A literatura fornece uma saída para a vida revirada dos refugiados


Atual fluxo de refugiados da Ucrânia é um lembrete de quanto da literatura é alimentada por essas crises e suas consequências

Por Dwight Garner

THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - Perseguidos pelos exércitos do presidente russo Vladimir Putin, um tubarão para todas as estações, os refugiados estão entrando na Europa em um ritmo nunca visto desde a Segunda Guerra Mundial, segundo as Nações Unidas. Nunca pareceu tão verdadeiro, como Don DeLillo escreveu em Zero K, seu romance de 2016, que “metade do mundo está refazendo suas cozinhas; a outra metade está morrendo de fome.” A metade faminta, quase sempre, está fugindo.

Edward Said chamou o século 20 de “a era do refugiado, da pessoa deslocada, da imigração em massa”. A crise na Ucrânia nos lembra que no século 21 não foi diferente. Postos de controle, abrigos antibombas, latrinas abertas, crianças nascidas no metrô, insônia, exaustão, exposição, atrasos e morte súbita: as notícias são chocantes e profundamente familiares, um lembrete de quantas vezes o êxodo em massa ocorreu na história e um lembrete de que a história em si é, como Clive James percebeu, “a história de tudo que não precisava ter sido assim”.

Refugiados que fogem da invasão russa da Ucrânia esperam horas para embarcar em um trem para a Polônia Foto: Kai Pfaffenbach/Reuters
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Desde o início, os escritores procuraram capturar a experiência do forasteiro, do exilado, do viajante sedento, do errante, do migrante. Ovídio escreveu as cartas em sua Tristia após seu banimento de Roma. Em Crime e Castigo, um homem desesperado pergunta: “Você entende o que significa não ter absolutamente para onde ir?” Não estou aqui para sugerir que a leitura necessariamente nos torna melhores, mais morais. Os nazistas também gostavam de Dostoiévski. Mas Joyce Carol Oates certamente estava certa quando escreveu: “Ler é o único meio pelo qual deslizamos, involuntariamente, muitas vezes impotentes, para a pele de outro, a voz de outro, a alma de outro”.

A notícia implacavelmente sombria é um lembrete do quanto a literatura é alimentada por crises de migração e suas consequências, e como os escritores tentaram capturar a textura de vidas reviradas.

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Uma das razões pelas quais as histórias da coleção postumamente publicada de Anthony Veasna So, Afterpartys (2021), chegaram com tanta força é que elas destacaram como o exílio e o trauma dividem permanentemente as gerações. Assim escreveu sobre famílias cambojanas americanas no Vale Central da Califórnia. Pais imigrantes e filhos nativos olhavam um para o outro como através de um vidro à prova de balas. Uma jovem diz: “Quarenta anos atrás, nossos pais sobreviveram a Pol Pot, e agora, o que diabos estamos fazendo? Obcecados pelos favores do casamento? Desperdiçando centenas de dólares para fazer nosso cabelo?”

No romance de Viet Thanh Nguyen The Committed (2021), a sequência de seu romance vencedor do Prêmio Pulitzer, O Simpatizante (2015), há uma angustiante jornada de barco enquanto o narrador foge do Vietnã para a França. Ele pensa consigo mesmo: se eu sou uma pessoa de barco, então também eram os peregrinos ingleses que vieram para os Estados Unidos no Mayflower. Os peregrinos tiveram sorte em suas relações públicas, continua. Não havia câmeras de vídeo para capturá-los, magros, atordoados e cheios de piolhos, tropeçando nas ondas. Em vez disso, os pintores românticos glorificaram essa diáspora em óleos.

O fato de a crise atual estar se espalhando por todo Leste Europeu traz à mente as migrações da Segunda Guerra Mundial e a literatura sobre essas migrações. Foi apontado, mais de uma vez, que os países ocidentais talvez sejam mais simpáticos aos refugiados ucranianos porque eles se parecem mais com seus próprios cidadãos.

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Um militar ajuda uma idosa a deixar um prédio residencial destruído após um bombardeio na cidade de Kharkiv, no leste da Ucrânia Foto: VASYL ZHLOBSKY

Se for assim, também é verdade que esta crise lembrou ao Ocidente, e a quase todo mundo, como estamos com saudades de coragem e honra. Uma longa cadeia de normas entrou em colapso; o fundo moral parece ter desaparecido do mundo.

De alguma forma, importa que o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, seja um ex-comediante. O escritor tcheco Milan Kundera sempre enfatizou, em sua ficção e em outros lugares, a importância do humor sardônico e irreverente como traço salvador humano e até mesmo político. Quando alguém não tem isso, como Putin e Donald Trump, é aí que a preocupação começa.

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“Aprendi o valor do humor durante a época do terror stalinista”, disse Kundera certa vez. “Eu tinha 20 anos na época. Eu sempre conseguia reconhecer uma pessoa que não era stalinista, uma pessoa que eu não precisava temer, pelo jeito que ela sorria. O senso de humor era um sinal confiável de reconhecimento. Desde então, tenho sentido medo de um mundo que está perdendo o senso de humor.”

Christopher Hitchens, em seu livro de memórias Hitch-22, disse algo semelhante. A fatwa contra seu amigo Salman Rushdie cristalizou seus próprios valores, e são aqueles que qualquer sociedade liberal deveria valorizar: “Na coluna do ódio: ditadura, religião, estupidez, demagogia, censura, bullying e intimidação. Na coluna do amor: literatura, ironia, humor, o indivíduo e a defesa da liberdade de expressão. Além, é claro, da amizade.”

Observar a bravura do povo ucraniano nos faz pensar como suportaríamos circunstâncias semelhantes. Todos gostaríamos de ser George Plimpton, ajudando a enfrentar Sirhan Sirhan.

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Como suportaríamos? Uma resposta chega, de todos os lugares, na romantização de Quentin Tarantino de Era uma vez em Hollywood. Observando o ex-presidente americano e alguns canais de notícias flertando com Putin, me lembrei deste pedaço do romance de Tarantino:

“Cliff nunca se perguntou o que os americanos fariam se os russos, os nazistas, os japoneses, os mexicanos, os vikings ou Alexandre, o Grande, ocupassem os Estados Unidos pela força. Ele sabia o que os americanos fariam. Eles (palavrão) suas calças e chamariam os (palavrão) policiais. E quando percebessem que a polícia não só não poderia ajudá-los, mas também estava trabalhando em nome da ocupação, após um breve período de desespero, eles entrariam na linha.”

As ogivas nucleares de Putin estão em alerta de gatilho. Se sua política é do tipo “vamos demolir o governo”, talvez este seja o momento pelo qual você anseia, para os nascidos de novo, um momento de duplo arrebatamento. /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

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The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times

THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - Perseguidos pelos exércitos do presidente russo Vladimir Putin, um tubarão para todas as estações, os refugiados estão entrando na Europa em um ritmo nunca visto desde a Segunda Guerra Mundial, segundo as Nações Unidas. Nunca pareceu tão verdadeiro, como Don DeLillo escreveu em Zero K, seu romance de 2016, que “metade do mundo está refazendo suas cozinhas; a outra metade está morrendo de fome.” A metade faminta, quase sempre, está fugindo.

Edward Said chamou o século 20 de “a era do refugiado, da pessoa deslocada, da imigração em massa”. A crise na Ucrânia nos lembra que no século 21 não foi diferente. Postos de controle, abrigos antibombas, latrinas abertas, crianças nascidas no metrô, insônia, exaustão, exposição, atrasos e morte súbita: as notícias são chocantes e profundamente familiares, um lembrete de quantas vezes o êxodo em massa ocorreu na história e um lembrete de que a história em si é, como Clive James percebeu, “a história de tudo que não precisava ter sido assim”.

Refugiados que fogem da invasão russa da Ucrânia esperam horas para embarcar em um trem para a Polônia Foto: Kai Pfaffenbach/Reuters

Desde o início, os escritores procuraram capturar a experiência do forasteiro, do exilado, do viajante sedento, do errante, do migrante. Ovídio escreveu as cartas em sua Tristia após seu banimento de Roma. Em Crime e Castigo, um homem desesperado pergunta: “Você entende o que significa não ter absolutamente para onde ir?” Não estou aqui para sugerir que a leitura necessariamente nos torna melhores, mais morais. Os nazistas também gostavam de Dostoiévski. Mas Joyce Carol Oates certamente estava certa quando escreveu: “Ler é o único meio pelo qual deslizamos, involuntariamente, muitas vezes impotentes, para a pele de outro, a voz de outro, a alma de outro”.

A notícia implacavelmente sombria é um lembrete do quanto a literatura é alimentada por crises de migração e suas consequências, e como os escritores tentaram capturar a textura de vidas reviradas.

Uma das razões pelas quais as histórias da coleção postumamente publicada de Anthony Veasna So, Afterpartys (2021), chegaram com tanta força é que elas destacaram como o exílio e o trauma dividem permanentemente as gerações. Assim escreveu sobre famílias cambojanas americanas no Vale Central da Califórnia. Pais imigrantes e filhos nativos olhavam um para o outro como através de um vidro à prova de balas. Uma jovem diz: “Quarenta anos atrás, nossos pais sobreviveram a Pol Pot, e agora, o que diabos estamos fazendo? Obcecados pelos favores do casamento? Desperdiçando centenas de dólares para fazer nosso cabelo?”

No romance de Viet Thanh Nguyen The Committed (2021), a sequência de seu romance vencedor do Prêmio Pulitzer, O Simpatizante (2015), há uma angustiante jornada de barco enquanto o narrador foge do Vietnã para a França. Ele pensa consigo mesmo: se eu sou uma pessoa de barco, então também eram os peregrinos ingleses que vieram para os Estados Unidos no Mayflower. Os peregrinos tiveram sorte em suas relações públicas, continua. Não havia câmeras de vídeo para capturá-los, magros, atordoados e cheios de piolhos, tropeçando nas ondas. Em vez disso, os pintores românticos glorificaram essa diáspora em óleos.

O fato de a crise atual estar se espalhando por todo Leste Europeu traz à mente as migrações da Segunda Guerra Mundial e a literatura sobre essas migrações. Foi apontado, mais de uma vez, que os países ocidentais talvez sejam mais simpáticos aos refugiados ucranianos porque eles se parecem mais com seus próprios cidadãos.

Um militar ajuda uma idosa a deixar um prédio residencial destruído após um bombardeio na cidade de Kharkiv, no leste da Ucrânia Foto: VASYL ZHLOBSKY

Se for assim, também é verdade que esta crise lembrou ao Ocidente, e a quase todo mundo, como estamos com saudades de coragem e honra. Uma longa cadeia de normas entrou em colapso; o fundo moral parece ter desaparecido do mundo.

De alguma forma, importa que o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, seja um ex-comediante. O escritor tcheco Milan Kundera sempre enfatizou, em sua ficção e em outros lugares, a importância do humor sardônico e irreverente como traço salvador humano e até mesmo político. Quando alguém não tem isso, como Putin e Donald Trump, é aí que a preocupação começa.

“Aprendi o valor do humor durante a época do terror stalinista”, disse Kundera certa vez. “Eu tinha 20 anos na época. Eu sempre conseguia reconhecer uma pessoa que não era stalinista, uma pessoa que eu não precisava temer, pelo jeito que ela sorria. O senso de humor era um sinal confiável de reconhecimento. Desde então, tenho sentido medo de um mundo que está perdendo o senso de humor.”

Christopher Hitchens, em seu livro de memórias Hitch-22, disse algo semelhante. A fatwa contra seu amigo Salman Rushdie cristalizou seus próprios valores, e são aqueles que qualquer sociedade liberal deveria valorizar: “Na coluna do ódio: ditadura, religião, estupidez, demagogia, censura, bullying e intimidação. Na coluna do amor: literatura, ironia, humor, o indivíduo e a defesa da liberdade de expressão. Além, é claro, da amizade.”

Observar a bravura do povo ucraniano nos faz pensar como suportaríamos circunstâncias semelhantes. Todos gostaríamos de ser George Plimpton, ajudando a enfrentar Sirhan Sirhan.

Como suportaríamos? Uma resposta chega, de todos os lugares, na romantização de Quentin Tarantino de Era uma vez em Hollywood. Observando o ex-presidente americano e alguns canais de notícias flertando com Putin, me lembrei deste pedaço do romance de Tarantino:

“Cliff nunca se perguntou o que os americanos fariam se os russos, os nazistas, os japoneses, os mexicanos, os vikings ou Alexandre, o Grande, ocupassem os Estados Unidos pela força. Ele sabia o que os americanos fariam. Eles (palavrão) suas calças e chamariam os (palavrão) policiais. E quando percebessem que a polícia não só não poderia ajudá-los, mas também estava trabalhando em nome da ocupação, após um breve período de desespero, eles entrariam na linha.”

As ogivas nucleares de Putin estão em alerta de gatilho. Se sua política é do tipo “vamos demolir o governo”, talvez este seja o momento pelo qual você anseia, para os nascidos de novo, um momento de duplo arrebatamento. /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times

THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - Perseguidos pelos exércitos do presidente russo Vladimir Putin, um tubarão para todas as estações, os refugiados estão entrando na Europa em um ritmo nunca visto desde a Segunda Guerra Mundial, segundo as Nações Unidas. Nunca pareceu tão verdadeiro, como Don DeLillo escreveu em Zero K, seu romance de 2016, que “metade do mundo está refazendo suas cozinhas; a outra metade está morrendo de fome.” A metade faminta, quase sempre, está fugindo.

Edward Said chamou o século 20 de “a era do refugiado, da pessoa deslocada, da imigração em massa”. A crise na Ucrânia nos lembra que no século 21 não foi diferente. Postos de controle, abrigos antibombas, latrinas abertas, crianças nascidas no metrô, insônia, exaustão, exposição, atrasos e morte súbita: as notícias são chocantes e profundamente familiares, um lembrete de quantas vezes o êxodo em massa ocorreu na história e um lembrete de que a história em si é, como Clive James percebeu, “a história de tudo que não precisava ter sido assim”.

Refugiados que fogem da invasão russa da Ucrânia esperam horas para embarcar em um trem para a Polônia Foto: Kai Pfaffenbach/Reuters

Desde o início, os escritores procuraram capturar a experiência do forasteiro, do exilado, do viajante sedento, do errante, do migrante. Ovídio escreveu as cartas em sua Tristia após seu banimento de Roma. Em Crime e Castigo, um homem desesperado pergunta: “Você entende o que significa não ter absolutamente para onde ir?” Não estou aqui para sugerir que a leitura necessariamente nos torna melhores, mais morais. Os nazistas também gostavam de Dostoiévski. Mas Joyce Carol Oates certamente estava certa quando escreveu: “Ler é o único meio pelo qual deslizamos, involuntariamente, muitas vezes impotentes, para a pele de outro, a voz de outro, a alma de outro”.

A notícia implacavelmente sombria é um lembrete do quanto a literatura é alimentada por crises de migração e suas consequências, e como os escritores tentaram capturar a textura de vidas reviradas.

Uma das razões pelas quais as histórias da coleção postumamente publicada de Anthony Veasna So, Afterpartys (2021), chegaram com tanta força é que elas destacaram como o exílio e o trauma dividem permanentemente as gerações. Assim escreveu sobre famílias cambojanas americanas no Vale Central da Califórnia. Pais imigrantes e filhos nativos olhavam um para o outro como através de um vidro à prova de balas. Uma jovem diz: “Quarenta anos atrás, nossos pais sobreviveram a Pol Pot, e agora, o que diabos estamos fazendo? Obcecados pelos favores do casamento? Desperdiçando centenas de dólares para fazer nosso cabelo?”

No romance de Viet Thanh Nguyen The Committed (2021), a sequência de seu romance vencedor do Prêmio Pulitzer, O Simpatizante (2015), há uma angustiante jornada de barco enquanto o narrador foge do Vietnã para a França. Ele pensa consigo mesmo: se eu sou uma pessoa de barco, então também eram os peregrinos ingleses que vieram para os Estados Unidos no Mayflower. Os peregrinos tiveram sorte em suas relações públicas, continua. Não havia câmeras de vídeo para capturá-los, magros, atordoados e cheios de piolhos, tropeçando nas ondas. Em vez disso, os pintores românticos glorificaram essa diáspora em óleos.

O fato de a crise atual estar se espalhando por todo Leste Europeu traz à mente as migrações da Segunda Guerra Mundial e a literatura sobre essas migrações. Foi apontado, mais de uma vez, que os países ocidentais talvez sejam mais simpáticos aos refugiados ucranianos porque eles se parecem mais com seus próprios cidadãos.

Um militar ajuda uma idosa a deixar um prédio residencial destruído após um bombardeio na cidade de Kharkiv, no leste da Ucrânia Foto: VASYL ZHLOBSKY

Se for assim, também é verdade que esta crise lembrou ao Ocidente, e a quase todo mundo, como estamos com saudades de coragem e honra. Uma longa cadeia de normas entrou em colapso; o fundo moral parece ter desaparecido do mundo.

De alguma forma, importa que o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, seja um ex-comediante. O escritor tcheco Milan Kundera sempre enfatizou, em sua ficção e em outros lugares, a importância do humor sardônico e irreverente como traço salvador humano e até mesmo político. Quando alguém não tem isso, como Putin e Donald Trump, é aí que a preocupação começa.

“Aprendi o valor do humor durante a época do terror stalinista”, disse Kundera certa vez. “Eu tinha 20 anos na época. Eu sempre conseguia reconhecer uma pessoa que não era stalinista, uma pessoa que eu não precisava temer, pelo jeito que ela sorria. O senso de humor era um sinal confiável de reconhecimento. Desde então, tenho sentido medo de um mundo que está perdendo o senso de humor.”

Christopher Hitchens, em seu livro de memórias Hitch-22, disse algo semelhante. A fatwa contra seu amigo Salman Rushdie cristalizou seus próprios valores, e são aqueles que qualquer sociedade liberal deveria valorizar: “Na coluna do ódio: ditadura, religião, estupidez, demagogia, censura, bullying e intimidação. Na coluna do amor: literatura, ironia, humor, o indivíduo e a defesa da liberdade de expressão. Além, é claro, da amizade.”

Observar a bravura do povo ucraniano nos faz pensar como suportaríamos circunstâncias semelhantes. Todos gostaríamos de ser George Plimpton, ajudando a enfrentar Sirhan Sirhan.

Como suportaríamos? Uma resposta chega, de todos os lugares, na romantização de Quentin Tarantino de Era uma vez em Hollywood. Observando o ex-presidente americano e alguns canais de notícias flertando com Putin, me lembrei deste pedaço do romance de Tarantino:

“Cliff nunca se perguntou o que os americanos fariam se os russos, os nazistas, os japoneses, os mexicanos, os vikings ou Alexandre, o Grande, ocupassem os Estados Unidos pela força. Ele sabia o que os americanos fariam. Eles (palavrão) suas calças e chamariam os (palavrão) policiais. E quando percebessem que a polícia não só não poderia ajudá-los, mas também estava trabalhando em nome da ocupação, após um breve período de desespero, eles entrariam na linha.”

As ogivas nucleares de Putin estão em alerta de gatilho. Se sua política é do tipo “vamos demolir o governo”, talvez este seja o momento pelo qual você anseia, para os nascidos de novo, um momento de duplo arrebatamento. /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times

THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - Perseguidos pelos exércitos do presidente russo Vladimir Putin, um tubarão para todas as estações, os refugiados estão entrando na Europa em um ritmo nunca visto desde a Segunda Guerra Mundial, segundo as Nações Unidas. Nunca pareceu tão verdadeiro, como Don DeLillo escreveu em Zero K, seu romance de 2016, que “metade do mundo está refazendo suas cozinhas; a outra metade está morrendo de fome.” A metade faminta, quase sempre, está fugindo.

Edward Said chamou o século 20 de “a era do refugiado, da pessoa deslocada, da imigração em massa”. A crise na Ucrânia nos lembra que no século 21 não foi diferente. Postos de controle, abrigos antibombas, latrinas abertas, crianças nascidas no metrô, insônia, exaustão, exposição, atrasos e morte súbita: as notícias são chocantes e profundamente familiares, um lembrete de quantas vezes o êxodo em massa ocorreu na história e um lembrete de que a história em si é, como Clive James percebeu, “a história de tudo que não precisava ter sido assim”.

Refugiados que fogem da invasão russa da Ucrânia esperam horas para embarcar em um trem para a Polônia Foto: Kai Pfaffenbach/Reuters

Desde o início, os escritores procuraram capturar a experiência do forasteiro, do exilado, do viajante sedento, do errante, do migrante. Ovídio escreveu as cartas em sua Tristia após seu banimento de Roma. Em Crime e Castigo, um homem desesperado pergunta: “Você entende o que significa não ter absolutamente para onde ir?” Não estou aqui para sugerir que a leitura necessariamente nos torna melhores, mais morais. Os nazistas também gostavam de Dostoiévski. Mas Joyce Carol Oates certamente estava certa quando escreveu: “Ler é o único meio pelo qual deslizamos, involuntariamente, muitas vezes impotentes, para a pele de outro, a voz de outro, a alma de outro”.

A notícia implacavelmente sombria é um lembrete do quanto a literatura é alimentada por crises de migração e suas consequências, e como os escritores tentaram capturar a textura de vidas reviradas.

Uma das razões pelas quais as histórias da coleção postumamente publicada de Anthony Veasna So, Afterpartys (2021), chegaram com tanta força é que elas destacaram como o exílio e o trauma dividem permanentemente as gerações. Assim escreveu sobre famílias cambojanas americanas no Vale Central da Califórnia. Pais imigrantes e filhos nativos olhavam um para o outro como através de um vidro à prova de balas. Uma jovem diz: “Quarenta anos atrás, nossos pais sobreviveram a Pol Pot, e agora, o que diabos estamos fazendo? Obcecados pelos favores do casamento? Desperdiçando centenas de dólares para fazer nosso cabelo?”

No romance de Viet Thanh Nguyen The Committed (2021), a sequência de seu romance vencedor do Prêmio Pulitzer, O Simpatizante (2015), há uma angustiante jornada de barco enquanto o narrador foge do Vietnã para a França. Ele pensa consigo mesmo: se eu sou uma pessoa de barco, então também eram os peregrinos ingleses que vieram para os Estados Unidos no Mayflower. Os peregrinos tiveram sorte em suas relações públicas, continua. Não havia câmeras de vídeo para capturá-los, magros, atordoados e cheios de piolhos, tropeçando nas ondas. Em vez disso, os pintores românticos glorificaram essa diáspora em óleos.

O fato de a crise atual estar se espalhando por todo Leste Europeu traz à mente as migrações da Segunda Guerra Mundial e a literatura sobre essas migrações. Foi apontado, mais de uma vez, que os países ocidentais talvez sejam mais simpáticos aos refugiados ucranianos porque eles se parecem mais com seus próprios cidadãos.

Um militar ajuda uma idosa a deixar um prédio residencial destruído após um bombardeio na cidade de Kharkiv, no leste da Ucrânia Foto: VASYL ZHLOBSKY

Se for assim, também é verdade que esta crise lembrou ao Ocidente, e a quase todo mundo, como estamos com saudades de coragem e honra. Uma longa cadeia de normas entrou em colapso; o fundo moral parece ter desaparecido do mundo.

De alguma forma, importa que o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, seja um ex-comediante. O escritor tcheco Milan Kundera sempre enfatizou, em sua ficção e em outros lugares, a importância do humor sardônico e irreverente como traço salvador humano e até mesmo político. Quando alguém não tem isso, como Putin e Donald Trump, é aí que a preocupação começa.

“Aprendi o valor do humor durante a época do terror stalinista”, disse Kundera certa vez. “Eu tinha 20 anos na época. Eu sempre conseguia reconhecer uma pessoa que não era stalinista, uma pessoa que eu não precisava temer, pelo jeito que ela sorria. O senso de humor era um sinal confiável de reconhecimento. Desde então, tenho sentido medo de um mundo que está perdendo o senso de humor.”

Christopher Hitchens, em seu livro de memórias Hitch-22, disse algo semelhante. A fatwa contra seu amigo Salman Rushdie cristalizou seus próprios valores, e são aqueles que qualquer sociedade liberal deveria valorizar: “Na coluna do ódio: ditadura, religião, estupidez, demagogia, censura, bullying e intimidação. Na coluna do amor: literatura, ironia, humor, o indivíduo e a defesa da liberdade de expressão. Além, é claro, da amizade.”

Observar a bravura do povo ucraniano nos faz pensar como suportaríamos circunstâncias semelhantes. Todos gostaríamos de ser George Plimpton, ajudando a enfrentar Sirhan Sirhan.

Como suportaríamos? Uma resposta chega, de todos os lugares, na romantização de Quentin Tarantino de Era uma vez em Hollywood. Observando o ex-presidente americano e alguns canais de notícias flertando com Putin, me lembrei deste pedaço do romance de Tarantino:

“Cliff nunca se perguntou o que os americanos fariam se os russos, os nazistas, os japoneses, os mexicanos, os vikings ou Alexandre, o Grande, ocupassem os Estados Unidos pela força. Ele sabia o que os americanos fariam. Eles (palavrão) suas calças e chamariam os (palavrão) policiais. E quando percebessem que a polícia não só não poderia ajudá-los, mas também estava trabalhando em nome da ocupação, após um breve período de desespero, eles entrariam na linha.”

As ogivas nucleares de Putin estão em alerta de gatilho. Se sua política é do tipo “vamos demolir o governo”, talvez este seja o momento pelo qual você anseia, para os nascidos de novo, um momento de duplo arrebatamento. /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times

THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - Perseguidos pelos exércitos do presidente russo Vladimir Putin, um tubarão para todas as estações, os refugiados estão entrando na Europa em um ritmo nunca visto desde a Segunda Guerra Mundial, segundo as Nações Unidas. Nunca pareceu tão verdadeiro, como Don DeLillo escreveu em Zero K, seu romance de 2016, que “metade do mundo está refazendo suas cozinhas; a outra metade está morrendo de fome.” A metade faminta, quase sempre, está fugindo.

Edward Said chamou o século 20 de “a era do refugiado, da pessoa deslocada, da imigração em massa”. A crise na Ucrânia nos lembra que no século 21 não foi diferente. Postos de controle, abrigos antibombas, latrinas abertas, crianças nascidas no metrô, insônia, exaustão, exposição, atrasos e morte súbita: as notícias são chocantes e profundamente familiares, um lembrete de quantas vezes o êxodo em massa ocorreu na história e um lembrete de que a história em si é, como Clive James percebeu, “a história de tudo que não precisava ter sido assim”.

Refugiados que fogem da invasão russa da Ucrânia esperam horas para embarcar em um trem para a Polônia Foto: Kai Pfaffenbach/Reuters

Desde o início, os escritores procuraram capturar a experiência do forasteiro, do exilado, do viajante sedento, do errante, do migrante. Ovídio escreveu as cartas em sua Tristia após seu banimento de Roma. Em Crime e Castigo, um homem desesperado pergunta: “Você entende o que significa não ter absolutamente para onde ir?” Não estou aqui para sugerir que a leitura necessariamente nos torna melhores, mais morais. Os nazistas também gostavam de Dostoiévski. Mas Joyce Carol Oates certamente estava certa quando escreveu: “Ler é o único meio pelo qual deslizamos, involuntariamente, muitas vezes impotentes, para a pele de outro, a voz de outro, a alma de outro”.

A notícia implacavelmente sombria é um lembrete do quanto a literatura é alimentada por crises de migração e suas consequências, e como os escritores tentaram capturar a textura de vidas reviradas.

Uma das razões pelas quais as histórias da coleção postumamente publicada de Anthony Veasna So, Afterpartys (2021), chegaram com tanta força é que elas destacaram como o exílio e o trauma dividem permanentemente as gerações. Assim escreveu sobre famílias cambojanas americanas no Vale Central da Califórnia. Pais imigrantes e filhos nativos olhavam um para o outro como através de um vidro à prova de balas. Uma jovem diz: “Quarenta anos atrás, nossos pais sobreviveram a Pol Pot, e agora, o que diabos estamos fazendo? Obcecados pelos favores do casamento? Desperdiçando centenas de dólares para fazer nosso cabelo?”

No romance de Viet Thanh Nguyen The Committed (2021), a sequência de seu romance vencedor do Prêmio Pulitzer, O Simpatizante (2015), há uma angustiante jornada de barco enquanto o narrador foge do Vietnã para a França. Ele pensa consigo mesmo: se eu sou uma pessoa de barco, então também eram os peregrinos ingleses que vieram para os Estados Unidos no Mayflower. Os peregrinos tiveram sorte em suas relações públicas, continua. Não havia câmeras de vídeo para capturá-los, magros, atordoados e cheios de piolhos, tropeçando nas ondas. Em vez disso, os pintores românticos glorificaram essa diáspora em óleos.

O fato de a crise atual estar se espalhando por todo Leste Europeu traz à mente as migrações da Segunda Guerra Mundial e a literatura sobre essas migrações. Foi apontado, mais de uma vez, que os países ocidentais talvez sejam mais simpáticos aos refugiados ucranianos porque eles se parecem mais com seus próprios cidadãos.

Um militar ajuda uma idosa a deixar um prédio residencial destruído após um bombardeio na cidade de Kharkiv, no leste da Ucrânia Foto: VASYL ZHLOBSKY

Se for assim, também é verdade que esta crise lembrou ao Ocidente, e a quase todo mundo, como estamos com saudades de coragem e honra. Uma longa cadeia de normas entrou em colapso; o fundo moral parece ter desaparecido do mundo.

De alguma forma, importa que o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, seja um ex-comediante. O escritor tcheco Milan Kundera sempre enfatizou, em sua ficção e em outros lugares, a importância do humor sardônico e irreverente como traço salvador humano e até mesmo político. Quando alguém não tem isso, como Putin e Donald Trump, é aí que a preocupação começa.

“Aprendi o valor do humor durante a época do terror stalinista”, disse Kundera certa vez. “Eu tinha 20 anos na época. Eu sempre conseguia reconhecer uma pessoa que não era stalinista, uma pessoa que eu não precisava temer, pelo jeito que ela sorria. O senso de humor era um sinal confiável de reconhecimento. Desde então, tenho sentido medo de um mundo que está perdendo o senso de humor.”

Christopher Hitchens, em seu livro de memórias Hitch-22, disse algo semelhante. A fatwa contra seu amigo Salman Rushdie cristalizou seus próprios valores, e são aqueles que qualquer sociedade liberal deveria valorizar: “Na coluna do ódio: ditadura, religião, estupidez, demagogia, censura, bullying e intimidação. Na coluna do amor: literatura, ironia, humor, o indivíduo e a defesa da liberdade de expressão. Além, é claro, da amizade.”

Observar a bravura do povo ucraniano nos faz pensar como suportaríamos circunstâncias semelhantes. Todos gostaríamos de ser George Plimpton, ajudando a enfrentar Sirhan Sirhan.

Como suportaríamos? Uma resposta chega, de todos os lugares, na romantização de Quentin Tarantino de Era uma vez em Hollywood. Observando o ex-presidente americano e alguns canais de notícias flertando com Putin, me lembrei deste pedaço do romance de Tarantino:

“Cliff nunca se perguntou o que os americanos fariam se os russos, os nazistas, os japoneses, os mexicanos, os vikings ou Alexandre, o Grande, ocupassem os Estados Unidos pela força. Ele sabia o que os americanos fariam. Eles (palavrão) suas calças e chamariam os (palavrão) policiais. E quando percebessem que a polícia não só não poderia ajudá-los, mas também estava trabalhando em nome da ocupação, após um breve período de desespero, eles entrariam na linha.”

As ogivas nucleares de Putin estão em alerta de gatilho. Se sua política é do tipo “vamos demolir o governo”, talvez este seja o momento pelo qual você anseia, para os nascidos de novo, um momento de duplo arrebatamento. /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

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