De balas a ‘resíduos de pássaros’: as muitas provas pelas quais os telescópios passam


Antes que um observatório possa sondar os segredos do cosmos, ele deve enfrentar desafios mais humilhantes

Por Dennis Overbye

THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - Poucas coisas na ciência parecem ser tão delicadas ou precárias quanto os espelhos gigantes no coração dos telescópios modernos. Esses espelhos - rosquinhas de vidro com metros de diâmetro, pesando toneladas e custando milhões de dólares - são polidos dentro de uma fração de comprimento de onda da luz visível, de modo a obter a concavidade precisa necessária para coletar e focar a luz das estrelas do outro lado do universo.

Quando não estão trabalhando, eles são abrigados em altas cúpulas que os protegem das distorções da umidade, do vento e das mudanças de temperatura. Mas isso não pode protegê-los de todas as vicissitudes da natureza e da humanidade, como fui lembrado em uma recente visita ao Observatório Las Campanas, no Chile.

Enquanto meus anfitriões exibiam um de seus valiosos espelhos de telescópio - 6 metros de vidro revestido com alumínio, brilhante e imaculadamente curvo - não pude deixar de notar uma pequena mancha suspeita. Parecia o tipo de mancha que você encontraria no para-brisa pela manhã, especialmente se tivesse estacionado embaixo de uma árvore.

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“Pássaros”, resmungou um astrônomo quando perguntado o que era.

Acontece o tempo todo, dizem outros astrônomos. Michael Bolte, agora professor emérito da Universidade da Califórnia, em Santa Cruz, lembrou-se de ter feito um tour com o governador de Wyoming pelo Wyoming Infrared Observatory, nos arredores de Laramie, em 1981. “Subimos na plataforma de serviço e olhamos para baixo, e lá havia excrementos de pássaros por todo o espelho”, disse ele. “Foi horrível.”

Fezes de aves e acidentes que quebram espelhos estão entre os 'desafios' que um telescópio pode enfrentar enquanto tenta desvendar os segredos do universo.  Foto: Richard A. Chance/The New York Times
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Não são apenas os pássaros que podem estragar um espelho. Mike Brotherton, o atual diretor do observatório de Wyoming, postou uma foto no Facebook da geada que se acumulou em seu espelho enquanto a cúpula estava aberta para observação. “É difícil manter um espelho intacto”, disse ele. “É um equilíbrio entre abrir para receber os dados e proteger o espelho.”

Resíduos de pássaros têm um lugar especial na tradição astrofísica. No início dos anos 1960, os radioastrônomos Arno Penzias e Robert Wilson, ambos da Bell Labs, estavam tentando calibrar uma velha antena de chifre para estudar galáxias. Em um esforço para se livrar de um zumbido de fundo persistente, eles retiraram grandes quantidades de excremento de pombo de seu telescópio, apenas para finalmente descobrir que o zumbido era cósmico: eram os restos sibilantes da radiação do Big Bang, e se estabeleceu firmemente a questão de saber se o universo teve um começo distinto.

Felizmente, esses insultos biodegradáveis aos espelhos são temporários e não bloqueiam muita luz. Os observatórios lavam periodicamente seus espelhos, retiram os antigos revestimentos de alumínio e aplicam uma nova camada, o que envolve a remoção do espelho do telescópio.

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Essa operação pode ser delicada. No outono passado, o espelho primário de 8 metros de diâmetro do telescópio Gemini North, em Mauna Kea, no Havaí, foi cortado em sua borda externa enquanto era removido para limpeza e revestimento. O dano não foi na parte do espelho que coleta a luz, mas os gerentes do telescópio optaram por consertá-lo mesmo assim. Em 31 de março, Jen Lotz, diretora do observatório, informou que os reparos estavam completos e que o telescópio, ela esperava, voltaria a funcionar em maio.

Algumas coisas não são tão fáceis de consertar. Em 5 de fevereiro de 1970, um novo funcionário do Observatório McDonald, no oeste do Texas, levou uma arma para o trabalho e atirou, primeiro contra seu chefe e depois várias vezes à queima-roupa no espelho principal do novo telescópio refletor de 2,7 metros do observatório. Depois, atacou-o com um martelo.

Relatórios preliminares indicaram que o espelho havia sido destruído; quando o xerife chegou, ele notou que havia um grande buraco nele. Na verdade, o espelho, de um tipo comum chamado Cassegrain, foi projetado e construído com orifícios centrais para permitir a passagem da luz para os instrumentos atrás dele.

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Ninguém ficou ferido durante o ataque. Além de sete pequenos buracos de bala, que afetaram apenas cerca de 1% da área da superfície do espelho, o telescópio saiu praticamente ileso.

“O telescópio retomou seu programa de observação na noite seguinte”, relatou o diretor do observatório, Harlan Smith, da Universidade do Texas, à União Astronômica Internacional logo depois, “produzindo algumas das melhores fotografias (de campos de quasares) até agora obtidas com este instrumento em seu primeiro ano de uso.”

Ou seja, o vidro do telescópio é mais resistente do que você pensa. Quando visitei pela primeira vez o Telescópio Hale de cerca de 5 metros em Palomar Mountain, na Califórnia - um rito de passagem para um jovem escritor de ciências - fiquei surpreso ao descobrir, olhando para o cilindro do que era então o maior e mais famoso telescópio do mundo, uma fissura do tamanho de um prato de jantar deixada por uma ferramenta que um trabalhador havia derrubado anos antes.

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Bolte descreveu uma situação de emergência no Telescópio Canadá-França-Havaí em Mauna Kea. Ele e um colega estavam na cúpula, trabalhando em uma câmera do telescópio, quando perceberam que as tampas que normalmente protegiam o espelho estavam abertas. Eles conseguiram descer e fechar as tampas.

“Fizemos o que precisávamos e estávamos nos preparando para descer”, escreveu Bolte em uma conversa no Facebook. “Contamos todas as ferramentas que levamos para a gaiola de foco principal e nos certificamos de que a contagem da subida correspondia à contagem da descida. No momento em que eu estava dizendo a Bob: ‘Acho que falta uma ferramenta’, uma grande chave inglesa caiu da gaiola e fez um barulho incrível, batendo na tampa do espelho”.

O exemplo mais famoso do que pode dar errado com um espelho ocorreu em 1990, quando o Telescópio Espacial Hubble foi lançado com um espelho deformado que não conseguia focar.

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Os astronautas conseguiram consertá-lo e o Hubble continua funcionando bem. Mas o episódio levou a NASA a ser mais cautelosa com o sucessor do Hubble, o Telescópio Espacial James Webb, agendando testes extensivos que aumentaram muito o custo e o tempo de construção do telescópio.

O Webb foi lançado de forma espetacular e bem-sucedida em 25 de dezembro de 2021, mas o espaço também é uma galeria de tiro. O telescópio mal havia começado a funcionar quando foi atingido por um micrometeorito maior do que o esperado, que deixou uma pequena cratera em um dos segmentos do espelho do telescópio. Desde então, a NASA modificou seus protocolos para minimizar a quantidade de tempo que o telescópio fica apontado para os fluxos de meteoros.

E por aí vai. O cosmos tem uma maneira de guardar seus segredos. /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times

THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - Poucas coisas na ciência parecem ser tão delicadas ou precárias quanto os espelhos gigantes no coração dos telescópios modernos. Esses espelhos - rosquinhas de vidro com metros de diâmetro, pesando toneladas e custando milhões de dólares - são polidos dentro de uma fração de comprimento de onda da luz visível, de modo a obter a concavidade precisa necessária para coletar e focar a luz das estrelas do outro lado do universo.

Quando não estão trabalhando, eles são abrigados em altas cúpulas que os protegem das distorções da umidade, do vento e das mudanças de temperatura. Mas isso não pode protegê-los de todas as vicissitudes da natureza e da humanidade, como fui lembrado em uma recente visita ao Observatório Las Campanas, no Chile.

Enquanto meus anfitriões exibiam um de seus valiosos espelhos de telescópio - 6 metros de vidro revestido com alumínio, brilhante e imaculadamente curvo - não pude deixar de notar uma pequena mancha suspeita. Parecia o tipo de mancha que você encontraria no para-brisa pela manhã, especialmente se tivesse estacionado embaixo de uma árvore.

“Pássaros”, resmungou um astrônomo quando perguntado o que era.

Acontece o tempo todo, dizem outros astrônomos. Michael Bolte, agora professor emérito da Universidade da Califórnia, em Santa Cruz, lembrou-se de ter feito um tour com o governador de Wyoming pelo Wyoming Infrared Observatory, nos arredores de Laramie, em 1981. “Subimos na plataforma de serviço e olhamos para baixo, e lá havia excrementos de pássaros por todo o espelho”, disse ele. “Foi horrível.”

Fezes de aves e acidentes que quebram espelhos estão entre os 'desafios' que um telescópio pode enfrentar enquanto tenta desvendar os segredos do universo.  Foto: Richard A. Chance/The New York Times

Não são apenas os pássaros que podem estragar um espelho. Mike Brotherton, o atual diretor do observatório de Wyoming, postou uma foto no Facebook da geada que se acumulou em seu espelho enquanto a cúpula estava aberta para observação. “É difícil manter um espelho intacto”, disse ele. “É um equilíbrio entre abrir para receber os dados e proteger o espelho.”

Resíduos de pássaros têm um lugar especial na tradição astrofísica. No início dos anos 1960, os radioastrônomos Arno Penzias e Robert Wilson, ambos da Bell Labs, estavam tentando calibrar uma velha antena de chifre para estudar galáxias. Em um esforço para se livrar de um zumbido de fundo persistente, eles retiraram grandes quantidades de excremento de pombo de seu telescópio, apenas para finalmente descobrir que o zumbido era cósmico: eram os restos sibilantes da radiação do Big Bang, e se estabeleceu firmemente a questão de saber se o universo teve um começo distinto.

Felizmente, esses insultos biodegradáveis aos espelhos são temporários e não bloqueiam muita luz. Os observatórios lavam periodicamente seus espelhos, retiram os antigos revestimentos de alumínio e aplicam uma nova camada, o que envolve a remoção do espelho do telescópio.

Essa operação pode ser delicada. No outono passado, o espelho primário de 8 metros de diâmetro do telescópio Gemini North, em Mauna Kea, no Havaí, foi cortado em sua borda externa enquanto era removido para limpeza e revestimento. O dano não foi na parte do espelho que coleta a luz, mas os gerentes do telescópio optaram por consertá-lo mesmo assim. Em 31 de março, Jen Lotz, diretora do observatório, informou que os reparos estavam completos e que o telescópio, ela esperava, voltaria a funcionar em maio.

Algumas coisas não são tão fáceis de consertar. Em 5 de fevereiro de 1970, um novo funcionário do Observatório McDonald, no oeste do Texas, levou uma arma para o trabalho e atirou, primeiro contra seu chefe e depois várias vezes à queima-roupa no espelho principal do novo telescópio refletor de 2,7 metros do observatório. Depois, atacou-o com um martelo.

Relatórios preliminares indicaram que o espelho havia sido destruído; quando o xerife chegou, ele notou que havia um grande buraco nele. Na verdade, o espelho, de um tipo comum chamado Cassegrain, foi projetado e construído com orifícios centrais para permitir a passagem da luz para os instrumentos atrás dele.

Ninguém ficou ferido durante o ataque. Além de sete pequenos buracos de bala, que afetaram apenas cerca de 1% da área da superfície do espelho, o telescópio saiu praticamente ileso.

“O telescópio retomou seu programa de observação na noite seguinte”, relatou o diretor do observatório, Harlan Smith, da Universidade do Texas, à União Astronômica Internacional logo depois, “produzindo algumas das melhores fotografias (de campos de quasares) até agora obtidas com este instrumento em seu primeiro ano de uso.”

Ou seja, o vidro do telescópio é mais resistente do que você pensa. Quando visitei pela primeira vez o Telescópio Hale de cerca de 5 metros em Palomar Mountain, na Califórnia - um rito de passagem para um jovem escritor de ciências - fiquei surpreso ao descobrir, olhando para o cilindro do que era então o maior e mais famoso telescópio do mundo, uma fissura do tamanho de um prato de jantar deixada por uma ferramenta que um trabalhador havia derrubado anos antes.

Bolte descreveu uma situação de emergência no Telescópio Canadá-França-Havaí em Mauna Kea. Ele e um colega estavam na cúpula, trabalhando em uma câmera do telescópio, quando perceberam que as tampas que normalmente protegiam o espelho estavam abertas. Eles conseguiram descer e fechar as tampas.

“Fizemos o que precisávamos e estávamos nos preparando para descer”, escreveu Bolte em uma conversa no Facebook. “Contamos todas as ferramentas que levamos para a gaiola de foco principal e nos certificamos de que a contagem da subida correspondia à contagem da descida. No momento em que eu estava dizendo a Bob: ‘Acho que falta uma ferramenta’, uma grande chave inglesa caiu da gaiola e fez um barulho incrível, batendo na tampa do espelho”.

O exemplo mais famoso do que pode dar errado com um espelho ocorreu em 1990, quando o Telescópio Espacial Hubble foi lançado com um espelho deformado que não conseguia focar.

Os astronautas conseguiram consertá-lo e o Hubble continua funcionando bem. Mas o episódio levou a NASA a ser mais cautelosa com o sucessor do Hubble, o Telescópio Espacial James Webb, agendando testes extensivos que aumentaram muito o custo e o tempo de construção do telescópio.

O Webb foi lançado de forma espetacular e bem-sucedida em 25 de dezembro de 2021, mas o espaço também é uma galeria de tiro. O telescópio mal havia começado a funcionar quando foi atingido por um micrometeorito maior do que o esperado, que deixou uma pequena cratera em um dos segmentos do espelho do telescópio. Desde então, a NASA modificou seus protocolos para minimizar a quantidade de tempo que o telescópio fica apontado para os fluxos de meteoros.

E por aí vai. O cosmos tem uma maneira de guardar seus segredos. /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

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THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - Poucas coisas na ciência parecem ser tão delicadas ou precárias quanto os espelhos gigantes no coração dos telescópios modernos. Esses espelhos - rosquinhas de vidro com metros de diâmetro, pesando toneladas e custando milhões de dólares - são polidos dentro de uma fração de comprimento de onda da luz visível, de modo a obter a concavidade precisa necessária para coletar e focar a luz das estrelas do outro lado do universo.

Quando não estão trabalhando, eles são abrigados em altas cúpulas que os protegem das distorções da umidade, do vento e das mudanças de temperatura. Mas isso não pode protegê-los de todas as vicissitudes da natureza e da humanidade, como fui lembrado em uma recente visita ao Observatório Las Campanas, no Chile.

Enquanto meus anfitriões exibiam um de seus valiosos espelhos de telescópio - 6 metros de vidro revestido com alumínio, brilhante e imaculadamente curvo - não pude deixar de notar uma pequena mancha suspeita. Parecia o tipo de mancha que você encontraria no para-brisa pela manhã, especialmente se tivesse estacionado embaixo de uma árvore.

“Pássaros”, resmungou um astrônomo quando perguntado o que era.

Acontece o tempo todo, dizem outros astrônomos. Michael Bolte, agora professor emérito da Universidade da Califórnia, em Santa Cruz, lembrou-se de ter feito um tour com o governador de Wyoming pelo Wyoming Infrared Observatory, nos arredores de Laramie, em 1981. “Subimos na plataforma de serviço e olhamos para baixo, e lá havia excrementos de pássaros por todo o espelho”, disse ele. “Foi horrível.”

Fezes de aves e acidentes que quebram espelhos estão entre os 'desafios' que um telescópio pode enfrentar enquanto tenta desvendar os segredos do universo.  Foto: Richard A. Chance/The New York Times

Não são apenas os pássaros que podem estragar um espelho. Mike Brotherton, o atual diretor do observatório de Wyoming, postou uma foto no Facebook da geada que se acumulou em seu espelho enquanto a cúpula estava aberta para observação. “É difícil manter um espelho intacto”, disse ele. “É um equilíbrio entre abrir para receber os dados e proteger o espelho.”

Resíduos de pássaros têm um lugar especial na tradição astrofísica. No início dos anos 1960, os radioastrônomos Arno Penzias e Robert Wilson, ambos da Bell Labs, estavam tentando calibrar uma velha antena de chifre para estudar galáxias. Em um esforço para se livrar de um zumbido de fundo persistente, eles retiraram grandes quantidades de excremento de pombo de seu telescópio, apenas para finalmente descobrir que o zumbido era cósmico: eram os restos sibilantes da radiação do Big Bang, e se estabeleceu firmemente a questão de saber se o universo teve um começo distinto.

Felizmente, esses insultos biodegradáveis aos espelhos são temporários e não bloqueiam muita luz. Os observatórios lavam periodicamente seus espelhos, retiram os antigos revestimentos de alumínio e aplicam uma nova camada, o que envolve a remoção do espelho do telescópio.

Essa operação pode ser delicada. No outono passado, o espelho primário de 8 metros de diâmetro do telescópio Gemini North, em Mauna Kea, no Havaí, foi cortado em sua borda externa enquanto era removido para limpeza e revestimento. O dano não foi na parte do espelho que coleta a luz, mas os gerentes do telescópio optaram por consertá-lo mesmo assim. Em 31 de março, Jen Lotz, diretora do observatório, informou que os reparos estavam completos e que o telescópio, ela esperava, voltaria a funcionar em maio.

Algumas coisas não são tão fáceis de consertar. Em 5 de fevereiro de 1970, um novo funcionário do Observatório McDonald, no oeste do Texas, levou uma arma para o trabalho e atirou, primeiro contra seu chefe e depois várias vezes à queima-roupa no espelho principal do novo telescópio refletor de 2,7 metros do observatório. Depois, atacou-o com um martelo.

Relatórios preliminares indicaram que o espelho havia sido destruído; quando o xerife chegou, ele notou que havia um grande buraco nele. Na verdade, o espelho, de um tipo comum chamado Cassegrain, foi projetado e construído com orifícios centrais para permitir a passagem da luz para os instrumentos atrás dele.

Ninguém ficou ferido durante o ataque. Além de sete pequenos buracos de bala, que afetaram apenas cerca de 1% da área da superfície do espelho, o telescópio saiu praticamente ileso.

“O telescópio retomou seu programa de observação na noite seguinte”, relatou o diretor do observatório, Harlan Smith, da Universidade do Texas, à União Astronômica Internacional logo depois, “produzindo algumas das melhores fotografias (de campos de quasares) até agora obtidas com este instrumento em seu primeiro ano de uso.”

Ou seja, o vidro do telescópio é mais resistente do que você pensa. Quando visitei pela primeira vez o Telescópio Hale de cerca de 5 metros em Palomar Mountain, na Califórnia - um rito de passagem para um jovem escritor de ciências - fiquei surpreso ao descobrir, olhando para o cilindro do que era então o maior e mais famoso telescópio do mundo, uma fissura do tamanho de um prato de jantar deixada por uma ferramenta que um trabalhador havia derrubado anos antes.

Bolte descreveu uma situação de emergência no Telescópio Canadá-França-Havaí em Mauna Kea. Ele e um colega estavam na cúpula, trabalhando em uma câmera do telescópio, quando perceberam que as tampas que normalmente protegiam o espelho estavam abertas. Eles conseguiram descer e fechar as tampas.

“Fizemos o que precisávamos e estávamos nos preparando para descer”, escreveu Bolte em uma conversa no Facebook. “Contamos todas as ferramentas que levamos para a gaiola de foco principal e nos certificamos de que a contagem da subida correspondia à contagem da descida. No momento em que eu estava dizendo a Bob: ‘Acho que falta uma ferramenta’, uma grande chave inglesa caiu da gaiola e fez um barulho incrível, batendo na tampa do espelho”.

O exemplo mais famoso do que pode dar errado com um espelho ocorreu em 1990, quando o Telescópio Espacial Hubble foi lançado com um espelho deformado que não conseguia focar.

Os astronautas conseguiram consertá-lo e o Hubble continua funcionando bem. Mas o episódio levou a NASA a ser mais cautelosa com o sucessor do Hubble, o Telescópio Espacial James Webb, agendando testes extensivos que aumentaram muito o custo e o tempo de construção do telescópio.

O Webb foi lançado de forma espetacular e bem-sucedida em 25 de dezembro de 2021, mas o espaço também é uma galeria de tiro. O telescópio mal havia começado a funcionar quando foi atingido por um micrometeorito maior do que o esperado, que deixou uma pequena cratera em um dos segmentos do espelho do telescópio. Desde então, a NASA modificou seus protocolos para minimizar a quantidade de tempo que o telescópio fica apontado para os fluxos de meteoros.

E por aí vai. O cosmos tem uma maneira de guardar seus segredos. /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times

THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - Poucas coisas na ciência parecem ser tão delicadas ou precárias quanto os espelhos gigantes no coração dos telescópios modernos. Esses espelhos - rosquinhas de vidro com metros de diâmetro, pesando toneladas e custando milhões de dólares - são polidos dentro de uma fração de comprimento de onda da luz visível, de modo a obter a concavidade precisa necessária para coletar e focar a luz das estrelas do outro lado do universo.

Quando não estão trabalhando, eles são abrigados em altas cúpulas que os protegem das distorções da umidade, do vento e das mudanças de temperatura. Mas isso não pode protegê-los de todas as vicissitudes da natureza e da humanidade, como fui lembrado em uma recente visita ao Observatório Las Campanas, no Chile.

Enquanto meus anfitriões exibiam um de seus valiosos espelhos de telescópio - 6 metros de vidro revestido com alumínio, brilhante e imaculadamente curvo - não pude deixar de notar uma pequena mancha suspeita. Parecia o tipo de mancha que você encontraria no para-brisa pela manhã, especialmente se tivesse estacionado embaixo de uma árvore.

“Pássaros”, resmungou um astrônomo quando perguntado o que era.

Acontece o tempo todo, dizem outros astrônomos. Michael Bolte, agora professor emérito da Universidade da Califórnia, em Santa Cruz, lembrou-se de ter feito um tour com o governador de Wyoming pelo Wyoming Infrared Observatory, nos arredores de Laramie, em 1981. “Subimos na plataforma de serviço e olhamos para baixo, e lá havia excrementos de pássaros por todo o espelho”, disse ele. “Foi horrível.”

Fezes de aves e acidentes que quebram espelhos estão entre os 'desafios' que um telescópio pode enfrentar enquanto tenta desvendar os segredos do universo.  Foto: Richard A. Chance/The New York Times

Não são apenas os pássaros que podem estragar um espelho. Mike Brotherton, o atual diretor do observatório de Wyoming, postou uma foto no Facebook da geada que se acumulou em seu espelho enquanto a cúpula estava aberta para observação. “É difícil manter um espelho intacto”, disse ele. “É um equilíbrio entre abrir para receber os dados e proteger o espelho.”

Resíduos de pássaros têm um lugar especial na tradição astrofísica. No início dos anos 1960, os radioastrônomos Arno Penzias e Robert Wilson, ambos da Bell Labs, estavam tentando calibrar uma velha antena de chifre para estudar galáxias. Em um esforço para se livrar de um zumbido de fundo persistente, eles retiraram grandes quantidades de excremento de pombo de seu telescópio, apenas para finalmente descobrir que o zumbido era cósmico: eram os restos sibilantes da radiação do Big Bang, e se estabeleceu firmemente a questão de saber se o universo teve um começo distinto.

Felizmente, esses insultos biodegradáveis aos espelhos são temporários e não bloqueiam muita luz. Os observatórios lavam periodicamente seus espelhos, retiram os antigos revestimentos de alumínio e aplicam uma nova camada, o que envolve a remoção do espelho do telescópio.

Essa operação pode ser delicada. No outono passado, o espelho primário de 8 metros de diâmetro do telescópio Gemini North, em Mauna Kea, no Havaí, foi cortado em sua borda externa enquanto era removido para limpeza e revestimento. O dano não foi na parte do espelho que coleta a luz, mas os gerentes do telescópio optaram por consertá-lo mesmo assim. Em 31 de março, Jen Lotz, diretora do observatório, informou que os reparos estavam completos e que o telescópio, ela esperava, voltaria a funcionar em maio.

Algumas coisas não são tão fáceis de consertar. Em 5 de fevereiro de 1970, um novo funcionário do Observatório McDonald, no oeste do Texas, levou uma arma para o trabalho e atirou, primeiro contra seu chefe e depois várias vezes à queima-roupa no espelho principal do novo telescópio refletor de 2,7 metros do observatório. Depois, atacou-o com um martelo.

Relatórios preliminares indicaram que o espelho havia sido destruído; quando o xerife chegou, ele notou que havia um grande buraco nele. Na verdade, o espelho, de um tipo comum chamado Cassegrain, foi projetado e construído com orifícios centrais para permitir a passagem da luz para os instrumentos atrás dele.

Ninguém ficou ferido durante o ataque. Além de sete pequenos buracos de bala, que afetaram apenas cerca de 1% da área da superfície do espelho, o telescópio saiu praticamente ileso.

“O telescópio retomou seu programa de observação na noite seguinte”, relatou o diretor do observatório, Harlan Smith, da Universidade do Texas, à União Astronômica Internacional logo depois, “produzindo algumas das melhores fotografias (de campos de quasares) até agora obtidas com este instrumento em seu primeiro ano de uso.”

Ou seja, o vidro do telescópio é mais resistente do que você pensa. Quando visitei pela primeira vez o Telescópio Hale de cerca de 5 metros em Palomar Mountain, na Califórnia - um rito de passagem para um jovem escritor de ciências - fiquei surpreso ao descobrir, olhando para o cilindro do que era então o maior e mais famoso telescópio do mundo, uma fissura do tamanho de um prato de jantar deixada por uma ferramenta que um trabalhador havia derrubado anos antes.

Bolte descreveu uma situação de emergência no Telescópio Canadá-França-Havaí em Mauna Kea. Ele e um colega estavam na cúpula, trabalhando em uma câmera do telescópio, quando perceberam que as tampas que normalmente protegiam o espelho estavam abertas. Eles conseguiram descer e fechar as tampas.

“Fizemos o que precisávamos e estávamos nos preparando para descer”, escreveu Bolte em uma conversa no Facebook. “Contamos todas as ferramentas que levamos para a gaiola de foco principal e nos certificamos de que a contagem da subida correspondia à contagem da descida. No momento em que eu estava dizendo a Bob: ‘Acho que falta uma ferramenta’, uma grande chave inglesa caiu da gaiola e fez um barulho incrível, batendo na tampa do espelho”.

O exemplo mais famoso do que pode dar errado com um espelho ocorreu em 1990, quando o Telescópio Espacial Hubble foi lançado com um espelho deformado que não conseguia focar.

Os astronautas conseguiram consertá-lo e o Hubble continua funcionando bem. Mas o episódio levou a NASA a ser mais cautelosa com o sucessor do Hubble, o Telescópio Espacial James Webb, agendando testes extensivos que aumentaram muito o custo e o tempo de construção do telescópio.

O Webb foi lançado de forma espetacular e bem-sucedida em 25 de dezembro de 2021, mas o espaço também é uma galeria de tiro. O telescópio mal havia começado a funcionar quando foi atingido por um micrometeorito maior do que o esperado, que deixou uma pequena cratera em um dos segmentos do espelho do telescópio. Desde então, a NASA modificou seus protocolos para minimizar a quantidade de tempo que o telescópio fica apontado para os fluxos de meteoros.

E por aí vai. O cosmos tem uma maneira de guardar seus segredos. /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

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