CAIRO - Quando policiais infiltrados do Egito detiveram uma dançarina do ventre russa, o foco da investigação era a roupa usada por ela.
Será que a dançarina, conhecida como Johara, cujo vídeo enfeitiçante se tornou uma sensação do dia para a noite, estava usando os “shorts” corretos (nome oficial dado à roupa de baixo usada para proteger a decência)? Ou será que ela não usava short algum?
Johara, cujo verdadeiro nome é Ekaterina Andreeva, 30 anos, insistiu que era inocente, mas, ainda assim, a polícia a encaminhou para a prisão. Passados três dias, parecia que ela seria deportada. Mas, no último instante, um misterioso cavaleiro branco intercedeu e ela foi libertada.
Trata-se de uma história dramática digna da dança do ventre, uma forma de arte que existe há séculos e se baseia num jogo de intriga sensual.
Nas décadas mais recentes, a dança do ventre inspirou impulsos conflitantes entre os egípcios, que a consideram uma elevada forma de arte, mas também um entretenimento vulgar e um pretexto para julgamentos morais.
Mas o episódio vivido por Ekaterina também deixou em evidência uma questão polêmica: se o Cairo é a capital mundial da dança do ventre, por que as estrelas mais famosas dessa modalidade vêm de muitos outros países, mas nunca do Egito?
As estrangeiras têm dominado as posições de destaque no panorama da dança do ventre nos anos mais recentes - americanas, britânicas e brasileiras, mas, principalmente, mulheres do Leste Europeu.
"Vir ao Egito era o meu sonho", disse Alla Kushnir, 33 anos, que se apresentou no programa de TV "Ukraine's Got Talent" com um extravagante número de dança do ventre. Ela se mudou para o Cairo, a Broadway da dança do ventre, onde se tornou uma verdadeira estrela.
As estrangeiras trazem para a dança influências mais atléticas e cheias de energia, algo mais próximo da discoteca do que das mil e uma noites. Seus números coreografados contrastam com o estilo mais lânguido e sutilmente sugestivo das estrelas egípcias clássicas. Alguns são demasiadamente sexualizados.
Os puristas se queixam da invasão das estrangeiras, que apresentariam um arremedo cultural. Eles se queixam de forasteiros que se apropriam do patrimônio cultural árabe para lucrar, levando a dança do ventre para uma direção vulgar. E até algumas das estrangeiras concordam com essa opinião.
"Em muitos casos, nos falta a sutileza e a graça dos movimentos nuançados das egípcias", disse Diana Esposito, uma americana que veio ao Egito em 2008 graças a uma bolsa de estudos e ficou no país para seguir a carreira de dançarina.
E a dança egípcia ainda tem uma rainha inquestionável. Dina Talaat Sayed já dançou para príncipes, presidentes e ditadores ao longo de uma carreira que já dura quatro décadas. Dina também conhece a fundo as atitudes conflitantes dos egípcios em relação à sua profissão.
"Amor e ódio: as coisas sempre foram assim", contou ela. "Os egípcios não podem fazer seus casamentos sem uma dançarina do ventre. Mas se uma delas se casar com seu irmão… Meu Deus! Aí começam os problemas".
O estigma é parte de um crescente puritanismo que tem sufocado as artes no Egito nas últimas décadas. E, para muitas egípcias, o preço de uma carreira de dançarina do ventre pode ser alto demais.
Randa Kamel, administradora de uma escola de dança do ventre no Cairo que atrai estudantes de todo o mundo, foi espancada na adolescência pelo pai, que reprovava a dança. Mesmo hoje, o filho dela, de 17 anos, oculta a profissão da mãe em seu colégio particular. "É por isso que não me apresento na TV", disse ela. "Quero que meu filho tenha uma vida boa. Chega-se a um ponto em que a fama começa a ser prejudicial".
Ekaterina ainda não sabe ao certo o que motivou a batida policial da qual foi alvo em fevereiro, mas, desde então, sua agenda ficou lotada e seus talentos foram procurados pelos ricos e poderosos.
Ela reconheceu a dificuldade em alcançar o talento das dançarinas egípcias em alguns aspectos, mas compensa criando um elo com a energia do público egípcio. "A emoção deles é incrível", disse ela. “Sinto-me como uma estrela do rock".