Benjamin em O Flâneur, um capítulo de Charles Baudelaire: um lírico no auge do alto capitalismo.

Hoje em dia, a maioria dos flâneurs não são bons vivants de cartola. O observador distante que assiste à transformação de Paris perante os seus olhos já não existe. Foto: Victoria Tentler-Krylov/The New York Times

Mas ficar incógnito não é apenas uma vantagem para os criminosos. É um benefício subestimado da flânerie, especialmente na era das redes sociais. Sozinho no meio da multidão, você pode fazer uma pausa de quem seus amigos e familiares esperam que você seja. Você pode ser você mesmo, ou estar “fora do palco”, para usar o termo do sociólogo Erving Goffman. Você tem espaço para seguir seu próprio ritmo, para deixar seus olhos e mente vagarem, para tropeçar em novas ideias, até mesmo em autorrealizações.

Claro, por mais que alguém queira passear, existem todos os tipos de barreiras para fazê-lo, incluindo coisas como tempo, segurança, costumes e crenças pessoais. Virginia Woolf escreve em seu ensaio, Street Haunting: A London Adventure, publicado na Yale Review em 1927, que “o maior prazer da vida na cidade no inverno” é “perambular pelas ruas de Londres”. Mas ela lamenta que “deve-se, sempre se deve, fazer uma coisa ou outra; não é permitido simplesmente se divertir”. E então, em uma tarde de inverno, ela decide que deve comprar um lápis - o que ela prontamente admite ser um pretexto. Seu verdadeiro motivo para sair? Vagar.

Hoje em dia, a maioria dos flâneurs não são bons vivants de cartola. O observador distante que assiste à transformação de Paris perante os seus olhos já não existe. Somos do nosso tempo. Todos os tipos de pessoas hoje, incluindo aquelas para quem caminhar não é fácil ou possível, podem se considerar flâneurs e flâneuses. O que permanece do personagem privilegiado original é um certo romantismo, um ar de liberdade e uma vontade de buscar uma forma mais lenta e solta de vivenciar a cidade - nem que seja por uma tarde. Você acabará voltando ao seu hotel. Você caminhou por ruas desconhecidas e experimentou coisas novas. Se tiver sorte, você viu algo bonito ou provou algo excelente. Talvez você esteja se sentindo grato ou a alegria de viver tenha se reacendido. Você não saiu com um destino. Mas talvez você tenha finalmente chegado a algum lugar. /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

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