Em um dia nublado no auge do verão boreal do ano passado, um grupo de surfistas se reuniu em uma praia historicamente frequentada por negros, conhecida como Ink Well, em Santa Monica, na Califórnia, com uma mensagem escrita em cada prancha. Eles estavam se preparando para um ritual conhecido como paddle-out – no qual os surfistas homenageiam os mortos –, na esteira do assassinato de George Floyd pela polícia. Entre as mensagens, a frase "Black Lives Matter" (Vidas negras importam) e uma lista de pessoas mortas pelas forças policiais.
"É só uma batalha pela sobrevivência, tudo isso, o tempo todo, apenas pelo direito de existir", disse Sharon Schaffer, a primeira negra a se tornar surfista profissional, em um discurso emocionado. Ela estava se referindo ao racismo que havia sofrido dentro e fora d'água. "Tive de desenvolver imediatamente uma voz para poder gritar: 'Entendi – é minha, minha onda.' Tenho o direito de estar nessa onda", acrescentou, ganhando o aplauso dos surfistas presentes.
No Dia do Presidente deste ano, uma discussão em Manhattan Beach, na Califórnia, sobre quem teria a prioridade em uma onda ficou feia quando um branco fez repetidas ofensas raciais a Justin Howze, músico negro conhecido como Brick, e a seu colega negro e também surfista Gage Crismond. O incidente inspirou Howze e Crismond a organizar um paddle-out de protesto, que atraiu bem mais de cem surfistas negros.
Esses eventos recentes chamaram a atenção tanto para o fato de que os negros realmente surfam, como para o fato de que são hostilizados de forma sutil e também aberta. Os eventos também demonstraram o senso de conexão e de comunidade entre os surfistas negros, cujas redes vêm se desenvolvendo cada vez mais há décadas.
É claro que os negros surfam pelas mesmas razões que qualquer outra pessoa – a sensação de leveza e propulsão, de estar em perfeita harmonia com a energia da onda. Mas surfar com outros negros também pode criar um profundo sentimento de cura, de ser visto e compreendido, e de encontrar uma relação por meio de uma experiência compartilhada com pessoas que conhecem sua cultura e sua história em um oceano que seus ancestrais podem ter atravessado.
À medida que os surfistas negros estão se manifestando mais e mais – surfando em grupos organizados, experimentando e compartilhando a alegria e a liberdade que o surfe pode proporcionar –, também estão assumindo uma presença mais visível no ecossistema mais amplo do esporte, seja como embaixadores de grandes marcas patrocinadoras, como editores em mídias relacionadas ao surfe ou como competidores em torneios de elite. Esses surfistas também estão participando de uma tradição de ativismo e orgulho cultural em torno do surfe de negros –história na qual alguns dos próprios surfistas podem não ser totalmente versados.
A primeira vez que Selema Masekela, surfista e fundador da Mami Wata, marca de estilo de vida, viu outro surfista negro na água na Califórnia, foi direto ao encontro dele para trocar histórias sobre a origem de cada um. "Eu nem precisava conhecê-lo para saber o que ele tinha passado para poder estar lá. Tem tanta coisa que você precisa fazer em terra antes de decidir se vai. Depois, tem o potencial real de agressão e o processamento constante de microagressões. A troca de códigos que ele disse ser necessária para surfar se tornou um superpoder subliminar", comentou Masekela, que publicou recentemente Afrosurf, livro que celebra o surfe na África. "Vejo o oceano como uma forma de comungar comigo mesmo."
'Tendo ascendência africana, acho que existe um poder de se conectar com o oceano'
Ao ocupar seu lugar nas ondas, os afrodescendentes estão resgatando tradições perdidas. Segundo historiadores, a prática contemporânea do surfe deriva dos polinésios que se estabeleceram no Havaí, mas as práticas africanas centenárias de surfar – seja em prancha ou em canoa – evoluíram de forma independente em vários pontos ao longo da costa oeste da África.
"A grande maioria de nós é descendente de africanos que viviam na costa e no oceano, mas foi desconectada desse aspecto que era uma parte crucial da identidade de nossos ancestrais", afirmou Natalie Hubbard, cirurgiã e surfista que faz parte do coletivo Laru Beya, que incentiva o surfe e a segurança aquática entre os jovens carentes nas praias da península Rockaway, em Nova York. "Tendo ascendência africana, acho que existe um poder de se conectar com o oceano, porque você também vai se conectar com uma parte de sua herança."
Apesar de o surfe ter nascido na Polinésia – e do fato de que um de seus primeiros embaixadores mais famosos, Duke Kahanamoku, tinha a pele escura o bastante para que estabelecimentos que serviam exclusivamente brancos tentassem se recusar a atendê-lo –, o surfe ganhou popularidade na porção continental dos Estados Unidos nas décadas de 1950 e 1960 principalmente como um esporte de brancos. A cultura americana do surfe na época era caracterizada pela música de bandas como os Beach Boys e por filmes como Maldosamente Ingênua e Alegria de Verão.
Enquanto isso, muitos negros americanos praticamente haviam perdido a conexão com as tradições africanas de surfar ondas, depois de séculos de escravidão, violência e segregação legal. Eles foram sistematicamente excluídos das piscinas públicas, das praias e dos esportes aquáticos pelas leis de Jim Crow, pelas campanhas de terror racial e pela prática imobiliária do redlining (a recusa sistemática de serviços a moradores de uma área específica por causa da cor da pele). O resultado para muitos negros foi uma sensação predominante de que esportes como o surfe e sua cultura simplesmente não estavam disponíveis para eles.
No entanto, há uma história robusta, embora complicada, da prática de surfe entre os descendentes de africanos, especialmente em comunidades praianas segregadas e historicamente negras nos EUA.
Da mesma forma que os ativistas negros dos direitos civis reivindicaram o direito de ocupar um espaço que havia sido determinado como não pertencente a eles – um balcão de lanchonete da Woolworth ou um assento na parte da frente do ônibus –, os negros que iam à praia tinham de ocupar um espaço segregado durante as "wade-ins" que começaram no fim dos anos 1950. Essas ações tiveram uma resposta policial semelhante a outros protestos de direitos civis: a indiferença da polícia, que permitiu que os brancos brutalizassem os manifestantes ou, conforme apresentado no documentário White Wash de 2011 sobre o surfe de negros, os policiais empunhando o cassetete contra surfistas.
'Ela se parece comigo, e eu adoraria fazer igual a ela'
Foi por meio de um experimento nos ônibus de Los Angeles nos anos 1960 que Rick Blocker conheceu as crianças que o apresentaram ao skate e depois ao surfe. Mas foi só quando ele leu uma carta aberta na revista Surfer escrita por Tony Corley, que estava procurando se conectar com outros surfistas negros, que pensou mais profundamente na amplitude que a comunidade negra do surfe poderia ter.
Corley formou a Associação dos Surfistas Negros (BSA, na sigla em inglês) em 1974, com Blocker e vários outros membros. Lendo um artigo sobre a BSA na Surfer, Blocker aprendeu a história esquecida da praia de Ink Well e de Nick Gabaldón, que ele se sentiu obrigado a ajudar a preservar e compartilhar.
O que começou no sul da Califórnia floresceu em um movimento global, estimulando a formação de grupos dedicados a encorajar os negros a surfar. A indústria do surfe – muitas vezes criticada por promover o esporte como algo quase exclusivo de brancos – está atenta, já que marcas populares oferecem patrocínio, equipamento e outros tipos de suporte para surfistas e organizações de negros.
O coletivo Laru Beya de Nova York também busca promover um senso de pertencimento entre os surfistas negros e um senso de responsabilidade pelo esforço de cuidar do oceano em que surfam.
Alguns surfistas do Laru Beya estão agora treinando para sua primeira competição – o caminho tradicional para que os surfistas construam uma carreira profissional. Os surfistas negros ainda não se destacaram no surfe profissional como um grupo, em parte devido à falta de experiência: o melhor treinamento para a competição profissional envolve a prática em diferentes tipos de ondas e condições em uma grande variedade de praias de surfe, algo que requer tanto orientação quanto dinheiro. Até recentemente, as grandes marcas demoravam a abraçar a diversidade étnica, tornando difícil para os surfistas negros participar das competições em eventos internacionais.
A internet e as redes sociais também estão permitindo que os surfistas negros sigam um caminho diferente para o sucesso, evitando a competição e atraindo patrocínios ao tirar e postar as próprias fotos e os próprios vídeos.
Hunter Jones, da equipe Body Glove, não compete, mas produz o próprio conteúdo de surfe. "Eu simplesmente surfava porque adorava surfar, mas nunca tive aquele pensamento de 'quero participar do campeonato mundial e competir ao lado de Kelly Slater'."
Jones quer ser um exemplo para a próxima geração, que pode incluir Farmata Dia, filha de imigrantes senegaleses e uma mentora do Laru Beya que cresceu em Rockaway e ficou viciada em surfe depois de apenas uma aula.
Elo vivo com a herança aquática da África, Dia sonha em abrir a própria loja de surfe no Senegal algum dia e atrair mais atenção para a cultura do surfe e suas origens. "Só quero surfar, trazer pessoas para o surfe e compartilhar o conhecimento."
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