SÃO PAULO - Vale a pena percorrer um longo caminho em busca da grandeza. E grande é a mostra “Histórias Afro-Atlânticas”. Com 450 obras de mais de 200 artistas espalhadas em dois museus, é um tesouro hemisférico, uma nova versão de narrativas conhecidas, e, item por item, uma das mostras mais fascinantes que eu tive oportunidade de ver em vários anos.
O momento escolhido para a sua realização, para melhor ou para pior, é perfeito. Na campanha para as eleições, o candidato populista de direita Jair Bolsonaro, favorito, não esconde a sua hostilidade em relação à comunidade afro-brasileira. Ele definiu os atuais imigrantes do Haiti, da África e do Oriente Médio como “a escória da humanidade”. A mostra, que se concentra nas culturas dinâmicas do Novo Mundo de influência africana que emergiram de três séculos de escravidão europeia, abre uma visão diametralmente oposta.
A história da diáspora africana para o Ocidente foi contada inúmeras vezes, mas nunca, pela minha experiência, com este fôlego e equilíbrio geográfico. O comércio europeu de corpos negros chegou à América do Sul no início do século 17, e durou mais do que em outros países. Na época em que a escravidão foi oficialmente banida no Brasil, em 1888 - a mostra coincide com o 130º aniversário deste evento - o país havia absorvido mais de 40% das cerca de 11 milhões de pessoas arrancadas da África. Hoje, ela abriga a maior população negra do mundo fora da Nigéria.
Instalada no Museu de Arte de São Paulo, o MASP, e no pequeno Instituto Tomie Ohtake, a mostra está dividida em oito seções temáticas. O material afro-brasileiro predomina. E está generosamente mesclado a obras, antigas e novas, de outras partes da América do Sul, Caribe, América do Norte, Europa e da própria África.
São numerosas as imagens de barcos. Artista contemporânea de São Paulo, Rosana Paulino incorpora diagramas do século 18 de interiores de navios negreiros em um tecido suspenso. Em uma peça que cobre uma parede de madeira, um veterano artista local, Emanoel Araújo, mostra um navio de um formato meio abstrato sugerindo um homem acorrentado e um deus africano.
E na impressionante peça de José Alves de Olinda, no Instituto Tomie Ohtake, os deuses tomaram conta. Figuras de divindades iorubá, armadas e alertas, estão perfiladas no convés da miniatura de um navio negreiro. Elas são a tripulação que guia a embarcação.
Quase todas as mais de 60 imagens de pessoas negras, em uma seção da mostra chamada “Retratos”, têm um efeito hipnotizante. Alguns modelos parecem presos a convenções europeias. Dom Miguel de Castro, um enviado negro do reino africano do Congo à corte holandesa, olha com ar de tolerância para o espectador debaixo do seu absurdo chapéu à la Rembrandt. Quatro estudos a óleo de homens pretos de Theodore Gericault são maravilhosos, segundo todo e qualquer padrão formal. Mas também são perturbadores. Todos, com a exceção de um dos modelos, foram escolhidos como integrantes carregados de emoção de um drama romântico francês.
Um grande quadro do século 19, intitulado “Mulher da Bahia”, contrasta com tudo isto. Nós não sabemos quem é a pessoa retratada, ou quem a pintou, ou quando (acredita-se que ao redor de 1850) Mas, de luvas brancas, vestido azul marinho e correntes com contas de ouro, ela é uma presença autônoma.
Talvez tenha sido uma escrava liberta; é também uma rainha.
No contexto deste momento conturbado em razão da questão racial no Brasil, ela é uma declaração política em si. Muitas imagens da mostra são assim: um quadro de João de Deus Nascimento que, em 1798, liderou uma rebelião de negros exigindo o fim da escravidão e do governo português; o outro é o de uma mulher conhecida apenas como Zeferina que, trazida de Angola para o Brasil, criou quilombo na Bahia.
A própria premissa das “Histórias afro-Atlânticas” - segundo a qual toda cultura é em certo grau uma cultura de imigrantes - é inaceitável para Bolsonaro e seus correligionários. E pelo menos uma obra da mostra, do artista afro-americano Hank Willis Thomas, de Nova York, poderia confirmar os seus mais profundos temores. Intitulado “A Place to Call Home”, é um mapa do tamanho de uma parede em silhueta negra do Hemisfério Ocidental com o continente sul-americano substituído pela África.