THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - “Eis aqui nosso momento Mágico de Oz”, disse a guia em uma tarde recente, antes de abrir uma porta e entrar no saguão do Museu Emily Dickinson. Esse não é o tipo de comentário que você espera ouvir na antiga casa de família de uma poetisa que persiste no imaginário público como uma mulher reclusa, sempre vestida de branco. Mas Dickinson também não é quem costumava ser.
Três anos atrás, o programa da Apple TV+ Dickinson - fantasia pós-moderna que muitos estudiosos abraçaram como fiel ao espírito radical da poetisa - trouxe-a para o século 21. E agora o museu reabriu, depois de uma reforma de dois anos que custou US$ 2,5 milhões, com a restauração dos interiores, que já foram austeros e esparsamente decorados, à sua glória da década de 1850, ricamente mobiliados, quase em Technicolor.
A decoração - o último estágio de um longo plano - inclui molduras pintadas à mão, papéis de parede recriados e tapetes chamativos com flores quase psicodélicas. E há por toda parte uma mistura perfeita de peças da família Dickinson e de seleções de um grande tesouro de móveis e adereços antigos doados no ano passado, em uma reviravolta inesperada, pelo programa da Apple.
“As pessoas vêm aqui com noções preconcebidas. Todo mundo conhece o mito: ela era estranha, reclusa, nunca se casou, só se vestia de branco, era obcecada pela morte - o que havia de errado com ela? Mas sua vida era colorida”, contou a guia, Melissa Cybulski, entrando no salão da frente, onde joaninhas voavam por uma janela. (“Muito Emily”, comentou.)
O trabalho de poucos escritores está tão entrelaçado com um lugar quanto o de Dickinson à casa de tijolos amarelos na 280 Main St., não muito longe do Amherst College. Ela nasceu aqui em 1830, e aqui morreu em 1886. Também foi aqui que escreveu seus mais de 1.800 poemas enigmáticos e radicalmente experimentais - e onde sua irmã, Lavinia Dickinson, descobriu cerca de 1.100 deles em uma cômoda trancada depois de sua morte, copiados ordenadamente em livros costurados à mão, conhecidos como fascículos.
Mesmo antes que se tornasse um museu em tempo integral na década de 1990, a casa era um local de peregrinação, com visitantes batendo regularmente à porta (ou simplesmente entrando sem avisar). E no século XXI o interesse continuou a crescer.
Desde 2001, o número de visitantes aumentou de cerca de sete mil por ano para cerca de 15 mil antes da pandemia, informou Jane Wald, diretora executiva do museu, em entrevista. E mesmo antes da reabertura em agosto, segundo ela, seus programas on-line mostraram um público cada vez mais jovem, inclusive da comunidade LGBTQ. (O seriado de TV apresenta Dickinson como sexualmente fluida, envolvida com pretendentes do sexo masculino e com sua melhor amiga e cunhada, Susan Dickinson - ideia apoiada por alguns estudiosos.)
“O seriado motivou uma nova audiência e também abriu uma janela de possibilidades para nosso público principal, tradicional”, afirmou Wald. Mas ela explicou que, mesmo antes disso, a missão da casa havia assumido uma abordagem mais expansiva, como se reflete em sua declaração de missão atual: “Despertar a imaginação, amplificando a voz poética revolucionária de Emily Dickinson a partir do lugar que ela chamava de lar.”
O museu na verdade consiste em duas casas, unidas em 2003, depois de uma das sagas mais complexas e controversas da história literária americana, conhecida nos círculos de Dickinson como “a guerra das casas”.
Do outro lado do gramado generoso de Homestead (como a casa principal é conhecida) fica a Evergreens, mansão construída para seu irmão, Austin Dickinson, e sua esposa, Susan. Depois da morte de Emily, Lavinia Dickinson entregou seus manuscritos a Susan, para que organizasse a publicação. Mas, diante da demora desta para cumprir a tarefa, eles foram enviados à escritora Mabel Loomis Todd, amante de Austin, que ajudou a editar a primeira coleção publicada da poesia de Dickinson.
O que se seguiu foi uma disputa complexa e multigeracional sobre o destino de seus manuscritos e outros artefatos. (Eles acabaram divididos entre o Amherst College e a Universidade Harvard, que hoje reivindica direitos autorais sobre todos os poemas, cartas e manuscritos de Dickinson.)
Homestead foi vendida em 1916, e depois comprada em 1965 pelo Amherst College, que a usou como moradia da faculdade (com a estipulação de que o cônjuge do membro do corpo docente fizesse a curadoria da casa e recebesse alguns visitantes).
A Evergreens, por sua vez, quase foi derrubada, de acordo com a vontade da sobrinha de Dickinson, Martha Dickinson. “Ela não queria vê-la tomada pela parafernália do futebol americano do Amherst College”, contou Wald, como foi o destino de outras residências transformadas em repúblicas estudantis da faculdade.
Quando Martha morreu em 1943, a Evergreens passou para seu amigo Alfred Hampson, e depois para sua viúva, Mary, que viveu lá até 1988, mantendo-a como um santuário e raramente admitindo visitantes. O Amherst adquiriu a casa em 2003, depois que uma decisão judicial a poupou da demolição.
Hoje, a Evergreens (atualmente fechada ao público para reparos) continua a ser uma cápsula do tempo magnificamente decrépita, com gesso e móveis em ruínas, e manchas desbotadas nas paredes onde os quadros ficavam pendurados. A Homestead, por outro lado, parece pronta, até mesmo com as pinhas colocadas artisticamente em cadeiras (para desencorajar o uso não autorizado).
A casa é apresentada como pode ter sido em 1855, quando os Dickinson voltaram para lá depois de um período de dificuldades financeiras, e quando Emily, então com 25 anos, começou seu período mais produtivo.
Para recriar a decoração da década de 1850, os pesquisadores do museu fizeram análises de lascas de tinta e procuraram restos de papel de parede deixados perto de rodapés e janelas. (Na biblioteca, Cybulski abriu um painel escondido na parede recém-coberta para mostrar um segredo: um arco-íris psicodélico de papéis de parede desbotados da década de 1830.)
A casa também é mobiliada com a poesia de Dickinson, de maneira às vezes sutil, começando com uma placa no banheiro que pede aos visitantes que não joguem papéis não autorizados no vaso (“O que posso fazer - farei - / Embora seja apenas um narciso”). Nos outros cômodos há fac-símiles dos manuscritos de Dickinson, incluindo poemas reproduzidos em cartas e escritos em envelopes e, até, em papéis de bala.
Então chegou a hora de entrar no santuário: o quarto de Dickinson. No cômodo com papel de parede rosa (restaurado em 2015), havia um (minúsculo) manequim de costura usando uma reprodução de um de seus famosos vestidos brancos e, do outro lado da cama, seu xale exuberantemente estampado. Uma reprodução de sua escrivaninha (a original está em Harvard) estava à janela voltada para o oeste, de acordo com as lembranças de Martha.
Antes, os passeios pela casa terminavam aqui. Mas agora, pela primeira vez, os visitantes também podem ver o pequeno quarto dos fundos, onde a mãe de Dickinson viveu por nove anos depois de sofrer um derrame paralisante, sendo cuidada por Emily, Lavinia e a empregada irlandesa da família, Margaret Maher. O quarto está conectado ao de Dickinson por um corredor escondido, enfatizando um papel menos notável que a poetisa desempenhou: o de cuidadora.
No fim do passeio, Cybulski levou os visitantes pela escada que levava à porta dos fundos, de onde o caixão de Dickinson seguiu para o cemitério vizinho em 1886. A inscrição em sua lápide é simples: “Chamada de volta.”
As multidões que ainda se reúnem em Amherst, afirmou Wald, mostram como a voz dessa escritora radical do século XIX ainda está presente. Ela disse que esperava que a casa oferecesse a cada visitante um caminho para a poesia e que estimulasse sua criatividade. “Porque foi isso que Emily Dickinson fez. Ela encontrou sua voz interior.”
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