Estudioso examina posicionamentos da Igreja Católica durante a Segunda Guerra Mundial


David Kertzer passou décadas escavando a história oculta do Vaticano; agora em novo livro observa o papel do Papa Pio XII no Holocausto

Por Jason Horowitz
Atualização:

THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - CIDADE DO VATICANO - David Kertzer largou seu cappuccino, colocou sua mochila e foi procurar mais segredos do Vaticano. “Parece uma caça ao tesouro”, disse Kertzer, um historiador de 74 anos.

David Kertzer na biblioteca da Academia Americana em Roma, após um dia de investigações acadêmicas dentro dos arquivos do Vaticano. Foto: Massimo Berruti/The New York Times

Momentos depois, ele atravessou uma multidão alinhada para ver o Papa Francisco, mostrou suas credenciais à Guarda Suíça e entrou nos arquivos da antiga sede da Santa Inquisição Romana.

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Ao longo das últimas décadas, Kertzer virou a mesa inquisitiva da igreja. Usando os próprios arquivos do Vaticano, o professor de fala mansa da Brown University e administrador da Academia Americana em Roma tornou-se indiscutivelmente o escavador mais eficaz dos pecados ocultos do Vaticano, especialmente aqueles que antecederam e ocorreram durante a Segunda Guerra Mundial.

Filho de um rabino que participou da libertação de Roma como capelão do Exército, Kertzer cresceu em uma casa que acolheu uma criança adotiva cuja família foi assassinada em Auschwitz. Esse histórico familiar e seu ativismo na faculdade contra a guerra do Vietnã o imbuíram de um sentimento de indignação moral - temperado pela precaução de um estudioso.

O resultado são obras que ganharam o Prêmio Pulitzer, capturaram a imaginação de Steven Spielberg e lançaram uma luz às vezes dura sobre uma das instituições mais sombrias da Terra.

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O último livro de Kertzer, The Pope at War, analisa o papel da Igreja na Segunda Guerra Mundial e no Holocausto - o que ele considera o evento formador de sua própria vida. Documenta a decisão privada que levou o Papa Pio XII a permanecer essencialmente em silêncio sobre o genocídio de Hitler e argumenta que o impacto do pontífice na guerra é subestimado - e não no bom sentido.

“Parte do que espero conseguir”, disse Kertzer, “é mostrar a importância do papel que Pio XII desempenhou”.

O atual papa, Francisco, disse: “A Igreja não tem medo da história”, quando ordenou a abertura dos arquivos de Pio XII em 2019. Mas enquanto Francisco luta vigorosamente para condenar um ditador, desta vez Vladimir Putin da Rússia, Kertzer desenterrou algumas evidências assustadoras sobre o custo de manter o silêncio sobre assassinatos em massa.

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Kertzer defende que o medo dominante de Pio XII do comunismo, sua crença de que as potências do Eixo venceriam a guerra e seu desejo de proteger os interesses da Igreja o motivaram a evitar ofender Adolph Hitler e Benito Mussolini, cujos embaixadores haviam trabalhado para colocá-lo no trono. O papa também estava preocupado, mostra o livro, com o fato de que se opor ao Führer afastaria milhões de católicos alemães.

O livro revela ainda que um príncipe alemão e nazista fervoroso agiu como um canal secreto entre Pio XII e Hitler e que o principal conselheiro do papa no Vaticano para questões judaicas o encorajou em uma carta a não protestar contra uma ordem fascista de prender e enviar para campos de concentração a maioria dos judeus da Itália.

“Isso foi surpreendente”, disse Kertzer sobre encontrar a carta.

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Defensores de Pio XII, cujo caso de santidade ainda está sendo avaliado, há muito argumentam que ele trabalhou nos bastidores para ajudar os judeus e que os inimigos anticatólicos tentaram manchar a instituição maculando o pontífice.

“Um protesto mais aberto não teria salvado um único judeu, mas matado ainda mais”, escreveu Michael Hesemann, que considera Pio XII um defensor dos judeus, em resposta às evidências reveladas por Kertzer, a quem ele chamou de “fortemente tendencioso”.

Hesemann, que também é autor de um novo livro sobre o papa durante a guerra baseado nos arquivos do Vaticano, argumentou que o Vaticano, embora seguindo sua tradição de neutralidade, trabalhou para esconder judeus em conventos e distribuir certidões de batismo falsas.

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Kertzer argumenta que os documentos desenterrados pintam uma imagem mais sutil de Pio XII, e não mostram-no nem como o monstro antissemita frequentemente chamado de “Papa de Hitler” nem como um herói. Mas o desejo de proteger a reputação de Pio, de acordo com Kertzer, reflete uma recusa mais geral da Itália - e de apologistas do Vaticano - em aceitar sua cumplicidade na Segunda Guerra Mundial, no Holocausto e no assassinato dos judeus de Roma.

Em 16 de outubro de 1943, os nazistas cercaram mais de 1.000 deles em toda a cidade, incluindo centenas no bairro judeu, agora uma atração turística onde multidões se banqueteiam com alcachofras ao estilo judaico perto de uma igreja onde os judeus já foram forçados a assistir a sermões de conversão.

Por dois dias, os alemães mantiveram os judeus em um colégio militar perto do Vaticano, verificando quem era batizado ou tinha cônjuges católicos.

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“Eles não queriam ofender o papa”, disse Kertzer. Seu livro mostra que os principais assessores de Pio XII apenas intercederam junto ao embaixador alemão para libertar “católicos não-arianos”. Cerca de 250 foram liberados. Mais de 1.000 foram assassinados em Auschwitz.

Quando o Quinto Exército dos EUA chegou a Roma, o pai de Kertzer, tenente Morris Kertzer, um rabino nascido no Canadá, estava com eles e oficiou na sinagoga.

Um soldado americano, judeu de Roma que havia imigrado para a América quando Mussolini introduziu as leis raciais da Itália, perguntou a Morris Kertzer se ele poderia fazer um anúncio para ver se sua mãe havia sobrevivido à guerra. O rabino posicionou o soldado ao seu lado e, quando os cultos começaram, um grito irrompeu, e a mãe do soldado correu para abraçar o filho.

“Essa é a história que mais me lembro de meu pai contando”, disse David Kertzer.

Um ano antes do nascimento de Kertzer em 1948, seus pais acolheram uma adolescente sobrevivente de Auschwitz. Quando imagens de soldados nazistas apareciam na televisão, Kertzer e sua irmã mais velha, Ruth, corriam para desligar o aparelho para proteger sua irmã adotiva, Eva.

A essa altura, seu pai havia se tornado o diretor de assuntos inter-religiosos do Comitê Judaico Americano, essencialmente para tentar despojar as igrejas cristãs do antissemitismo. Como parte do esforço de normalização, um jovem David Kertzer apareceu no Tonight Show de Jack Paar, cantando orações no Sêder de Pessach da família.

Na Brown University, sua posição contra a Guerra do Vietnã quase o expulsou e o colocou em uma cela de prisão com Norman Mailer. Ele permaneceu na faculdade e se apaixonou pela antropologia e por Susan Dana, uma estudante de religião do Maine.

Para ficar perto dela, ele foi em 1969 para uma pós-graduação em Brandeis, onde um professor de antropologia sugeriu que seu interesse por política e religião tornava a Itália um rico campo de estudo.

O resultado foi um ano de pesquisa em Bolonha, Itália, com Susan, agora sua esposa, e seu primeiro livro, Comrades and Christians. Depois de obter seu doutorado, conseguiu postos em Bowdoin e Brown, teve dois filhos, uma conexão vitalícia com a Itália e uma crescente familiaridade com os arquivos italianos - e depois, por acaso, com os do Vaticano.

No início dos anos 1990, um professor de história italiano lhe contou sobre Edgardo Mortara, um filho de 6 anos de pais judeus em Bolonha. Em 1858, o inquisidor da igreja ordenou que o menino fosse apanhado porque uma criada cristã possivelmente, e secretamente, havia mandado batizá-lo, e assim ele não poderia permanecer em uma família judia.

A história representava o que Kertzer chamou de “mudança dupla de carreira”, no sentido de escrever para o público em geral e sobre temas judaicos.

O resultado foi seu livro de 1998, The Kidnapping of Edgardo Mortara, finalista do National Book Award em não-ficção. Ele chamou a atenção de seu amigo, o dramaturgo Tony Kushner, que mais tarde o deu a Steven Spielberg, que disse a Kertzer que queria transformá-lo em um filme. Mark Rylance entrou no projeto para interpretar Pio IX. Kushner escreveu o roteiro. Só precisavam de um menino para interpretar Edgardo.

“Eles fizeram testes com 4.000 - não 3.900 - 4.000 meninos de 6 a 8 anos em quatro continentes”, disse Kertzer. “Spielberg nos informa que não está feliz com nenhum dos meninos.”

O projeto foi interrompido, mas Kertzer não. Ele emergiu dos arquivos para publicar The Pope Against the Jews, sobre o papel da Igreja na ascensão do antissemitismo moderno. Em 2014, ele publicou The Pope and Mussolini examinando o papel de Pio XI na ascensão do fascismo e das leis raciais antissemitas de 1938. Ganhou o Prêmio Pulitzer. /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times

THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - CIDADE DO VATICANO - David Kertzer largou seu cappuccino, colocou sua mochila e foi procurar mais segredos do Vaticano. “Parece uma caça ao tesouro”, disse Kertzer, um historiador de 74 anos.

David Kertzer na biblioteca da Academia Americana em Roma, após um dia de investigações acadêmicas dentro dos arquivos do Vaticano. Foto: Massimo Berruti/The New York Times

Momentos depois, ele atravessou uma multidão alinhada para ver o Papa Francisco, mostrou suas credenciais à Guarda Suíça e entrou nos arquivos da antiga sede da Santa Inquisição Romana.

Ao longo das últimas décadas, Kertzer virou a mesa inquisitiva da igreja. Usando os próprios arquivos do Vaticano, o professor de fala mansa da Brown University e administrador da Academia Americana em Roma tornou-se indiscutivelmente o escavador mais eficaz dos pecados ocultos do Vaticano, especialmente aqueles que antecederam e ocorreram durante a Segunda Guerra Mundial.

Filho de um rabino que participou da libertação de Roma como capelão do Exército, Kertzer cresceu em uma casa que acolheu uma criança adotiva cuja família foi assassinada em Auschwitz. Esse histórico familiar e seu ativismo na faculdade contra a guerra do Vietnã o imbuíram de um sentimento de indignação moral - temperado pela precaução de um estudioso.

O resultado são obras que ganharam o Prêmio Pulitzer, capturaram a imaginação de Steven Spielberg e lançaram uma luz às vezes dura sobre uma das instituições mais sombrias da Terra.

O último livro de Kertzer, The Pope at War, analisa o papel da Igreja na Segunda Guerra Mundial e no Holocausto - o que ele considera o evento formador de sua própria vida. Documenta a decisão privada que levou o Papa Pio XII a permanecer essencialmente em silêncio sobre o genocídio de Hitler e argumenta que o impacto do pontífice na guerra é subestimado - e não no bom sentido.

“Parte do que espero conseguir”, disse Kertzer, “é mostrar a importância do papel que Pio XII desempenhou”.

O atual papa, Francisco, disse: “A Igreja não tem medo da história”, quando ordenou a abertura dos arquivos de Pio XII em 2019. Mas enquanto Francisco luta vigorosamente para condenar um ditador, desta vez Vladimir Putin da Rússia, Kertzer desenterrou algumas evidências assustadoras sobre o custo de manter o silêncio sobre assassinatos em massa.

Kertzer defende que o medo dominante de Pio XII do comunismo, sua crença de que as potências do Eixo venceriam a guerra e seu desejo de proteger os interesses da Igreja o motivaram a evitar ofender Adolph Hitler e Benito Mussolini, cujos embaixadores haviam trabalhado para colocá-lo no trono. O papa também estava preocupado, mostra o livro, com o fato de que se opor ao Führer afastaria milhões de católicos alemães.

O livro revela ainda que um príncipe alemão e nazista fervoroso agiu como um canal secreto entre Pio XII e Hitler e que o principal conselheiro do papa no Vaticano para questões judaicas o encorajou em uma carta a não protestar contra uma ordem fascista de prender e enviar para campos de concentração a maioria dos judeus da Itália.

“Isso foi surpreendente”, disse Kertzer sobre encontrar a carta.

Defensores de Pio XII, cujo caso de santidade ainda está sendo avaliado, há muito argumentam que ele trabalhou nos bastidores para ajudar os judeus e que os inimigos anticatólicos tentaram manchar a instituição maculando o pontífice.

“Um protesto mais aberto não teria salvado um único judeu, mas matado ainda mais”, escreveu Michael Hesemann, que considera Pio XII um defensor dos judeus, em resposta às evidências reveladas por Kertzer, a quem ele chamou de “fortemente tendencioso”.

Hesemann, que também é autor de um novo livro sobre o papa durante a guerra baseado nos arquivos do Vaticano, argumentou que o Vaticano, embora seguindo sua tradição de neutralidade, trabalhou para esconder judeus em conventos e distribuir certidões de batismo falsas.

Kertzer argumenta que os documentos desenterrados pintam uma imagem mais sutil de Pio XII, e não mostram-no nem como o monstro antissemita frequentemente chamado de “Papa de Hitler” nem como um herói. Mas o desejo de proteger a reputação de Pio, de acordo com Kertzer, reflete uma recusa mais geral da Itália - e de apologistas do Vaticano - em aceitar sua cumplicidade na Segunda Guerra Mundial, no Holocausto e no assassinato dos judeus de Roma.

Em 16 de outubro de 1943, os nazistas cercaram mais de 1.000 deles em toda a cidade, incluindo centenas no bairro judeu, agora uma atração turística onde multidões se banqueteiam com alcachofras ao estilo judaico perto de uma igreja onde os judeus já foram forçados a assistir a sermões de conversão.

Por dois dias, os alemães mantiveram os judeus em um colégio militar perto do Vaticano, verificando quem era batizado ou tinha cônjuges católicos.

“Eles não queriam ofender o papa”, disse Kertzer. Seu livro mostra que os principais assessores de Pio XII apenas intercederam junto ao embaixador alemão para libertar “católicos não-arianos”. Cerca de 250 foram liberados. Mais de 1.000 foram assassinados em Auschwitz.

Quando o Quinto Exército dos EUA chegou a Roma, o pai de Kertzer, tenente Morris Kertzer, um rabino nascido no Canadá, estava com eles e oficiou na sinagoga.

Um soldado americano, judeu de Roma que havia imigrado para a América quando Mussolini introduziu as leis raciais da Itália, perguntou a Morris Kertzer se ele poderia fazer um anúncio para ver se sua mãe havia sobrevivido à guerra. O rabino posicionou o soldado ao seu lado e, quando os cultos começaram, um grito irrompeu, e a mãe do soldado correu para abraçar o filho.

“Essa é a história que mais me lembro de meu pai contando”, disse David Kertzer.

Um ano antes do nascimento de Kertzer em 1948, seus pais acolheram uma adolescente sobrevivente de Auschwitz. Quando imagens de soldados nazistas apareciam na televisão, Kertzer e sua irmã mais velha, Ruth, corriam para desligar o aparelho para proteger sua irmã adotiva, Eva.

A essa altura, seu pai havia se tornado o diretor de assuntos inter-religiosos do Comitê Judaico Americano, essencialmente para tentar despojar as igrejas cristãs do antissemitismo. Como parte do esforço de normalização, um jovem David Kertzer apareceu no Tonight Show de Jack Paar, cantando orações no Sêder de Pessach da família.

Na Brown University, sua posição contra a Guerra do Vietnã quase o expulsou e o colocou em uma cela de prisão com Norman Mailer. Ele permaneceu na faculdade e se apaixonou pela antropologia e por Susan Dana, uma estudante de religião do Maine.

Para ficar perto dela, ele foi em 1969 para uma pós-graduação em Brandeis, onde um professor de antropologia sugeriu que seu interesse por política e religião tornava a Itália um rico campo de estudo.

O resultado foi um ano de pesquisa em Bolonha, Itália, com Susan, agora sua esposa, e seu primeiro livro, Comrades and Christians. Depois de obter seu doutorado, conseguiu postos em Bowdoin e Brown, teve dois filhos, uma conexão vitalícia com a Itália e uma crescente familiaridade com os arquivos italianos - e depois, por acaso, com os do Vaticano.

No início dos anos 1990, um professor de história italiano lhe contou sobre Edgardo Mortara, um filho de 6 anos de pais judeus em Bolonha. Em 1858, o inquisidor da igreja ordenou que o menino fosse apanhado porque uma criada cristã possivelmente, e secretamente, havia mandado batizá-lo, e assim ele não poderia permanecer em uma família judia.

A história representava o que Kertzer chamou de “mudança dupla de carreira”, no sentido de escrever para o público em geral e sobre temas judaicos.

O resultado foi seu livro de 1998, The Kidnapping of Edgardo Mortara, finalista do National Book Award em não-ficção. Ele chamou a atenção de seu amigo, o dramaturgo Tony Kushner, que mais tarde o deu a Steven Spielberg, que disse a Kertzer que queria transformá-lo em um filme. Mark Rylance entrou no projeto para interpretar Pio IX. Kushner escreveu o roteiro. Só precisavam de um menino para interpretar Edgardo.

“Eles fizeram testes com 4.000 - não 3.900 - 4.000 meninos de 6 a 8 anos em quatro continentes”, disse Kertzer. “Spielberg nos informa que não está feliz com nenhum dos meninos.”

O projeto foi interrompido, mas Kertzer não. Ele emergiu dos arquivos para publicar The Pope Against the Jews, sobre o papel da Igreja na ascensão do antissemitismo moderno. Em 2014, ele publicou The Pope and Mussolini examinando o papel de Pio XI na ascensão do fascismo e das leis raciais antissemitas de 1938. Ganhou o Prêmio Pulitzer. /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times

THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - CIDADE DO VATICANO - David Kertzer largou seu cappuccino, colocou sua mochila e foi procurar mais segredos do Vaticano. “Parece uma caça ao tesouro”, disse Kertzer, um historiador de 74 anos.

David Kertzer na biblioteca da Academia Americana em Roma, após um dia de investigações acadêmicas dentro dos arquivos do Vaticano. Foto: Massimo Berruti/The New York Times

Momentos depois, ele atravessou uma multidão alinhada para ver o Papa Francisco, mostrou suas credenciais à Guarda Suíça e entrou nos arquivos da antiga sede da Santa Inquisição Romana.

Ao longo das últimas décadas, Kertzer virou a mesa inquisitiva da igreja. Usando os próprios arquivos do Vaticano, o professor de fala mansa da Brown University e administrador da Academia Americana em Roma tornou-se indiscutivelmente o escavador mais eficaz dos pecados ocultos do Vaticano, especialmente aqueles que antecederam e ocorreram durante a Segunda Guerra Mundial.

Filho de um rabino que participou da libertação de Roma como capelão do Exército, Kertzer cresceu em uma casa que acolheu uma criança adotiva cuja família foi assassinada em Auschwitz. Esse histórico familiar e seu ativismo na faculdade contra a guerra do Vietnã o imbuíram de um sentimento de indignação moral - temperado pela precaução de um estudioso.

O resultado são obras que ganharam o Prêmio Pulitzer, capturaram a imaginação de Steven Spielberg e lançaram uma luz às vezes dura sobre uma das instituições mais sombrias da Terra.

O último livro de Kertzer, The Pope at War, analisa o papel da Igreja na Segunda Guerra Mundial e no Holocausto - o que ele considera o evento formador de sua própria vida. Documenta a decisão privada que levou o Papa Pio XII a permanecer essencialmente em silêncio sobre o genocídio de Hitler e argumenta que o impacto do pontífice na guerra é subestimado - e não no bom sentido.

“Parte do que espero conseguir”, disse Kertzer, “é mostrar a importância do papel que Pio XII desempenhou”.

O atual papa, Francisco, disse: “A Igreja não tem medo da história”, quando ordenou a abertura dos arquivos de Pio XII em 2019. Mas enquanto Francisco luta vigorosamente para condenar um ditador, desta vez Vladimir Putin da Rússia, Kertzer desenterrou algumas evidências assustadoras sobre o custo de manter o silêncio sobre assassinatos em massa.

Kertzer defende que o medo dominante de Pio XII do comunismo, sua crença de que as potências do Eixo venceriam a guerra e seu desejo de proteger os interesses da Igreja o motivaram a evitar ofender Adolph Hitler e Benito Mussolini, cujos embaixadores haviam trabalhado para colocá-lo no trono. O papa também estava preocupado, mostra o livro, com o fato de que se opor ao Führer afastaria milhões de católicos alemães.

O livro revela ainda que um príncipe alemão e nazista fervoroso agiu como um canal secreto entre Pio XII e Hitler e que o principal conselheiro do papa no Vaticano para questões judaicas o encorajou em uma carta a não protestar contra uma ordem fascista de prender e enviar para campos de concentração a maioria dos judeus da Itália.

“Isso foi surpreendente”, disse Kertzer sobre encontrar a carta.

Defensores de Pio XII, cujo caso de santidade ainda está sendo avaliado, há muito argumentam que ele trabalhou nos bastidores para ajudar os judeus e que os inimigos anticatólicos tentaram manchar a instituição maculando o pontífice.

“Um protesto mais aberto não teria salvado um único judeu, mas matado ainda mais”, escreveu Michael Hesemann, que considera Pio XII um defensor dos judeus, em resposta às evidências reveladas por Kertzer, a quem ele chamou de “fortemente tendencioso”.

Hesemann, que também é autor de um novo livro sobre o papa durante a guerra baseado nos arquivos do Vaticano, argumentou que o Vaticano, embora seguindo sua tradição de neutralidade, trabalhou para esconder judeus em conventos e distribuir certidões de batismo falsas.

Kertzer argumenta que os documentos desenterrados pintam uma imagem mais sutil de Pio XII, e não mostram-no nem como o monstro antissemita frequentemente chamado de “Papa de Hitler” nem como um herói. Mas o desejo de proteger a reputação de Pio, de acordo com Kertzer, reflete uma recusa mais geral da Itália - e de apologistas do Vaticano - em aceitar sua cumplicidade na Segunda Guerra Mundial, no Holocausto e no assassinato dos judeus de Roma.

Em 16 de outubro de 1943, os nazistas cercaram mais de 1.000 deles em toda a cidade, incluindo centenas no bairro judeu, agora uma atração turística onde multidões se banqueteiam com alcachofras ao estilo judaico perto de uma igreja onde os judeus já foram forçados a assistir a sermões de conversão.

Por dois dias, os alemães mantiveram os judeus em um colégio militar perto do Vaticano, verificando quem era batizado ou tinha cônjuges católicos.

“Eles não queriam ofender o papa”, disse Kertzer. Seu livro mostra que os principais assessores de Pio XII apenas intercederam junto ao embaixador alemão para libertar “católicos não-arianos”. Cerca de 250 foram liberados. Mais de 1.000 foram assassinados em Auschwitz.

Quando o Quinto Exército dos EUA chegou a Roma, o pai de Kertzer, tenente Morris Kertzer, um rabino nascido no Canadá, estava com eles e oficiou na sinagoga.

Um soldado americano, judeu de Roma que havia imigrado para a América quando Mussolini introduziu as leis raciais da Itália, perguntou a Morris Kertzer se ele poderia fazer um anúncio para ver se sua mãe havia sobrevivido à guerra. O rabino posicionou o soldado ao seu lado e, quando os cultos começaram, um grito irrompeu, e a mãe do soldado correu para abraçar o filho.

“Essa é a história que mais me lembro de meu pai contando”, disse David Kertzer.

Um ano antes do nascimento de Kertzer em 1948, seus pais acolheram uma adolescente sobrevivente de Auschwitz. Quando imagens de soldados nazistas apareciam na televisão, Kertzer e sua irmã mais velha, Ruth, corriam para desligar o aparelho para proteger sua irmã adotiva, Eva.

A essa altura, seu pai havia se tornado o diretor de assuntos inter-religiosos do Comitê Judaico Americano, essencialmente para tentar despojar as igrejas cristãs do antissemitismo. Como parte do esforço de normalização, um jovem David Kertzer apareceu no Tonight Show de Jack Paar, cantando orações no Sêder de Pessach da família.

Na Brown University, sua posição contra a Guerra do Vietnã quase o expulsou e o colocou em uma cela de prisão com Norman Mailer. Ele permaneceu na faculdade e se apaixonou pela antropologia e por Susan Dana, uma estudante de religião do Maine.

Para ficar perto dela, ele foi em 1969 para uma pós-graduação em Brandeis, onde um professor de antropologia sugeriu que seu interesse por política e religião tornava a Itália um rico campo de estudo.

O resultado foi um ano de pesquisa em Bolonha, Itália, com Susan, agora sua esposa, e seu primeiro livro, Comrades and Christians. Depois de obter seu doutorado, conseguiu postos em Bowdoin e Brown, teve dois filhos, uma conexão vitalícia com a Itália e uma crescente familiaridade com os arquivos italianos - e depois, por acaso, com os do Vaticano.

No início dos anos 1990, um professor de história italiano lhe contou sobre Edgardo Mortara, um filho de 6 anos de pais judeus em Bolonha. Em 1858, o inquisidor da igreja ordenou que o menino fosse apanhado porque uma criada cristã possivelmente, e secretamente, havia mandado batizá-lo, e assim ele não poderia permanecer em uma família judia.

A história representava o que Kertzer chamou de “mudança dupla de carreira”, no sentido de escrever para o público em geral e sobre temas judaicos.

O resultado foi seu livro de 1998, The Kidnapping of Edgardo Mortara, finalista do National Book Award em não-ficção. Ele chamou a atenção de seu amigo, o dramaturgo Tony Kushner, que mais tarde o deu a Steven Spielberg, que disse a Kertzer que queria transformá-lo em um filme. Mark Rylance entrou no projeto para interpretar Pio IX. Kushner escreveu o roteiro. Só precisavam de um menino para interpretar Edgardo.

“Eles fizeram testes com 4.000 - não 3.900 - 4.000 meninos de 6 a 8 anos em quatro continentes”, disse Kertzer. “Spielberg nos informa que não está feliz com nenhum dos meninos.”

O projeto foi interrompido, mas Kertzer não. Ele emergiu dos arquivos para publicar The Pope Against the Jews, sobre o papel da Igreja na ascensão do antissemitismo moderno. Em 2014, ele publicou The Pope and Mussolini examinando o papel de Pio XI na ascensão do fascismo e das leis raciais antissemitas de 1938. Ganhou o Prêmio Pulitzer. /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

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