COVENTRY, INGLATERRA – Passando pelas ruas arborizadas dos subúrbios, depois subindo e atravessando uma ponte estreita, o percurso dos cliclistas que se dirigem para o norte de Coventry parece tranquilo e fácil até que termina abruptamente numa estrada de quatro faixas congestionada e sem nenhuma rampa de acesso. Nesse ponto, com os carros rugindo, a escolha é difícil – descer da bicicleta e pegar uma passagem subterrânea de pedestres, ou ir para casa.
Como Detroit, o desenvolvimento de Coventry no século 20 se baseou na fabricação de carros e, embora as fábricas tenham desaparecido, a rede de rodovias é o que você esperaria da “Motor City” britânica. Hoje os ciclistas estão retomando sua luta com uma campanha que mistura a defesa da saúde, do meio ambiente, a pandemia do coronavírus, e a história.
“Se você olhar para a crise de saúde, a crise da qualidade do ar, a crise de obesidade, a crise da covid-19, novamente a bicicleta mostra que tem um real papel a desempenhar”, disse Adam Tranter, um defensor das bicicletas que nasceu e cresceu em Coventry, cidade cuja topografia, diz ele, deixou os ciclistas na faixa lenta da pista.
“A mensagem que ela transmite hoje é que Coventry é para carros e a única maneira de as pessoas se envolverem com sua cidade é de carro, o que é um pouco insano, na verdade”. E isto porque, como antes foi a capital do automóvel da Grã-Bretanha, a cidade de 360 mil habitantes está no centro da produção de bicicletas na Inglaterra.
Foi o know-how tecnológico da fabricação de bicicletas que colocou Coventry na vanguarda no campo da produção de veículos motorizados. Perto do anel rodoviário de quatro faixas que circunda a cidade, está uma estátua de James Starley, com uma inscrição que o descreve como o inventor da bicicleta.
Pode ser um exagero, mas Starley, que no século 19 era empregado da Coventry Sewing Machine Company, aprimorou o design do velocípede, o calhambeque famoso por suas grandes rodas dianteiras. Seu sobrinho, John Kemp Starley, desenvolveu o Rover Safety Bycicle, o projeto básico da bicicleta que se tornaria familiar para os ciclistas modernos. E foi em Coventry que isto aconteceu.
Tomar como base esse legado é um objetivo de Tranter, o primeiro “prefeito da bicicleta” de Coventry. Não é um cargo elegível, mas um título criado pela organização holandesa sem fins lucrativos BYCS. Como diretor de uma empresa de relações públicas, Tranter viu a oportunidade e obteve o aval de Chris Hoy, ciclista medalhista de ouro olímpico.
O momento é oportuno também. O primeiro ministro da Grã-Bretanha, Boris Johnson, quer incentivar o uso da bicicleta para reduzir a obesidade, um dos fatores de risco ligados à covid-19 (Johnson contraiu o vírus, passou um tempo numa unidade de terapia intensiva e falou sobre seu peso acima do normal). E com o governo desejando evitar multidões de pessoas em trens e ônibus para manter o distanciamento social na pandemia, e a preocupação em reduzir as emissões de carbono, muitos veem o ciclismo como parte do futuro.
Coventry também é uma grande parte do passado
Num passeio de bicicleta pela cidade, Tranter apontou para um hotel onde outrora funcionava a fábrica de bicicletas Quinton, fundada em 1890 e que mais tarde se tornou um centro de manufatura de automóveis e motocicletas. Próximo dali está a inconfundível, mesmo que dilapidada, Challenge Cycle, convertida hoje em apartamentos.
Elas são a lembrança de como, na década de 1890, a indústria de bicicletas era a maior empregadora de Coventry, com quatro mil trabalhadores em 77 empresas produtoras de bikes e suas peças. “Coventry foi o centro da produção de bicicletas”, disse Carlton Reid, escritor e historiador dos transportes. “Por isto ela se tornou a Detroit do Reino Unido. Todo o capital estava aqui, todo o know-how, o maquinário. A tecnologia da bicicleta foi transferida para a produção de carros”.
Em Coventry, em 1905, a fábrica Rudge fabricou um número recorde de 1.369 bicicletas em um dia. Mas companhias como Rover e Triumph começaram a fabricar motocicletas e carros. Em 1913, a cidade contava com 29 montadoras de carros, incluindo a Daimler, Humber, Swift e Standard.
E quando o carro passou a reinar, a cidade esqueceu o ciclista. “É uma ironia que Coventry seja tão hostil à bicicleta porque na sua origem elas eram feitas aqui. É um pesadelo. Não incentivo ninguém a andar de bicicleta por esta cidade”, disse Reid. Segundo ele, isso é reflexo do péssimo planejamento urbano e das mudanças resultantes da Segunda Guerra Mundial, quando a força aérea alemã bombardeou a cidade em 1940.
O ataque destruiu a catedral de Coventry (seus destroços foram abandonados ao lado da catedral moderna que a substituiu) e os urbanistas continuaram a reconstrução criando um centro moderno com um anel rodoviário em torno dela. Com pouco mais de três quilômetros de extensão, a construção levou mais de uma década, com um custo de US$ 19 milhões e foi concluído em 1970.
Foi uma declaração de fé no automóvel da Coventry pós-guerra. Na década de 1950, a Grã-Bretanha tinha a segunda maior indústria automotiva do mundo e Coventry produziu mais de 370 mil veículos nos três anos a partir de 1962. Mas o setor automotivo britânico decaiu muito depois disto e, no início da década de 1980, a taxa de desemprego na cidade disparou para 17%. Apesar de uma pequena recuperação nos anos 1990, a última grande montadora de Coventry fechou as portas em 2006.
O museu do transporte da cidade ilustra esta rica história, com exposições que vão de bicicletas do século 19 aos carros de corrida que quebraram recordes. Joy Corced, porta-voz do museu, reconheceu que o motor a combustão tornou a vida difícil para os ciclistas da cidade. “Toda vez que vejo alguém de bicicleta indo na direção do anel rodoviário acho que aquela pessoa é maluca”, disse ela.
Tranter disse que sua missão é ampliar o uso da bicicleta para além do “homem de meia idade em seu traje de lycra” e tirar lições das políticas favoráveis aos ciclistas adotadas pelas cidades na Holanda. “Afinal, ninguém retorna de Amsterdã e diz, ‘passei um tempo realmente bom por lá, mas gostaria que houvesse mais carros’”, disse ele. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO
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