PARIS - Até as portas do palácio foram postas abaixo e levadas embora. Quando as forças francesas colonizaram o reino de Dahomey, nos anos 1890, depuseram o governante, o rei Behanzin, e saquearam tudo o que foi deixado para trás: tronos elaborados, cetros cerimoniais, estátuas de seres meio homens, meio animais. Os tesouros de valor incomensurável acabaram em museus da França.
Em breve, a França devolverá 26 destes tesouros a Benim, uma nação da África Ocidental onde antigamente era o reino.
Para um jovem artista contemporâneo, Roméo Mivekannin, a restituição tem um profundo significado pessoal: Ele é o tataraneto do rei Behanzin. Nascido em Benim, Mivekannin, 34, agora vive na França. Ele começou a explorar as suas origens reais com uma série degrandes pinturas, usando tiras de lençóis velhos mergulhados em poções vudu, e depois unidas. Em lugar de mostrar o seu ancestral no pináculo de sua majestade, Mivekannin retrata o rei como um governante caído, enviado para o exílio.
Nesse momento, em que a França encara o seu passado colonial, o artista analisa como este passado moldou a sua identidade.
“O fato de a França devolver estes tesouros é um gesto extremamente significativo”, ele disse em uma recente entrevista. “É uma maneira de a França restabelecer suas relações com as nações da África”.
Os 26 artefatos - todos expostos no Museu do Quai Branly em Paris - são a primeira série de objetos que serão devolvidos à África Subsaariana desde que o presidente Emmanuel Macron prometeu, em 2017, que devolveria algumas das 90 mil peças que se encontram em museus franceses.
A restituição exigiu que o Parlamento francês aprovasse uma legislação especial, num elaborado processo que levou dois anos. A logística da transferência, que, como a nova lei determina, ocorrerá em 2021, está sendo elaborada pelo governo de Benim, informou um porta-voz do Quai Branly.
A devolução dos tesouros dará mais brilho ao legado do rei Behanzin. Ele é uma figura importante não apenas para a família como para os povos de toda a África, segundo Gaelle Beaujean, que supervisiona as coleções da África do Quai Branly e escreveu sua tese de doutorado sobre os tesouros do Dahomey.
Os seus descendentes cuidaram para que a sua reputação permanecesse viva. Mivekennin lembra de ter ouvido sua avó - neta do rei - elogiar a resistência do monarca aos invasores franceses. Ela o descrevia como “um homem muito inteligente que não permitiria que os europeus vencessem”, disse Mivekannin.
A avó de Mivekannin levava uma vida urbana, moderna em Cotonou, a maior cidade do Benim. Entretanto ela sempre lembrava ao menino a sua linhagem real, ele contou. Os visitantes de Abomey a saudavam como convém à realeza, ajoelhando diante dela e tocando com a fronte no chão. Quando o jovem Mivekannin pediu um tênis como os que os seus amigos usavam na escola, a avó explicou que ele não precisava daquilo: Ele era um rei, e os reis nunca usavam o que usam as pessoas comuns.
Mandado para a França, em 2004, para acabar a escola secundária, Mivekannin se deparou com uma realidade extremamente dura e diferente. Pela primeira vez, ele se sentiu um estrangeiro por causa da cor da sua pele. Ele disse que as pessoas o viam como alguém que pertence a uma categoria social completamente diferente - a dos imigrantes que executam trabalhos braçais, como babás e ajudantes domésticos.
Depois de estudar arquitetura em Toulouse, a idade do sul da França onde ele vive agora com sua esposa e filho, Mivekannin passou a dedicar-se à escultura, e mais tarde à pintura. As suas primeiras obras eram abstratas, e a resposta de um galerista francês o abalou, disse. “Ele falou: Você é preto. Esta é arte moderna. Por que não conta sua própria história?”. “Fiquei muito chocado, empacotei meus trabalhos e saí. Tive consciência de estar sendo reduzido à cor da minha pele.”
“Então me dei conta de que uma pessoa precisa confrontar-se com sua própria história antes de seguir em frente e fazer alguma outra coisa”, afirmou.
Mivekannin decidiu representar o seu ancestral real depois da primeira visita que fez ao Palácio de Abomey, anonimamente, com um grupo de turistas alemães. “Eu sabia, lá no fundo, que tinha uma ligação com esse lugar” falou. “Eu me senti regenerado. Foi como a volta para casa”.
Por que não mostrar o rei no apogeu do seu poder? “Quando saí de casa e me mudei para a Europa, me dei conta de que havia uma grande parte da história da família que eu desconhecia.” E prosseguiu: “Descobri que meu tataravô sofreu enormemente no exílio. Minha obra mostra os aspectos ocultos da vida de uma família”.
A série sobre Behanzin, que o artista ainda não concluiu, será exibida posteriormente, ainda este ano, na Galerie Eric Dupont em Paris. Em uma entrevista, Dupont disse que ficou totalmente surpreso quando o artista entrou aqui, uns anos atrás, e espalhou suas pinturas em lençóis no chão da galeria. Logo em seguida, ele assinou um contrato para representar o artista na Europa.
“A história é sempre contada pelas mesmas pessoas, disse Dupont. “A obra de Roméo coloca questões genuínas. Ela tenta pôr as coisas no seu lugar”.
Segundo Cécile Fakhoury, a galerista de Mivekannin em Abidjan, na Costa do Marfim, embora o artista seja descendente de reis, tambémse sente consanguíneo das pessoas pretas que descendem de escravos. “Em seu íntimo trava-se uma perpétua batalha”, ela observou. “A sua obra fala de sua dupla identidade”.
Mivekannin afirmou que a volta dos tesouros ancestrais será um marco pessoal da maior importância. Com o roubo das obras, há mais de um século, acrescentou, “nós fomos espoliados; ficamos incapacitados. Uma parte de nós nos foi arrancada”.
“Agora, está sendo reposta. O rei finalmente está voltando para casa”. / TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA
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