Ditadura militar argentina faz Mariana Enríquez encontrar o ‘verdadeiro horror’ na vida real


A escritora argentina emprega - e gosta - das convenções do terror., mas em ‘Nossa Parte de Noite’, ela lembra aos leitores que a violência com a qual vivemos pode ser muito mais assustadora

Por Benjamin P. Russell

THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - A infância de Mariana Enríquez foi marcada pelo absurdo sombrio do autoritarismo. Sob a ditadura militar que governou a Argentina de 1976 a 1983, um medo latente permeava até os aspectos mais mundanos da vida.

Organizar uma festa de aniversário exigia permissão das autoridades locais. As conversas eram potencialmente perigosas: quando criança, ela sabia que certas coisas que podiam ser discutidas em casa eram proibidas em público, mas não entendia bem o porquê. O medo de deixar escapar um pensamento errado a deixou sombria, ela disse, e a empurrou para “livros e coisas muito solitárias”.

Quando a ditadura caiu em 1983 e seus líderes foram levados a julgamento dois anos depois, o testemunho de suas vítimas tornou-se inescapável na sociedade argentina, disse Enríquez. Cercada por isso, ela não teve escolha a não ser fechar as lacunas em seu entendimento. Os relatos de prisão, tortura, desaparecimento e assassinato representaram sua primeira exposição ao “verdadeiro horror”, ela disse, e mais tarde se tornariam um fio condutor de seu trabalho, repleto de fantasmas, demônios e contos do oculto.

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“Em vez de me mandar para a cama, meu pai dizia: ‘Viu como eles eram ruins?’”, disse Enríquez, descrevendo o testemunho dos julgamentos que ela ouviu no rádio ao lado de seu pai. Em um caso, ela disse, uma mulher descreveu ter sido torturada com choques elétricos enquanto estava grávida.

“Ele nunca pensou que isso poderia me perturbar, ou pior, ele pensou que era algo que eu precisava saber.”

Mariana Enríquez disse que seu trabalho devolve a violência e os traumas que fazem parte da vida “ao reino do horrível, ao invés do cotidiano ao qual nos acostumamos”. Foto: Anita Pouchard Serra/The New York Times
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Os terrores que tomaram conta da Argentina nas décadas de 1970 e 1980 - aqueles que tanto perturbaram Enríquez quando criança - aparecem fortemente no pano de fundo de seu último romance, Nossa Parte de Noite. Lançado nos Estados Unidos pela Hogarth, centra-se em um médium, Juan, e seu filho, Gaspar, enquanto tentam enganar uma sociedade secreta maléfica empenhada na vida eterna. Os sustos são abundantes. Mas enquanto Enríquez se deleita com convenções de terror, sua escrita também insta os leitores a se lembrarem de que são as monstruosidades da vida real que realmente devem assustar.

A violência na América Latina foi normalizada a ponto de a reação das pessoas se tornar moderada, ela disse. “Expor o horror, incluindo os sustos, incluindo o sangue, incluindo as partes que têm a ver com pensamentos sobre o mal, é como devolver essas coisas ao reino do horrível, ao invés do cotidiano ao qual nos acostumamos.” disse Enríquez.

Autora de quatro romances, duas coleções de contos e uma série de histórias, biografias e textos jornalísticos, Enríquez, 49, consolidou sua posição como uma figura importante da ficção gótica contemporânea. A tradução inglesa de sua coleção Los peligros de fumar en la cama foi selecionada para o International Booker Prize em 2021, e a versão em espanhol de Nossa Parte de Noite ganhou o Prêmio Herralde da Editora Anagrama de melhor livro do ano em 2019.

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Enriquez é fã de coisas que acontecem à noite, de filmes de terror e contos sinistros na tradição dos argentinos Jorge Luis Borges e Silvina Ocampo, que foi o tema de seu livro de não ficção “A irmã menor: um retrato de Silvina Ocampo”. Mas as raízes de sua consciência e fascínio pelos tons mais escuros da vida também remontam à terrível Argentina de sua juventude.

Contado a partir de múltiplas perspectivas e transcendendo tempo e lugar, desde a Londres obcecada pelo ocultismo dos anos 1960 e 1970 até o resultado da “guerra suja” da Argentina nos anos 1990, Nossa Parte de Noite apresenta cenas de horror cinematográfico tão habilmente quanto representações de dores psicológicas. O amor de Juan por seu filho é manchado por um profundo ciúme do tipo que a escritora Bell Hooks explora em The Will to Change, só que aqui é levado a extremos macabros.

Capa do livro 'Nossa Parte de Noite', da argentina MarianaEnriquez. Foto: Editora Intrínseca
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Com a saúde debilitada, Juan enfrenta a tentação de literalmente habitar o corpo mais jovem e saudável de seu filho. Enríquez usa o relacionamento deles para explorar a paternidade, que, segundo ela, costuma ser retratada de maneira cor de rosa ou simplista.

Quando você está vendo uma criança crescer enquanto sua vida está acabando, há algo mais complexo do que você normalmente ouve na discussão sobre a infância, sobre apenas o bom, apenas o belo”, disse Enríquez.

Embora ambivalente, Juan se esforça para proteger seu filho da Ordem, uma sociedade secreta de famílias ricas que ameaçam usar Gaspar como seu próximo médium. Os ecos das piores realidades da ditadura argentina são claros. Uma das práticas mais desprovidas de moral do regime envolvia roubar filhos de dissidentes e entregá-los a famílias ligadas à ditadura. Muitos desses dissidentes estavam entre os milhares de argentinos que não apenas desapareceram, mas “foram desaparecidos” - levados por agentes de segurança e nunca mais vistos por suas famílias.

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Em espanhol argentino, observa Enríquez, uma palavra comum para fantasma é “aparecido”, a antítese desses “desaparecidos”, que ainda assombram a memória do país. “Até a própria linguagem leva ao fantasmagórico de tudo isso”, ela disse.

A escrita de Enríquez é “uma exploração e expiação de traumas de todos os tipos”, disse Megan McDowell, que traduziu “Nossa Parte de Noite” para o inglês.

“Enquanto a história típica de Borges acontecerá em um mundo mitológico separado, inventado, Mariana está muito preocupada com o lugar, bem como com as questões sociais”, escreveu McDowell em um e-mail. “A pobreza, a violência do estado e o sexismo assombram suas histórias tanto quanto qualquer fantasma ou ser sobrenatural.”

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De fato, em Nossa Parte de Noite Enríquez está trabalhando tanto na tradição de Borges e Ocampo quanto na de diretores de cinema como Steven Spielberg ou Gaspar Noé, ou canalizando a dor assombrosa de “Amada” de Toni Morrison e a visão crua da violência, juventude e abandono em “Os Incompreendidos” de François Truffaut.

“Ela se baseia em tantas tradições variadas e as torna suas”, disse McDowell. “Ela transforma suas obsessões em narrativas que são envolventes, ponderadas, assustadoras e surpreendentes e, finalmente, impossíveis de esquecer.”

Como em grande parte de seu trabalho, as influências musicais também estão em jogo. Foi o amor de Enríquez pelo rock ‘n’ roll que, de certa forma, primeiramente a abriu para a literatura. Ouvindo os acordes do Southern Gothic na música de artistas como Nick Cave, disse Enríquez, ela procurou William Faulkner e Flannery O’Connor. Ao ouvir Patti Smith referir-se a Arthur Rimbaud no álbum Horses, ela descobriu e ficou encantada com a obra do poeta francês - e a lenda que cercava sua vida. /TRADIÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times

THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - A infância de Mariana Enríquez foi marcada pelo absurdo sombrio do autoritarismo. Sob a ditadura militar que governou a Argentina de 1976 a 1983, um medo latente permeava até os aspectos mais mundanos da vida.

Organizar uma festa de aniversário exigia permissão das autoridades locais. As conversas eram potencialmente perigosas: quando criança, ela sabia que certas coisas que podiam ser discutidas em casa eram proibidas em público, mas não entendia bem o porquê. O medo de deixar escapar um pensamento errado a deixou sombria, ela disse, e a empurrou para “livros e coisas muito solitárias”.

Quando a ditadura caiu em 1983 e seus líderes foram levados a julgamento dois anos depois, o testemunho de suas vítimas tornou-se inescapável na sociedade argentina, disse Enríquez. Cercada por isso, ela não teve escolha a não ser fechar as lacunas em seu entendimento. Os relatos de prisão, tortura, desaparecimento e assassinato representaram sua primeira exposição ao “verdadeiro horror”, ela disse, e mais tarde se tornariam um fio condutor de seu trabalho, repleto de fantasmas, demônios e contos do oculto.

“Em vez de me mandar para a cama, meu pai dizia: ‘Viu como eles eram ruins?’”, disse Enríquez, descrevendo o testemunho dos julgamentos que ela ouviu no rádio ao lado de seu pai. Em um caso, ela disse, uma mulher descreveu ter sido torturada com choques elétricos enquanto estava grávida.

“Ele nunca pensou que isso poderia me perturbar, ou pior, ele pensou que era algo que eu precisava saber.”

Mariana Enríquez disse que seu trabalho devolve a violência e os traumas que fazem parte da vida “ao reino do horrível, ao invés do cotidiano ao qual nos acostumamos”. Foto: Anita Pouchard Serra/The New York Times

Os terrores que tomaram conta da Argentina nas décadas de 1970 e 1980 - aqueles que tanto perturbaram Enríquez quando criança - aparecem fortemente no pano de fundo de seu último romance, Nossa Parte de Noite. Lançado nos Estados Unidos pela Hogarth, centra-se em um médium, Juan, e seu filho, Gaspar, enquanto tentam enganar uma sociedade secreta maléfica empenhada na vida eterna. Os sustos são abundantes. Mas enquanto Enríquez se deleita com convenções de terror, sua escrita também insta os leitores a se lembrarem de que são as monstruosidades da vida real que realmente devem assustar.

A violência na América Latina foi normalizada a ponto de a reação das pessoas se tornar moderada, ela disse. “Expor o horror, incluindo os sustos, incluindo o sangue, incluindo as partes que têm a ver com pensamentos sobre o mal, é como devolver essas coisas ao reino do horrível, ao invés do cotidiano ao qual nos acostumamos.” disse Enríquez.

Autora de quatro romances, duas coleções de contos e uma série de histórias, biografias e textos jornalísticos, Enríquez, 49, consolidou sua posição como uma figura importante da ficção gótica contemporânea. A tradução inglesa de sua coleção Los peligros de fumar en la cama foi selecionada para o International Booker Prize em 2021, e a versão em espanhol de Nossa Parte de Noite ganhou o Prêmio Herralde da Editora Anagrama de melhor livro do ano em 2019.

Enriquez é fã de coisas que acontecem à noite, de filmes de terror e contos sinistros na tradição dos argentinos Jorge Luis Borges e Silvina Ocampo, que foi o tema de seu livro de não ficção “A irmã menor: um retrato de Silvina Ocampo”. Mas as raízes de sua consciência e fascínio pelos tons mais escuros da vida também remontam à terrível Argentina de sua juventude.

Contado a partir de múltiplas perspectivas e transcendendo tempo e lugar, desde a Londres obcecada pelo ocultismo dos anos 1960 e 1970 até o resultado da “guerra suja” da Argentina nos anos 1990, Nossa Parte de Noite apresenta cenas de horror cinematográfico tão habilmente quanto representações de dores psicológicas. O amor de Juan por seu filho é manchado por um profundo ciúme do tipo que a escritora Bell Hooks explora em The Will to Change, só que aqui é levado a extremos macabros.

Capa do livro 'Nossa Parte de Noite', da argentina MarianaEnriquez. Foto: Editora Intrínseca

Com a saúde debilitada, Juan enfrenta a tentação de literalmente habitar o corpo mais jovem e saudável de seu filho. Enríquez usa o relacionamento deles para explorar a paternidade, que, segundo ela, costuma ser retratada de maneira cor de rosa ou simplista.

Quando você está vendo uma criança crescer enquanto sua vida está acabando, há algo mais complexo do que você normalmente ouve na discussão sobre a infância, sobre apenas o bom, apenas o belo”, disse Enríquez.

Embora ambivalente, Juan se esforça para proteger seu filho da Ordem, uma sociedade secreta de famílias ricas que ameaçam usar Gaspar como seu próximo médium. Os ecos das piores realidades da ditadura argentina são claros. Uma das práticas mais desprovidas de moral do regime envolvia roubar filhos de dissidentes e entregá-los a famílias ligadas à ditadura. Muitos desses dissidentes estavam entre os milhares de argentinos que não apenas desapareceram, mas “foram desaparecidos” - levados por agentes de segurança e nunca mais vistos por suas famílias.

Em espanhol argentino, observa Enríquez, uma palavra comum para fantasma é “aparecido”, a antítese desses “desaparecidos”, que ainda assombram a memória do país. “Até a própria linguagem leva ao fantasmagórico de tudo isso”, ela disse.

A escrita de Enríquez é “uma exploração e expiação de traumas de todos os tipos”, disse Megan McDowell, que traduziu “Nossa Parte de Noite” para o inglês.

“Enquanto a história típica de Borges acontecerá em um mundo mitológico separado, inventado, Mariana está muito preocupada com o lugar, bem como com as questões sociais”, escreveu McDowell em um e-mail. “A pobreza, a violência do estado e o sexismo assombram suas histórias tanto quanto qualquer fantasma ou ser sobrenatural.”

De fato, em Nossa Parte de Noite Enríquez está trabalhando tanto na tradição de Borges e Ocampo quanto na de diretores de cinema como Steven Spielberg ou Gaspar Noé, ou canalizando a dor assombrosa de “Amada” de Toni Morrison e a visão crua da violência, juventude e abandono em “Os Incompreendidos” de François Truffaut.

“Ela se baseia em tantas tradições variadas e as torna suas”, disse McDowell. “Ela transforma suas obsessões em narrativas que são envolventes, ponderadas, assustadoras e surpreendentes e, finalmente, impossíveis de esquecer.”

Como em grande parte de seu trabalho, as influências musicais também estão em jogo. Foi o amor de Enríquez pelo rock ‘n’ roll que, de certa forma, primeiramente a abriu para a literatura. Ouvindo os acordes do Southern Gothic na música de artistas como Nick Cave, disse Enríquez, ela procurou William Faulkner e Flannery O’Connor. Ao ouvir Patti Smith referir-se a Arthur Rimbaud no álbum Horses, ela descobriu e ficou encantada com a obra do poeta francês - e a lenda que cercava sua vida. /TRADIÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times

THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - A infância de Mariana Enríquez foi marcada pelo absurdo sombrio do autoritarismo. Sob a ditadura militar que governou a Argentina de 1976 a 1983, um medo latente permeava até os aspectos mais mundanos da vida.

Organizar uma festa de aniversário exigia permissão das autoridades locais. As conversas eram potencialmente perigosas: quando criança, ela sabia que certas coisas que podiam ser discutidas em casa eram proibidas em público, mas não entendia bem o porquê. O medo de deixar escapar um pensamento errado a deixou sombria, ela disse, e a empurrou para “livros e coisas muito solitárias”.

Quando a ditadura caiu em 1983 e seus líderes foram levados a julgamento dois anos depois, o testemunho de suas vítimas tornou-se inescapável na sociedade argentina, disse Enríquez. Cercada por isso, ela não teve escolha a não ser fechar as lacunas em seu entendimento. Os relatos de prisão, tortura, desaparecimento e assassinato representaram sua primeira exposição ao “verdadeiro horror”, ela disse, e mais tarde se tornariam um fio condutor de seu trabalho, repleto de fantasmas, demônios e contos do oculto.

“Em vez de me mandar para a cama, meu pai dizia: ‘Viu como eles eram ruins?’”, disse Enríquez, descrevendo o testemunho dos julgamentos que ela ouviu no rádio ao lado de seu pai. Em um caso, ela disse, uma mulher descreveu ter sido torturada com choques elétricos enquanto estava grávida.

“Ele nunca pensou que isso poderia me perturbar, ou pior, ele pensou que era algo que eu precisava saber.”

Mariana Enríquez disse que seu trabalho devolve a violência e os traumas que fazem parte da vida “ao reino do horrível, ao invés do cotidiano ao qual nos acostumamos”. Foto: Anita Pouchard Serra/The New York Times

Os terrores que tomaram conta da Argentina nas décadas de 1970 e 1980 - aqueles que tanto perturbaram Enríquez quando criança - aparecem fortemente no pano de fundo de seu último romance, Nossa Parte de Noite. Lançado nos Estados Unidos pela Hogarth, centra-se em um médium, Juan, e seu filho, Gaspar, enquanto tentam enganar uma sociedade secreta maléfica empenhada na vida eterna. Os sustos são abundantes. Mas enquanto Enríquez se deleita com convenções de terror, sua escrita também insta os leitores a se lembrarem de que são as monstruosidades da vida real que realmente devem assustar.

A violência na América Latina foi normalizada a ponto de a reação das pessoas se tornar moderada, ela disse. “Expor o horror, incluindo os sustos, incluindo o sangue, incluindo as partes que têm a ver com pensamentos sobre o mal, é como devolver essas coisas ao reino do horrível, ao invés do cotidiano ao qual nos acostumamos.” disse Enríquez.

Autora de quatro romances, duas coleções de contos e uma série de histórias, biografias e textos jornalísticos, Enríquez, 49, consolidou sua posição como uma figura importante da ficção gótica contemporânea. A tradução inglesa de sua coleção Los peligros de fumar en la cama foi selecionada para o International Booker Prize em 2021, e a versão em espanhol de Nossa Parte de Noite ganhou o Prêmio Herralde da Editora Anagrama de melhor livro do ano em 2019.

Enriquez é fã de coisas que acontecem à noite, de filmes de terror e contos sinistros na tradição dos argentinos Jorge Luis Borges e Silvina Ocampo, que foi o tema de seu livro de não ficção “A irmã menor: um retrato de Silvina Ocampo”. Mas as raízes de sua consciência e fascínio pelos tons mais escuros da vida também remontam à terrível Argentina de sua juventude.

Contado a partir de múltiplas perspectivas e transcendendo tempo e lugar, desde a Londres obcecada pelo ocultismo dos anos 1960 e 1970 até o resultado da “guerra suja” da Argentina nos anos 1990, Nossa Parte de Noite apresenta cenas de horror cinematográfico tão habilmente quanto representações de dores psicológicas. O amor de Juan por seu filho é manchado por um profundo ciúme do tipo que a escritora Bell Hooks explora em The Will to Change, só que aqui é levado a extremos macabros.

Capa do livro 'Nossa Parte de Noite', da argentina MarianaEnriquez. Foto: Editora Intrínseca

Com a saúde debilitada, Juan enfrenta a tentação de literalmente habitar o corpo mais jovem e saudável de seu filho. Enríquez usa o relacionamento deles para explorar a paternidade, que, segundo ela, costuma ser retratada de maneira cor de rosa ou simplista.

Quando você está vendo uma criança crescer enquanto sua vida está acabando, há algo mais complexo do que você normalmente ouve na discussão sobre a infância, sobre apenas o bom, apenas o belo”, disse Enríquez.

Embora ambivalente, Juan se esforça para proteger seu filho da Ordem, uma sociedade secreta de famílias ricas que ameaçam usar Gaspar como seu próximo médium. Os ecos das piores realidades da ditadura argentina são claros. Uma das práticas mais desprovidas de moral do regime envolvia roubar filhos de dissidentes e entregá-los a famílias ligadas à ditadura. Muitos desses dissidentes estavam entre os milhares de argentinos que não apenas desapareceram, mas “foram desaparecidos” - levados por agentes de segurança e nunca mais vistos por suas famílias.

Em espanhol argentino, observa Enríquez, uma palavra comum para fantasma é “aparecido”, a antítese desses “desaparecidos”, que ainda assombram a memória do país. “Até a própria linguagem leva ao fantasmagórico de tudo isso”, ela disse.

A escrita de Enríquez é “uma exploração e expiação de traumas de todos os tipos”, disse Megan McDowell, que traduziu “Nossa Parte de Noite” para o inglês.

“Enquanto a história típica de Borges acontecerá em um mundo mitológico separado, inventado, Mariana está muito preocupada com o lugar, bem como com as questões sociais”, escreveu McDowell em um e-mail. “A pobreza, a violência do estado e o sexismo assombram suas histórias tanto quanto qualquer fantasma ou ser sobrenatural.”

De fato, em Nossa Parte de Noite Enríquez está trabalhando tanto na tradição de Borges e Ocampo quanto na de diretores de cinema como Steven Spielberg ou Gaspar Noé, ou canalizando a dor assombrosa de “Amada” de Toni Morrison e a visão crua da violência, juventude e abandono em “Os Incompreendidos” de François Truffaut.

“Ela se baseia em tantas tradições variadas e as torna suas”, disse McDowell. “Ela transforma suas obsessões em narrativas que são envolventes, ponderadas, assustadoras e surpreendentes e, finalmente, impossíveis de esquecer.”

Como em grande parte de seu trabalho, as influências musicais também estão em jogo. Foi o amor de Enríquez pelo rock ‘n’ roll que, de certa forma, primeiramente a abriu para a literatura. Ouvindo os acordes do Southern Gothic na música de artistas como Nick Cave, disse Enríquez, ela procurou William Faulkner e Flannery O’Connor. Ao ouvir Patti Smith referir-se a Arthur Rimbaud no álbum Horses, ela descobriu e ficou encantada com a obra do poeta francês - e a lenda que cercava sua vida. /TRADIÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times

THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - A infância de Mariana Enríquez foi marcada pelo absurdo sombrio do autoritarismo. Sob a ditadura militar que governou a Argentina de 1976 a 1983, um medo latente permeava até os aspectos mais mundanos da vida.

Organizar uma festa de aniversário exigia permissão das autoridades locais. As conversas eram potencialmente perigosas: quando criança, ela sabia que certas coisas que podiam ser discutidas em casa eram proibidas em público, mas não entendia bem o porquê. O medo de deixar escapar um pensamento errado a deixou sombria, ela disse, e a empurrou para “livros e coisas muito solitárias”.

Quando a ditadura caiu em 1983 e seus líderes foram levados a julgamento dois anos depois, o testemunho de suas vítimas tornou-se inescapável na sociedade argentina, disse Enríquez. Cercada por isso, ela não teve escolha a não ser fechar as lacunas em seu entendimento. Os relatos de prisão, tortura, desaparecimento e assassinato representaram sua primeira exposição ao “verdadeiro horror”, ela disse, e mais tarde se tornariam um fio condutor de seu trabalho, repleto de fantasmas, demônios e contos do oculto.

“Em vez de me mandar para a cama, meu pai dizia: ‘Viu como eles eram ruins?’”, disse Enríquez, descrevendo o testemunho dos julgamentos que ela ouviu no rádio ao lado de seu pai. Em um caso, ela disse, uma mulher descreveu ter sido torturada com choques elétricos enquanto estava grávida.

“Ele nunca pensou que isso poderia me perturbar, ou pior, ele pensou que era algo que eu precisava saber.”

Mariana Enríquez disse que seu trabalho devolve a violência e os traumas que fazem parte da vida “ao reino do horrível, ao invés do cotidiano ao qual nos acostumamos”. Foto: Anita Pouchard Serra/The New York Times

Os terrores que tomaram conta da Argentina nas décadas de 1970 e 1980 - aqueles que tanto perturbaram Enríquez quando criança - aparecem fortemente no pano de fundo de seu último romance, Nossa Parte de Noite. Lançado nos Estados Unidos pela Hogarth, centra-se em um médium, Juan, e seu filho, Gaspar, enquanto tentam enganar uma sociedade secreta maléfica empenhada na vida eterna. Os sustos são abundantes. Mas enquanto Enríquez se deleita com convenções de terror, sua escrita também insta os leitores a se lembrarem de que são as monstruosidades da vida real que realmente devem assustar.

A violência na América Latina foi normalizada a ponto de a reação das pessoas se tornar moderada, ela disse. “Expor o horror, incluindo os sustos, incluindo o sangue, incluindo as partes que têm a ver com pensamentos sobre o mal, é como devolver essas coisas ao reino do horrível, ao invés do cotidiano ao qual nos acostumamos.” disse Enríquez.

Autora de quatro romances, duas coleções de contos e uma série de histórias, biografias e textos jornalísticos, Enríquez, 49, consolidou sua posição como uma figura importante da ficção gótica contemporânea. A tradução inglesa de sua coleção Los peligros de fumar en la cama foi selecionada para o International Booker Prize em 2021, e a versão em espanhol de Nossa Parte de Noite ganhou o Prêmio Herralde da Editora Anagrama de melhor livro do ano em 2019.

Enriquez é fã de coisas que acontecem à noite, de filmes de terror e contos sinistros na tradição dos argentinos Jorge Luis Borges e Silvina Ocampo, que foi o tema de seu livro de não ficção “A irmã menor: um retrato de Silvina Ocampo”. Mas as raízes de sua consciência e fascínio pelos tons mais escuros da vida também remontam à terrível Argentina de sua juventude.

Contado a partir de múltiplas perspectivas e transcendendo tempo e lugar, desde a Londres obcecada pelo ocultismo dos anos 1960 e 1970 até o resultado da “guerra suja” da Argentina nos anos 1990, Nossa Parte de Noite apresenta cenas de horror cinematográfico tão habilmente quanto representações de dores psicológicas. O amor de Juan por seu filho é manchado por um profundo ciúme do tipo que a escritora Bell Hooks explora em The Will to Change, só que aqui é levado a extremos macabros.

Capa do livro 'Nossa Parte de Noite', da argentina MarianaEnriquez. Foto: Editora Intrínseca

Com a saúde debilitada, Juan enfrenta a tentação de literalmente habitar o corpo mais jovem e saudável de seu filho. Enríquez usa o relacionamento deles para explorar a paternidade, que, segundo ela, costuma ser retratada de maneira cor de rosa ou simplista.

Quando você está vendo uma criança crescer enquanto sua vida está acabando, há algo mais complexo do que você normalmente ouve na discussão sobre a infância, sobre apenas o bom, apenas o belo”, disse Enríquez.

Embora ambivalente, Juan se esforça para proteger seu filho da Ordem, uma sociedade secreta de famílias ricas que ameaçam usar Gaspar como seu próximo médium. Os ecos das piores realidades da ditadura argentina são claros. Uma das práticas mais desprovidas de moral do regime envolvia roubar filhos de dissidentes e entregá-los a famílias ligadas à ditadura. Muitos desses dissidentes estavam entre os milhares de argentinos que não apenas desapareceram, mas “foram desaparecidos” - levados por agentes de segurança e nunca mais vistos por suas famílias.

Em espanhol argentino, observa Enríquez, uma palavra comum para fantasma é “aparecido”, a antítese desses “desaparecidos”, que ainda assombram a memória do país. “Até a própria linguagem leva ao fantasmagórico de tudo isso”, ela disse.

A escrita de Enríquez é “uma exploração e expiação de traumas de todos os tipos”, disse Megan McDowell, que traduziu “Nossa Parte de Noite” para o inglês.

“Enquanto a história típica de Borges acontecerá em um mundo mitológico separado, inventado, Mariana está muito preocupada com o lugar, bem como com as questões sociais”, escreveu McDowell em um e-mail. “A pobreza, a violência do estado e o sexismo assombram suas histórias tanto quanto qualquer fantasma ou ser sobrenatural.”

De fato, em Nossa Parte de Noite Enríquez está trabalhando tanto na tradição de Borges e Ocampo quanto na de diretores de cinema como Steven Spielberg ou Gaspar Noé, ou canalizando a dor assombrosa de “Amada” de Toni Morrison e a visão crua da violência, juventude e abandono em “Os Incompreendidos” de François Truffaut.

“Ela se baseia em tantas tradições variadas e as torna suas”, disse McDowell. “Ela transforma suas obsessões em narrativas que são envolventes, ponderadas, assustadoras e surpreendentes e, finalmente, impossíveis de esquecer.”

Como em grande parte de seu trabalho, as influências musicais também estão em jogo. Foi o amor de Enríquez pelo rock ‘n’ roll que, de certa forma, primeiramente a abriu para a literatura. Ouvindo os acordes do Southern Gothic na música de artistas como Nick Cave, disse Enríquez, ela procurou William Faulkner e Flannery O’Connor. Ao ouvir Patti Smith referir-se a Arthur Rimbaud no álbum Horses, ela descobriu e ficou encantada com a obra do poeta francês - e a lenda que cercava sua vida. /TRADIÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

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