TÓQUIO – O diretor Kiyoshi Kurosawa é mais conhecido por seus filmes de terror que retratam as tendências sombrias da vida no Japão moderno e os fantasmas vingativos que o assombram. Mas os espíritos malignos à espreita no background de seu último filme são um horror do passado real do país – os testes de armas biológicas e químicas em seres humanos na Manchúria antes e depois da Segunda Guerra Mundial realizados pelo Exército Imperial.
O filme Wife of a Spy rendeu a Kurosawa o prêmio de melhor diretor no Festival de Cinema de Veneza. O filme deverá provocar polêmica no Japão, onde as atrocidades cometidas durante a guerra continuam sendo objeto de muita controvérsia e raramente são vistas nas telonas.
Ganhar o prêmio máximo em um festival de cinema internacional é uma grande vitória para o Japão, que tem investido fortemente na promoção da indústria cultural do país por meio do programa Cool Japan. Mas a honra recebida por Kurosawa pode se revelar embaraçosa; a nação retratada em Wife of a Spy é aquela que a extrema-direita do Japão, incluindo os membros do alto escalão do governo, preferiria que fosse esquecida e que tem se trabalhado para apagá-la da memória.
As missões japonesas no exterior rotineiramente criticam as representações do sistema de prostíbulos do Exército Imperial no período da guerra, em que as mulheres muitas vezes eram forçadas à escravidão sexual.
Em Tóquio, vans pretas frequentemente rondam as ruas espalhando propaganda que reescreve o papel do país na guerra. E as editoras publicam livros contestando as informações mais básicas sobre as atrocidades. Independentemente de sua lente ideológica, os filmes de guerra do Japão em grande parte têm ignorado as vítimas do imperialismo japonês. A direita fetichiza o espírito militar do país e a resistência silenciosa, enquanto a esquerda costuma lamentar o sofrimento dos soldados em campo e dos civis em casa.
Em entrevista recente, Kurosawa, de 65 anos – que não tem nenhuma relação com o famoso diretor Akira Kurosawa –, disse que era difícil entender por que os crimes de guerra do Japão permaneceram quase um tabu entre os cineastas do país mesmo depois de 75 anos do fim do conflito.
"Outros países produzem muitos filmes que falam habilmente da guerra sem ignorar os eventos terríveis que ocorreram. Wife of a Spy não é em absoluto um filme que tenta criar polêmica ou pretende ser escandaloso, mas não se pode fazer um filme que tenta fazer a história desaparecer", afirmou o cineasta, em um escritório alugado em Tóquio, onde assistentes atormentados disputavam espaço com equipes de TV e fotógrafos.
Segundo Kurosawa, ele foi atraído para a era da guerra porque ela apresenta uma paleta ideal para explorar a tensão entre as necessidades individuais e as demandas da sociedade. Esse é um tema frequente em seus filmes, em que os personagens muitas vezes se encontram à mercê de pressões sociais que não podem entender nem controlar.
"Nos tempos atuais, há um conflito, uma espécie de rivalidade entre a sociedade e o indivíduo, mas pelo menos na superfície há liberdade para você fazer o que quiser. Na época da guerra, porém, as exigências de conformidade tomam uma forma que você pode identificar claramente. Você não pode fazer isso. Deve fazer aquilo. Tem de vestir este tipo de roupa, ter este tipo de penteado", observou ele.
Em Wife of a Spy, esse conflito ganha forma em um drama de época sinistro que deve mais aos thrillers de Alfred Hitchcock do que à própria obra de terror de Kurosawa. O filme, que começa no período que antecede a guerra, conta a história do empenho de uma japonesa para ajudar seu marido comerciante a expor os experimentos humanos dos militares, depois que ele depara com eles durante uma viagem de negócios à China.
Milhares de vítimas, principalmente chinesas – eufemisticamente descritas como "toras" –, morreram nos medonhos esforços de pesquisa de armas biológicas da Unidade 731 do Exército. Algumas foram deliberadamente contaminadas com agentes patogênicos e, em seguida, dissecadas vivas, sem anestesia, para o estudo dos resultados. Depois da guerra, os Estados Unidos ajudaram a ocultar a pesquisa em parte porque queriam os dados.
O filme de Kurosawa deixa quase todo esse horror fora da tela. As provas das atrocidades se limitam a um discurso curto, alguns arquivos médicos e um pequeno rolo de filmagem mostrando médicos japoneses sorridentes presidindo cenas desumanas que lembram campos de concentração nazistas.
Como na vida real, os esforços nunca são expostos enquanto ainda estão em andamento. As tentativas de exposição do casal são sempre combatidas por um oficial impiedoso da polícia militar secreta do Japão. Mas sua presença é sentida em uma narrativa mais profunda que percorre as voltas e reviravoltas da trama, que fala dos custos, para a alma da nação, de esconder seus horrores. Segundo Kurosawa, parte do atrativo de ambientar o longa durante a guerra foi o desafio de fazer um filme cujo fim o público já conhece: um Japão derrotado e em chamas.
A conclusão da obra vai parecer familiar aos fãs dos filmes de Kurosawa, que muitas vezes terminam em apocalipse. Para o diretor, entretanto, essa destruição não sinaliza necessariamente o fim do mundo, mas o início de um novo. Diante de uma cena de caos e destruição mais infernal do que qualquer coisa retratada nos filmes de terror de Kurosawa, a heroína vê um país purificado pelo fogo e declara "que é uma coisa linda".
Wife of a Spy pode ser visto como uma espécie de prequela dos filmes de terror de Kurosawa, muitos dos quais são ambientados em uma Tóquio decadente, onde os fantasmas dos pecados passados exercem uma influência espectral e corruptora no presente. O cineasta começou a considerar seriamente a ideia de explorar o período da guerra enquanto trabalhava em Crimes Obscuros, um filme de terror de 2006 que examina como o espírito da tragédia reprimida estimula a violência moderna.
Embora o filme se passe na Tóquio contemporânea, Kurosawa observou que não conseguia escapar da sensação de que a história "em sua raiz era realmente sobre a guerra". "Como entretenimento, o projeto falhou em muitos níveis, mas levou a uma epifania. Se eu quisesse escrever sobre a guerra e seus efeitos, não poderia forçá-la a um ambiente moderno. Tinha de colocá-la em sua era", contou.
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