Café ou Chai? Em 2 cafés de Calcutá, ‘adda’ é o que realmente consta no cardápio


Conversa irrestrita, ou "adda", é a atração principal em dois célebres cafés que são ao mesmo tempo museus da história intelectual da cidade - e locais de debate

Por Mujib Mashal

CALCUTÁ, Índia - Em um dos cafés, pedir um chai é atrair um olhar de desprezo fulminante do garçom de turbante, como se uma blasfêmia tivesse sido cometida: seu nome é Indian Coffee House, estúpido.

Um garçom carrega bandeja de bebidas na Indian Coffee House. O café tem filiais em várias cidades indianas e é administrado como uma cooperativa de trabalhadores. Foto: Saumya Khandelwal/The New York Times

Já no outro café, o chai é exclusivamente servido, cozido lentamente no fogo à carvão na mesma cozinha escura por 103 anos com o cuidado silencioso de um antigo ritual. A história deste lugar, Favorite Cabin, é visível nas camadas de fuligem que cobrem as paredes, nas janelas em arco que filtram a luz em uma aura suave de uma época passada, no pequeno sótão que é uma abóbada funerária aberta para todas as cadeiras quebradas por algum cliente célebre que se empolgou durante um debate acalorado.

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Os dois cafés, a apenas cinco minutos de caminhada um do outro no centro de Calcutá, podem diferenciar-se quanto à bebida com cafeína que oferecem. Mas estão ligados por seu papel de alimentarem um século de discussão política, tramas revolucionárias e fofocas sem fim em uma cidade no coração da rica tradição intelectual da Índia.

Os dois estão na região de College Street, o bairro movimentado que abriga algumas das universidades mais antigas da Ásia. As vielas são lotadas de pequenas livrarias, com o enorme apetite da cidade pela produção de conhecimento transbordando para a calçada. Em um dia qualquer, os alto-falantes emitem sons de protesto - de um sindicato, de um grupo de estudantes ou de um partido político.

Calcutá carrega seu passado como poucas outras cidades, de seus rotundos táxis amarelos a seus antiquados bondes. Os dois cafés são ao mesmo tempo museus de nostalgia e parte de uma rotina indispensável e até viciante para muitos.

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“Organizo os horários das operações de forma que possa vir aqui”, disse o Dr. Jayanta Ray, 70, um ginecologista e cliente dedicado do Coffee House.

Zahid Hussain, o gerente, trabalha no café há mais de três décadas. “Eu fiz de A a Z aqui - de tudo, de servir a cozinhar”, disse Hussain. "Exceto varrer."

Quando o café fechou por meses durante as duas ondas da covid-19 na Índia, clientes como Ray, que o frequenta há 40 anos, não viam a hora de voltar. “Sua esposa o manteve em prisão domiciliar”, brincou um de seus amigos, “até que ele tomasse a segunda dose da vacina”.

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Os amigos vão ao Coffee House para comemorar aniversários, dissecar as últimas partidas de futebol e até mesmo organizar uma doação anual de sangue no local - “sangue com alto teor de cafeína”, brincou Ray.

Mas na maioria dos dias, os clientes de ambos os cafés vêm apenas para conversar por horas sobre tudo e nada. Existe uma palavra em bengali para essa conversa irrestrita: “adda”.

Adda é algo que passa despercebido - porque faz parte do nosso dia a dia e é fundamental na identidade de um bengali”, disse a Dra. Nabamita Das, professora de sociologia da Presidency University em Calcutá que escreveu sua tese de doutorado sobre adda. “E quando você pensa em adda, você pensa em adda integralmente ligada ao espaço de adda - você fala sobre a adda do Coffee House, a adda do Favorite Cabin.”

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No Favorite Cabin, os clientes entraram antes mesmo de Sanchay Barua guardar o prato do almoço e abrir as portas do café inaugurado por seu avô, 103 anos atrás. Kanchan Das, um funcionário, estava fervendo o leite sobre o carvão na cozinha escura nos fundos - como faz há 51 anos.

O Favorite Cabin era o ponto de encontro dos escritores do movimento modernista conhecido como Kallol, que floresceu nas décadas de 1920 e 1930. Foto: Saumya Khandelwal/The New York Times

Meia dúzia de pessoas, incluindo um autor que está escrevendo seu sexto livro e um economista aposentado, já haviam se sentado em diferentes cantos do café.

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Enquanto a conversa soava pela sala, o tema principal de debate era a eleição estatal ferozmente contestada, com o Partido do Povo Indiano do primeiro-ministro Narendra Modi, que governa a Índia, fazendo o possível para destituir a líder em exercício de Bengala Ocidental, a ministra-chefe Mamata Banerjee.

No início de sua vida, Barua, 57, tentou vender material de papelaria, mas decidiu juntar-se ao café da família há duas décadas, após a morte de seu pai.

Os repetidos lockdowns da covid cobraram seu preço, reduzindo o funcionamento para um turno por dia após o almoço. Ele não pode pagar o trabalho necessário por mais horas. Então, por enquanto, ele e Das administram as coisas. “Também estou envelhecendo, então não sei por quanto tempo isso vai continuar”, disse Barua. "É um dilema."

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Alguns não percebem o motivo de tanto alvoroço.

Meghna Ghosh e Subrota De, ambas com 20 anos e ex-colegas de escola que combinaram de se ver após dois anos, decidiram dar uma olhada no Coffee House. Elas disseram que, embora apreciassem sua história, o cardápio não agradou muito. Nem a vibração.

Comparado com os novos cafés da cidade, que Ghosh disse serem “bons para o Instagram”, o Coffee House era - e aqui ela teve um pouco de dificuldade para se expressar.

"Aqui", disse Ghosh em inglês antes de mudar para o hindi: "ye toh slow-walli cheez hai." (“É meio devagar.”)

Hussain, o gerente, também é cético em relação aos jovens que entram por sua porta hoje em dia.

“No passado, os alunos vinham para passar o tempo com seus livros. Agora eles vêm por amor - por encontros”, ele disse, com a energia de seu velho tio.

Então, ele olhou para o lado bom.

“Muita história de amor começou aqui”, ele sorriu. “E eles voltam com doces quando se casam.” /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times

CALCUTÁ, Índia - Em um dos cafés, pedir um chai é atrair um olhar de desprezo fulminante do garçom de turbante, como se uma blasfêmia tivesse sido cometida: seu nome é Indian Coffee House, estúpido.

Um garçom carrega bandeja de bebidas na Indian Coffee House. O café tem filiais em várias cidades indianas e é administrado como uma cooperativa de trabalhadores. Foto: Saumya Khandelwal/The New York Times

Já no outro café, o chai é exclusivamente servido, cozido lentamente no fogo à carvão na mesma cozinha escura por 103 anos com o cuidado silencioso de um antigo ritual. A história deste lugar, Favorite Cabin, é visível nas camadas de fuligem que cobrem as paredes, nas janelas em arco que filtram a luz em uma aura suave de uma época passada, no pequeno sótão que é uma abóbada funerária aberta para todas as cadeiras quebradas por algum cliente célebre que se empolgou durante um debate acalorado.

Os dois cafés, a apenas cinco minutos de caminhada um do outro no centro de Calcutá, podem diferenciar-se quanto à bebida com cafeína que oferecem. Mas estão ligados por seu papel de alimentarem um século de discussão política, tramas revolucionárias e fofocas sem fim em uma cidade no coração da rica tradição intelectual da Índia.

Os dois estão na região de College Street, o bairro movimentado que abriga algumas das universidades mais antigas da Ásia. As vielas são lotadas de pequenas livrarias, com o enorme apetite da cidade pela produção de conhecimento transbordando para a calçada. Em um dia qualquer, os alto-falantes emitem sons de protesto - de um sindicato, de um grupo de estudantes ou de um partido político.

Calcutá carrega seu passado como poucas outras cidades, de seus rotundos táxis amarelos a seus antiquados bondes. Os dois cafés são ao mesmo tempo museus de nostalgia e parte de uma rotina indispensável e até viciante para muitos.

“Organizo os horários das operações de forma que possa vir aqui”, disse o Dr. Jayanta Ray, 70, um ginecologista e cliente dedicado do Coffee House.

Zahid Hussain, o gerente, trabalha no café há mais de três décadas. “Eu fiz de A a Z aqui - de tudo, de servir a cozinhar”, disse Hussain. "Exceto varrer."

Quando o café fechou por meses durante as duas ondas da covid-19 na Índia, clientes como Ray, que o frequenta há 40 anos, não viam a hora de voltar. “Sua esposa o manteve em prisão domiciliar”, brincou um de seus amigos, “até que ele tomasse a segunda dose da vacina”.

Os amigos vão ao Coffee House para comemorar aniversários, dissecar as últimas partidas de futebol e até mesmo organizar uma doação anual de sangue no local - “sangue com alto teor de cafeína”, brincou Ray.

Mas na maioria dos dias, os clientes de ambos os cafés vêm apenas para conversar por horas sobre tudo e nada. Existe uma palavra em bengali para essa conversa irrestrita: “adda”.

Adda é algo que passa despercebido - porque faz parte do nosso dia a dia e é fundamental na identidade de um bengali”, disse a Dra. Nabamita Das, professora de sociologia da Presidency University em Calcutá que escreveu sua tese de doutorado sobre adda. “E quando você pensa em adda, você pensa em adda integralmente ligada ao espaço de adda - você fala sobre a adda do Coffee House, a adda do Favorite Cabin.”

No Favorite Cabin, os clientes entraram antes mesmo de Sanchay Barua guardar o prato do almoço e abrir as portas do café inaugurado por seu avô, 103 anos atrás. Kanchan Das, um funcionário, estava fervendo o leite sobre o carvão na cozinha escura nos fundos - como faz há 51 anos.

O Favorite Cabin era o ponto de encontro dos escritores do movimento modernista conhecido como Kallol, que floresceu nas décadas de 1920 e 1930. Foto: Saumya Khandelwal/The New York Times

Meia dúzia de pessoas, incluindo um autor que está escrevendo seu sexto livro e um economista aposentado, já haviam se sentado em diferentes cantos do café.

Enquanto a conversa soava pela sala, o tema principal de debate era a eleição estatal ferozmente contestada, com o Partido do Povo Indiano do primeiro-ministro Narendra Modi, que governa a Índia, fazendo o possível para destituir a líder em exercício de Bengala Ocidental, a ministra-chefe Mamata Banerjee.

No início de sua vida, Barua, 57, tentou vender material de papelaria, mas decidiu juntar-se ao café da família há duas décadas, após a morte de seu pai.

Os repetidos lockdowns da covid cobraram seu preço, reduzindo o funcionamento para um turno por dia após o almoço. Ele não pode pagar o trabalho necessário por mais horas. Então, por enquanto, ele e Das administram as coisas. “Também estou envelhecendo, então não sei por quanto tempo isso vai continuar”, disse Barua. "É um dilema."

Alguns não percebem o motivo de tanto alvoroço.

Meghna Ghosh e Subrota De, ambas com 20 anos e ex-colegas de escola que combinaram de se ver após dois anos, decidiram dar uma olhada no Coffee House. Elas disseram que, embora apreciassem sua história, o cardápio não agradou muito. Nem a vibração.

Comparado com os novos cafés da cidade, que Ghosh disse serem “bons para o Instagram”, o Coffee House era - e aqui ela teve um pouco de dificuldade para se expressar.

"Aqui", disse Ghosh em inglês antes de mudar para o hindi: "ye toh slow-walli cheez hai." (“É meio devagar.”)

Hussain, o gerente, também é cético em relação aos jovens que entram por sua porta hoje em dia.

“No passado, os alunos vinham para passar o tempo com seus livros. Agora eles vêm por amor - por encontros”, ele disse, com a energia de seu velho tio.

Então, ele olhou para o lado bom.

“Muita história de amor começou aqui”, ele sorriu. “E eles voltam com doces quando se casam.” /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times

CALCUTÁ, Índia - Em um dos cafés, pedir um chai é atrair um olhar de desprezo fulminante do garçom de turbante, como se uma blasfêmia tivesse sido cometida: seu nome é Indian Coffee House, estúpido.

Um garçom carrega bandeja de bebidas na Indian Coffee House. O café tem filiais em várias cidades indianas e é administrado como uma cooperativa de trabalhadores. Foto: Saumya Khandelwal/The New York Times

Já no outro café, o chai é exclusivamente servido, cozido lentamente no fogo à carvão na mesma cozinha escura por 103 anos com o cuidado silencioso de um antigo ritual. A história deste lugar, Favorite Cabin, é visível nas camadas de fuligem que cobrem as paredes, nas janelas em arco que filtram a luz em uma aura suave de uma época passada, no pequeno sótão que é uma abóbada funerária aberta para todas as cadeiras quebradas por algum cliente célebre que se empolgou durante um debate acalorado.

Os dois cafés, a apenas cinco minutos de caminhada um do outro no centro de Calcutá, podem diferenciar-se quanto à bebida com cafeína que oferecem. Mas estão ligados por seu papel de alimentarem um século de discussão política, tramas revolucionárias e fofocas sem fim em uma cidade no coração da rica tradição intelectual da Índia.

Os dois estão na região de College Street, o bairro movimentado que abriga algumas das universidades mais antigas da Ásia. As vielas são lotadas de pequenas livrarias, com o enorme apetite da cidade pela produção de conhecimento transbordando para a calçada. Em um dia qualquer, os alto-falantes emitem sons de protesto - de um sindicato, de um grupo de estudantes ou de um partido político.

Calcutá carrega seu passado como poucas outras cidades, de seus rotundos táxis amarelos a seus antiquados bondes. Os dois cafés são ao mesmo tempo museus de nostalgia e parte de uma rotina indispensável e até viciante para muitos.

“Organizo os horários das operações de forma que possa vir aqui”, disse o Dr. Jayanta Ray, 70, um ginecologista e cliente dedicado do Coffee House.

Zahid Hussain, o gerente, trabalha no café há mais de três décadas. “Eu fiz de A a Z aqui - de tudo, de servir a cozinhar”, disse Hussain. "Exceto varrer."

Quando o café fechou por meses durante as duas ondas da covid-19 na Índia, clientes como Ray, que o frequenta há 40 anos, não viam a hora de voltar. “Sua esposa o manteve em prisão domiciliar”, brincou um de seus amigos, “até que ele tomasse a segunda dose da vacina”.

Os amigos vão ao Coffee House para comemorar aniversários, dissecar as últimas partidas de futebol e até mesmo organizar uma doação anual de sangue no local - “sangue com alto teor de cafeína”, brincou Ray.

Mas na maioria dos dias, os clientes de ambos os cafés vêm apenas para conversar por horas sobre tudo e nada. Existe uma palavra em bengali para essa conversa irrestrita: “adda”.

Adda é algo que passa despercebido - porque faz parte do nosso dia a dia e é fundamental na identidade de um bengali”, disse a Dra. Nabamita Das, professora de sociologia da Presidency University em Calcutá que escreveu sua tese de doutorado sobre adda. “E quando você pensa em adda, você pensa em adda integralmente ligada ao espaço de adda - você fala sobre a adda do Coffee House, a adda do Favorite Cabin.”

No Favorite Cabin, os clientes entraram antes mesmo de Sanchay Barua guardar o prato do almoço e abrir as portas do café inaugurado por seu avô, 103 anos atrás. Kanchan Das, um funcionário, estava fervendo o leite sobre o carvão na cozinha escura nos fundos - como faz há 51 anos.

O Favorite Cabin era o ponto de encontro dos escritores do movimento modernista conhecido como Kallol, que floresceu nas décadas de 1920 e 1930. Foto: Saumya Khandelwal/The New York Times

Meia dúzia de pessoas, incluindo um autor que está escrevendo seu sexto livro e um economista aposentado, já haviam se sentado em diferentes cantos do café.

Enquanto a conversa soava pela sala, o tema principal de debate era a eleição estatal ferozmente contestada, com o Partido do Povo Indiano do primeiro-ministro Narendra Modi, que governa a Índia, fazendo o possível para destituir a líder em exercício de Bengala Ocidental, a ministra-chefe Mamata Banerjee.

No início de sua vida, Barua, 57, tentou vender material de papelaria, mas decidiu juntar-se ao café da família há duas décadas, após a morte de seu pai.

Os repetidos lockdowns da covid cobraram seu preço, reduzindo o funcionamento para um turno por dia após o almoço. Ele não pode pagar o trabalho necessário por mais horas. Então, por enquanto, ele e Das administram as coisas. “Também estou envelhecendo, então não sei por quanto tempo isso vai continuar”, disse Barua. "É um dilema."

Alguns não percebem o motivo de tanto alvoroço.

Meghna Ghosh e Subrota De, ambas com 20 anos e ex-colegas de escola que combinaram de se ver após dois anos, decidiram dar uma olhada no Coffee House. Elas disseram que, embora apreciassem sua história, o cardápio não agradou muito. Nem a vibração.

Comparado com os novos cafés da cidade, que Ghosh disse serem “bons para o Instagram”, o Coffee House era - e aqui ela teve um pouco de dificuldade para se expressar.

"Aqui", disse Ghosh em inglês antes de mudar para o hindi: "ye toh slow-walli cheez hai." (“É meio devagar.”)

Hussain, o gerente, também é cético em relação aos jovens que entram por sua porta hoje em dia.

“No passado, os alunos vinham para passar o tempo com seus livros. Agora eles vêm por amor - por encontros”, ele disse, com a energia de seu velho tio.

Então, ele olhou para o lado bom.

“Muita história de amor começou aqui”, ele sorriu. “E eles voltam com doces quando se casam.” /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times

CALCUTÁ, Índia - Em um dos cafés, pedir um chai é atrair um olhar de desprezo fulminante do garçom de turbante, como se uma blasfêmia tivesse sido cometida: seu nome é Indian Coffee House, estúpido.

Um garçom carrega bandeja de bebidas na Indian Coffee House. O café tem filiais em várias cidades indianas e é administrado como uma cooperativa de trabalhadores. Foto: Saumya Khandelwal/The New York Times

Já no outro café, o chai é exclusivamente servido, cozido lentamente no fogo à carvão na mesma cozinha escura por 103 anos com o cuidado silencioso de um antigo ritual. A história deste lugar, Favorite Cabin, é visível nas camadas de fuligem que cobrem as paredes, nas janelas em arco que filtram a luz em uma aura suave de uma época passada, no pequeno sótão que é uma abóbada funerária aberta para todas as cadeiras quebradas por algum cliente célebre que se empolgou durante um debate acalorado.

Os dois cafés, a apenas cinco minutos de caminhada um do outro no centro de Calcutá, podem diferenciar-se quanto à bebida com cafeína que oferecem. Mas estão ligados por seu papel de alimentarem um século de discussão política, tramas revolucionárias e fofocas sem fim em uma cidade no coração da rica tradição intelectual da Índia.

Os dois estão na região de College Street, o bairro movimentado que abriga algumas das universidades mais antigas da Ásia. As vielas são lotadas de pequenas livrarias, com o enorme apetite da cidade pela produção de conhecimento transbordando para a calçada. Em um dia qualquer, os alto-falantes emitem sons de protesto - de um sindicato, de um grupo de estudantes ou de um partido político.

Calcutá carrega seu passado como poucas outras cidades, de seus rotundos táxis amarelos a seus antiquados bondes. Os dois cafés são ao mesmo tempo museus de nostalgia e parte de uma rotina indispensável e até viciante para muitos.

“Organizo os horários das operações de forma que possa vir aqui”, disse o Dr. Jayanta Ray, 70, um ginecologista e cliente dedicado do Coffee House.

Zahid Hussain, o gerente, trabalha no café há mais de três décadas. “Eu fiz de A a Z aqui - de tudo, de servir a cozinhar”, disse Hussain. "Exceto varrer."

Quando o café fechou por meses durante as duas ondas da covid-19 na Índia, clientes como Ray, que o frequenta há 40 anos, não viam a hora de voltar. “Sua esposa o manteve em prisão domiciliar”, brincou um de seus amigos, “até que ele tomasse a segunda dose da vacina”.

Os amigos vão ao Coffee House para comemorar aniversários, dissecar as últimas partidas de futebol e até mesmo organizar uma doação anual de sangue no local - “sangue com alto teor de cafeína”, brincou Ray.

Mas na maioria dos dias, os clientes de ambos os cafés vêm apenas para conversar por horas sobre tudo e nada. Existe uma palavra em bengali para essa conversa irrestrita: “adda”.

Adda é algo que passa despercebido - porque faz parte do nosso dia a dia e é fundamental na identidade de um bengali”, disse a Dra. Nabamita Das, professora de sociologia da Presidency University em Calcutá que escreveu sua tese de doutorado sobre adda. “E quando você pensa em adda, você pensa em adda integralmente ligada ao espaço de adda - você fala sobre a adda do Coffee House, a adda do Favorite Cabin.”

No Favorite Cabin, os clientes entraram antes mesmo de Sanchay Barua guardar o prato do almoço e abrir as portas do café inaugurado por seu avô, 103 anos atrás. Kanchan Das, um funcionário, estava fervendo o leite sobre o carvão na cozinha escura nos fundos - como faz há 51 anos.

O Favorite Cabin era o ponto de encontro dos escritores do movimento modernista conhecido como Kallol, que floresceu nas décadas de 1920 e 1930. Foto: Saumya Khandelwal/The New York Times

Meia dúzia de pessoas, incluindo um autor que está escrevendo seu sexto livro e um economista aposentado, já haviam se sentado em diferentes cantos do café.

Enquanto a conversa soava pela sala, o tema principal de debate era a eleição estatal ferozmente contestada, com o Partido do Povo Indiano do primeiro-ministro Narendra Modi, que governa a Índia, fazendo o possível para destituir a líder em exercício de Bengala Ocidental, a ministra-chefe Mamata Banerjee.

No início de sua vida, Barua, 57, tentou vender material de papelaria, mas decidiu juntar-se ao café da família há duas décadas, após a morte de seu pai.

Os repetidos lockdowns da covid cobraram seu preço, reduzindo o funcionamento para um turno por dia após o almoço. Ele não pode pagar o trabalho necessário por mais horas. Então, por enquanto, ele e Das administram as coisas. “Também estou envelhecendo, então não sei por quanto tempo isso vai continuar”, disse Barua. "É um dilema."

Alguns não percebem o motivo de tanto alvoroço.

Meghna Ghosh e Subrota De, ambas com 20 anos e ex-colegas de escola que combinaram de se ver após dois anos, decidiram dar uma olhada no Coffee House. Elas disseram que, embora apreciassem sua história, o cardápio não agradou muito. Nem a vibração.

Comparado com os novos cafés da cidade, que Ghosh disse serem “bons para o Instagram”, o Coffee House era - e aqui ela teve um pouco de dificuldade para se expressar.

"Aqui", disse Ghosh em inglês antes de mudar para o hindi: "ye toh slow-walli cheez hai." (“É meio devagar.”)

Hussain, o gerente, também é cético em relação aos jovens que entram por sua porta hoje em dia.

“No passado, os alunos vinham para passar o tempo com seus livros. Agora eles vêm por amor - por encontros”, ele disse, com a energia de seu velho tio.

Então, ele olhou para o lado bom.

“Muita história de amor começou aqui”, ele sorriu. “E eles voltam com doces quando se casam.” /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times

CALCUTÁ, Índia - Em um dos cafés, pedir um chai é atrair um olhar de desprezo fulminante do garçom de turbante, como se uma blasfêmia tivesse sido cometida: seu nome é Indian Coffee House, estúpido.

Um garçom carrega bandeja de bebidas na Indian Coffee House. O café tem filiais em várias cidades indianas e é administrado como uma cooperativa de trabalhadores. Foto: Saumya Khandelwal/The New York Times

Já no outro café, o chai é exclusivamente servido, cozido lentamente no fogo à carvão na mesma cozinha escura por 103 anos com o cuidado silencioso de um antigo ritual. A história deste lugar, Favorite Cabin, é visível nas camadas de fuligem que cobrem as paredes, nas janelas em arco que filtram a luz em uma aura suave de uma época passada, no pequeno sótão que é uma abóbada funerária aberta para todas as cadeiras quebradas por algum cliente célebre que se empolgou durante um debate acalorado.

Os dois cafés, a apenas cinco minutos de caminhada um do outro no centro de Calcutá, podem diferenciar-se quanto à bebida com cafeína que oferecem. Mas estão ligados por seu papel de alimentarem um século de discussão política, tramas revolucionárias e fofocas sem fim em uma cidade no coração da rica tradição intelectual da Índia.

Os dois estão na região de College Street, o bairro movimentado que abriga algumas das universidades mais antigas da Ásia. As vielas são lotadas de pequenas livrarias, com o enorme apetite da cidade pela produção de conhecimento transbordando para a calçada. Em um dia qualquer, os alto-falantes emitem sons de protesto - de um sindicato, de um grupo de estudantes ou de um partido político.

Calcutá carrega seu passado como poucas outras cidades, de seus rotundos táxis amarelos a seus antiquados bondes. Os dois cafés são ao mesmo tempo museus de nostalgia e parte de uma rotina indispensável e até viciante para muitos.

“Organizo os horários das operações de forma que possa vir aqui”, disse o Dr. Jayanta Ray, 70, um ginecologista e cliente dedicado do Coffee House.

Zahid Hussain, o gerente, trabalha no café há mais de três décadas. “Eu fiz de A a Z aqui - de tudo, de servir a cozinhar”, disse Hussain. "Exceto varrer."

Quando o café fechou por meses durante as duas ondas da covid-19 na Índia, clientes como Ray, que o frequenta há 40 anos, não viam a hora de voltar. “Sua esposa o manteve em prisão domiciliar”, brincou um de seus amigos, “até que ele tomasse a segunda dose da vacina”.

Os amigos vão ao Coffee House para comemorar aniversários, dissecar as últimas partidas de futebol e até mesmo organizar uma doação anual de sangue no local - “sangue com alto teor de cafeína”, brincou Ray.

Mas na maioria dos dias, os clientes de ambos os cafés vêm apenas para conversar por horas sobre tudo e nada. Existe uma palavra em bengali para essa conversa irrestrita: “adda”.

Adda é algo que passa despercebido - porque faz parte do nosso dia a dia e é fundamental na identidade de um bengali”, disse a Dra. Nabamita Das, professora de sociologia da Presidency University em Calcutá que escreveu sua tese de doutorado sobre adda. “E quando você pensa em adda, você pensa em adda integralmente ligada ao espaço de adda - você fala sobre a adda do Coffee House, a adda do Favorite Cabin.”

No Favorite Cabin, os clientes entraram antes mesmo de Sanchay Barua guardar o prato do almoço e abrir as portas do café inaugurado por seu avô, 103 anos atrás. Kanchan Das, um funcionário, estava fervendo o leite sobre o carvão na cozinha escura nos fundos - como faz há 51 anos.

O Favorite Cabin era o ponto de encontro dos escritores do movimento modernista conhecido como Kallol, que floresceu nas décadas de 1920 e 1930. Foto: Saumya Khandelwal/The New York Times

Meia dúzia de pessoas, incluindo um autor que está escrevendo seu sexto livro e um economista aposentado, já haviam se sentado em diferentes cantos do café.

Enquanto a conversa soava pela sala, o tema principal de debate era a eleição estatal ferozmente contestada, com o Partido do Povo Indiano do primeiro-ministro Narendra Modi, que governa a Índia, fazendo o possível para destituir a líder em exercício de Bengala Ocidental, a ministra-chefe Mamata Banerjee.

No início de sua vida, Barua, 57, tentou vender material de papelaria, mas decidiu juntar-se ao café da família há duas décadas, após a morte de seu pai.

Os repetidos lockdowns da covid cobraram seu preço, reduzindo o funcionamento para um turno por dia após o almoço. Ele não pode pagar o trabalho necessário por mais horas. Então, por enquanto, ele e Das administram as coisas. “Também estou envelhecendo, então não sei por quanto tempo isso vai continuar”, disse Barua. "É um dilema."

Alguns não percebem o motivo de tanto alvoroço.

Meghna Ghosh e Subrota De, ambas com 20 anos e ex-colegas de escola que combinaram de se ver após dois anos, decidiram dar uma olhada no Coffee House. Elas disseram que, embora apreciassem sua história, o cardápio não agradou muito. Nem a vibração.

Comparado com os novos cafés da cidade, que Ghosh disse serem “bons para o Instagram”, o Coffee House era - e aqui ela teve um pouco de dificuldade para se expressar.

"Aqui", disse Ghosh em inglês antes de mudar para o hindi: "ye toh slow-walli cheez hai." (“É meio devagar.”)

Hussain, o gerente, também é cético em relação aos jovens que entram por sua porta hoje em dia.

“No passado, os alunos vinham para passar o tempo com seus livros. Agora eles vêm por amor - por encontros”, ele disse, com a energia de seu velho tio.

Então, ele olhou para o lado bom.

“Muita história de amor começou aqui”, ele sorriu. “E eles voltam com doces quando se casam.” /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

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