NOVA YORK - Era uma manhã aleatória de novembro e só se falava em Enheduanna.
De repente, a antiga sacerdotisa da Mesopotâmia, que estava morta há mais de 4 mil anos, tornou-se um tema quente online quando se espalhou a notícia de que o primeiro autor nomeado individualmente na história da humanidade era … uma mulher?
Pode ter sido uma notícia antiga na Morgan Library & Museum, onde Sidney Babcock, curador de longa data de antiguidades do antigo Oriente Próximo, estava prestes a oferecer um tour de sua nova exposição She Who Wrote: Enheduanna and Women of Mesopotamia, ca. 3400-2000 B.C (Ela que escreveu: Enheduanna e as Mulheres da Mesopotâmia, circa 3400-2000 a.C). Babcock ficou entusiasmado com a atenção, para não dizer admirado com a surpresa do público.
Pergunte às pessoas quem foi o primeiro autor e elas podem dizer Homero ou Heródoto. “As pessoas não têm ideia”, ele disse. “Elas simplesmente não acreditam que possa ser uma mulher” - e que ela estava escrevendo mais de um milênio antes de qualquer um deles, com uma voz incrivelmente pessoal.
A obra de Enheduanna celebra os deuses e o poder do império acadiano, que governou o atual Iraque por volta de 2350 a.C. até 2150 a.C. Mas também descreve assuntos mais sórdidos e terrenos, incluindo o abuso que sofreu nas mãos de um sacerdote corrupto - a primeira referência ao assédio sexual na literatura mundial, argumenta o programa.
“É a primeira vez que alguém dá um passo à frente e usa a primeira pessoa do singular e faz uma autobiografia”, disse Babcock. “E é profundo.”
Enheduanna é conhecida desde 1927, quando arqueólogos que trabalhavam na antiga cidade de Ur escavaram um disco de pedra com seu nome (escrito com símbolos semelhantes a estrelas) e imagem, identificando-a como a filha do rei Sargão de Akkad, a esposa do deus da lua Nanna e uma sacerdotisa.
Nas décadas que se seguiram, suas obras - cerca de 42 hinos do templo e três poemas independentes, incluindo A Exaltação de Inanna - foram reunidas a partir de mais de 100 cópias sobreviventes feitas em tabuletas de argila.
Enquanto isso, Enheduanna foi repetidamente descoberta, esquecida e depois descoberta novamente pela cultura mais ampla. No outono passado, a Exaltação foi adicionada ao famoso currículo básico do primeiro ano da Universidade de Columbia. E agora há a exposição na Morgan, que celebra sua singularidade ao mesmo tempo em que a insere em uma história profunda de mulheres, letramento e poder que remonta quase às antigas origens mesopotâmicas da própria escrita.
A exposição, aberta até 19 de fevereiro, também é um canto do cisne para Babcock, que se aposentará no ano que vem, após quase três décadas na Morgan. A ideia começou a surgir há cerca de 25 anos, ele disse, quando viu o nome de Enheduanna em um selo cilíndrico de lápis-lazúli pertencente a um de seus escribas - um dos cinco artefatos em que seu nome é atestado independentemente de cópias de sua poesia.
Ele vê She Who Wrote - que reúne objetos de nove instituições ao redor do mundo - como parte da longa história de exposições de escritoras como Mary Shelley, Charlotte Brontë e Emily Dickinson.
É também uma homenagem a uma longa cadeia de estudiosas, incluindo sua professora, Edith Porada, a primeira curadora da célebre coleção de mais de 1.000 selos da J. Pierpont Morgan.
Porada, nascida em Viena, fugiu da Europa em 1938, após a Noite dos Cristais. Uma das poucas coisas que ela trouxe para Nova York foi a cópia de sua dissertação, com seus desenhos de impressões de selos de coleções europeias, que ela apresentou a Belle da Costa Greene, a primeira diretora da Morgan.
Na antiga Mesopotâmia, os selos cilíndricos - muitas vezes esculpidos com cenas primorosamente detalhadas - eram usados para o carimbo exclusivo do proprietário em um documento produzido por escribas, atestando sua autenticidade.
“Pela primeira vez”, disse Babcock, “você tem uma imagem que representa um indivíduo conectado com aquilo pelo qual ele é responsável”.
Desde 2010, cerca de 100 dos selos da Morgan estão em exibição permanente no antigo escritório de Greene, no opulento prédio original da biblioteca. Mas durante anos eles foram guardados em um armário de aço como os de academias em um porão, onde Porada realizava um seminário semanal.
“Nós nos sentávamos e da bolsa dela saía uma pequena bolsinha com uma chave dentro”, lembrou Babcock. “Ela abria outro armário e dentro de uma latinha de Sucrets havia outra chave. Então a gente suspirava - do armário viria esta coleção lendária.”
Entrando na galeria, Babcock (que fez a curadoria da mostra com Erhan Tamur, curador do Metropolitan Museum) parou em frente a uma minúscula escultura de alabastro de uma mulher sentada, de cerca de 2.000 a.C. Ela está usando a mesma roupa de babados vista na imagem de Enheduanna no disco encontrado em 1927 e tem os mesmos traços aquilinos. Uma tabuleta cuneiforme repousa em seu colo, como se ela estivesse pronta para escrever.
É Enheduanna?
“Meus colegas não me deixam ir tão longe”, disse Babcock. Mas a figura “certamente representa a ideia do que ela significa - mulheres e letramento, ao longo de sucessivas gerações”.
Muitas das esculturas em exibição, argumenta a mostra, retratam indivíduos reais, não mulheres genéricas. “Este foi o começo do retrato”, disse Babcock. E ao longo de uma excursão de quase duas horas, ele interrompeu repetidamente sua narrativa para se maravilhar com a beleza desta ou daquela figura, como se visse um amigo elegante do outro lado da sala.
No centro da galeria está um item que provocaria o frenesi dos paparazzi em qualquer Met Gala: um espetacular conjunto funerário da tumba de Puabi, uma rainha suméria que viveu por volta de 2500 a.C., completo com um elaborado cocar de ouro batido e fios em cascata de pedras semipreciosas.
Mas igualmente notável, para Babcock, é o alfinete de ouro exibido nas proximidades, que teria prendido amuletos e selos cilíndricos, como o esculpido em lápis-lazúli encontrado no corpo de Puabi.
Enheduanna viveu três séculos depois de Puabi, seguindo a ascendência dos acadianos, que uniram os falantes das línguas suméria e acadiana. Comparado com o conjunto de Puabi, seus resquícios sobreviventes podem parecer sem graça.
Mas a glória de Enheduanna está em suas palavras, algumas das quais abordam preocupações surpreendentemente contemporâneas.
Alguns estudiosos questionaram se Enheduanna escreveu os poemas atribuídos a ela. Mesmo que ela fosse uma pessoa real, eles argumentam, as obras - escritas em sumério e conhecidas apenas por cópias feitas centenas de anos depois de sua vida - podem ter sido escritas posteriormente e atribuídas a ela, como uma forma de reforçar o legado do rei Sargão.
Mas se Enheduanna era uma autora real ou um símbolo de uma, ela não estava sozinha. A recente antologia Women’s Writing of Ancient Mesopotamia reúne cerca de 100 hinos, poemas, cartas, inscrições e outros textos de autoria feminina.
Em uma passagem de Exaltação - única em toda a literatura da Mesopotâmia, disse Babcock - Enheduanna se descreve como “dando à luz” ao poema. “Aquilo que cantei para vocês à meia-noite”, ela escreveu, “que seja repetido ao meio-dia”.
E foi repetido. Enquanto o império acadiano entrou em colapso em 2137 a.C., os poemas de Enheduanna continuaram a ser copiados por séculos, como parte do treinamento padrão dos escribas.
Por volta de 500 a.C., Enheduanna foi “completamente esquecida”, disse Babcock. Mas até fevereiro, ela e suas companheiras da Mesopotâmia comandarão a sala da Morgan.
“Até as costas são tão requintadas”, disse Babcock, dando uma última olhada nas figuras de pedra antes de retornar ao seu escritório. “Pode ser difícil ir embora.” /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES
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