Finalmente, filmes com jazz são retratados por cineastas negros


'A Voz Suprema do Blues', 'Sylvie’s Love' e 'Soul' compreendem a música e seu lugar na vida afro-americana, uma pausa bem-vinda na história de Hollywood

Por Giovanni Russonello

No meio de A Voz Suprema do Blues, drama da Netflix baseado na aclamada peça de teatro de August Wilson, a protagonista começa um monólogo: “Os brancos não entendem nada de blues”, pondera Rainey (Viola Davis), pioneira da encruzilhada entre o blues e o jazz com uma fé inflexível em seu próprio motor expressivo.

“Eles ouvem o som, mas não sabem como as coisas foram parar lá”, diz ela enquanto se prepara para gravar num estúdio de Chicago em 1927. “Eles não entendem que é assim que a vida fala. Você não canta para se sentir melhor, você canta porque é seu jeito de entender a vida”.

Novosfilmes sobre jazz apresentam protagonistas negros resplandecendo – musicalmente, visualmente, tematicamente. Foto: Netflix
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O tempo parece parar quando Rainey fala. A diferença entre suas palavras e o que a sociedade branca está pronta para ouvir se estende diante de nós. Você percebe que este é o espaço fértil onde sua música cresce – um território sem governo, cheio demais de espírito, expressão e abnegação para a lei ou a política interferirem. Mas esta cena talvez seja tão brilhante justamente por ser muito rara na história do cinema.

Os filmes quase nunca contaram a história do jazz através das lentes da vida negra. Agora, indesculpavelmente tarde, isso está começando a mudar. Dirigido pelo veterano diretor de teatro George C. Wolfe, A Voz Suprema do Blues é um dos três filmes lançados nesta temporada que se concentram no jazz e no blues; todos foram feitos por diretores ou codiretores negros.

Os outros dois são histórias da cidade de Nova York: Sylvie's Love, de Eugene Ashe, um romance de meados do século entre um jovem saxofonista de jazz e uma produtora de TV emergente, e Soul, um longa-metragem da Pixar dirigido por Pete Docter e codirigido por Kemp Powers que usa a experiência de quase morte de um pianista para abrir questões sobre inspiração, compaixão e como todos nós navegamos no interminável contraponto entre a frustração e a resiliência.

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Os filmes apresentam protagonistas negros resplandecendo – musicalmente, visualmente, tematicamente – e dá a esses personagens uma dimensionalidade e uma profundidade que reflete a própria música. Lembra a explicação de Toni Morrison para o motivo de ela ter escrito Jazz, seu romance de 1992: ela queria explorar as mudanças na vida afro-americana provocadas pela Grande Migração – mudanças, ela escreveu mais tarde, “que ficaram abundantemente claras na música”.

Os novos filmes superaram muitos, embora não todos, dos problemas que perseguiram os filmes de jazz do passado, os quais historicamente se esforçaram mais para contornar as limitações do olhar branco do que para mostrar de onde a música surge ou seu poder de transcender. A escuta e o patrocínio dos brancos realmente não entram nas narrativas desses novos filmes como outra coisa senão uma distração ou uma inconveniência necessária.

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No início do ano passado, o crítico Kevin Whitehead publicou Play the Way You Feel: The Essential Guide to Jazz Stories on Film (Toque da Forma Como Se Sente: Guia Essencial Para Histórias do Jazz nos Filmes, em tradução livre), uma pesquisa sobre a longa história do jazz nas telas de cinema. Como ele observa, o jazz e o cinema cresceram juntos no período entre guerras. Mas naqueles anos e muito mais além, escreve Whitehead, os filmes consistentemente apagaram a história do jazz: “Num filme depois do outro, os afro-americanos, que inventaram a música, são empurrados para as margens – isso quando os personagens brancos não os empurram para fora da tela”.

Aconteceu em New Orleans, filme de 1947 estrelado por Louis Armstrong e Billie Holiday que deveria ser sobre a ascensão de Armstrong, mas foi reescrito, a pedido de seus produtores, para colocar uma história de amor entre brancos no centro da trama. Aconteceu em Paris Blues, drama de 1961 com Paul Newman e Sidney Poitier, baseado em um romance sobre os casos de amor inter-raciais de dois músicos de jazz. Este elemento-chave, porém, foi mais ou menos apagado do roteiro. Em última análise, o filme é sobre a luta do trombonista Ram, interpretado por Newman, para convencer a si mesmo e aos outros de que o jazz é digno de sua obsessão. Ele insiste que uma carreira como músico de improviso requer uma devoção tão absoluta que ele não conseguirá manter um relacionamento.

Nos últimos anos, o jazz apareceu nas telas com mais destaque na obra de Damien Chazelle. Seus Whiplash (2014) e La La Land (2016) contam histórias de jovens brancos que, assim como Ram, estão tortuosamente comprometidos em tocar jazz e a sensação de excelência que isso lhes proporciona.

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Nesses filmes, o jazz é um desafio e um fardo. Mas em Sylvie’s Love, A Voz Suprema do Blues e Soul, a música é mais um bálsamo: um rio de possibilidades correndo por um país hostil e – como Rainey diz no roteiro de Wilson – simplesmente a linguagem da vida.

Em muitos níveis, o mais expansivo e comovente dos novos filmes de jazz é Soul. Pianista e professor de banda do ensino médio, Joe está à beira da morte quando seu espírito foge para o Grande Antes, onde almas não iniciadas se preparam para entrar em corpos ao nascer. Lá ele encontra 22, uma alma recalcitrante a quem os poderes constituídos não conseguiram convencer a encarnar num corpo humano.

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Em sua sala de aula, Joe (dublado por Jamie Foxx) prega as glórias da improvisação de jazz, baseando-se numa história verídica que o famoso pianista Jon Batiste, que interpreta a música que Joe toca, contou ao diretor do filme, Docter, e ao codiretor, Powers. “Foi o momento em que me apaixonei pelo jazz”, diz Joe, relembrando a primeira vez que entrou num clube de jazz quando criança. Ele acaricia as teclas do piano enquanto fala. “Ouça isso!”, ele diz.

“Olha só, a melodia é apenas uma desculpa para trazer você à tona”. Depois que um acidente deixa Joe na UTI e sua alma sai do corpo, ele e 22 elaboram um plano para trazê-lo de volta à vida. Ele descobre que todas as almas precisam de uma “centelha” que desperte sua paixão e as guie pela vida.

Ele sabe de imediato que sua centelha é tocar piano. Este, diz ele, é o seu propósito na vida. Mas um dos guias espirituais-conselheiros que povoam o Grande Antes (todos chamados de Jerry) rapidamente o corrige. “Não atribuímos propósitos”, diz este Jerry.

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“De onde você tirou essa ideia? A centelha não é o propósito da alma. Oh, vocês, mentores, e suas paixões – seus ‘propósitos’, seus significados de vida! Que bobos!”. A conversa fica maravilhosamente em aberto. Mas o argumento fica bem claro e sutil: acima do significado, acima do propósito, acima de qualquer meio para um fim, existe apenas a vida. Ou seja, a música. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times

No meio de A Voz Suprema do Blues, drama da Netflix baseado na aclamada peça de teatro de August Wilson, a protagonista começa um monólogo: “Os brancos não entendem nada de blues”, pondera Rainey (Viola Davis), pioneira da encruzilhada entre o blues e o jazz com uma fé inflexível em seu próprio motor expressivo.

“Eles ouvem o som, mas não sabem como as coisas foram parar lá”, diz ela enquanto se prepara para gravar num estúdio de Chicago em 1927. “Eles não entendem que é assim que a vida fala. Você não canta para se sentir melhor, você canta porque é seu jeito de entender a vida”.

Novosfilmes sobre jazz apresentam protagonistas negros resplandecendo – musicalmente, visualmente, tematicamente. Foto: Netflix

O tempo parece parar quando Rainey fala. A diferença entre suas palavras e o que a sociedade branca está pronta para ouvir se estende diante de nós. Você percebe que este é o espaço fértil onde sua música cresce – um território sem governo, cheio demais de espírito, expressão e abnegação para a lei ou a política interferirem. Mas esta cena talvez seja tão brilhante justamente por ser muito rara na história do cinema.

Os filmes quase nunca contaram a história do jazz através das lentes da vida negra. Agora, indesculpavelmente tarde, isso está começando a mudar. Dirigido pelo veterano diretor de teatro George C. Wolfe, A Voz Suprema do Blues é um dos três filmes lançados nesta temporada que se concentram no jazz e no blues; todos foram feitos por diretores ou codiretores negros.

Os outros dois são histórias da cidade de Nova York: Sylvie's Love, de Eugene Ashe, um romance de meados do século entre um jovem saxofonista de jazz e uma produtora de TV emergente, e Soul, um longa-metragem da Pixar dirigido por Pete Docter e codirigido por Kemp Powers que usa a experiência de quase morte de um pianista para abrir questões sobre inspiração, compaixão e como todos nós navegamos no interminável contraponto entre a frustração e a resiliência.

Os filmes apresentam protagonistas negros resplandecendo – musicalmente, visualmente, tematicamente – e dá a esses personagens uma dimensionalidade e uma profundidade que reflete a própria música. Lembra a explicação de Toni Morrison para o motivo de ela ter escrito Jazz, seu romance de 1992: ela queria explorar as mudanças na vida afro-americana provocadas pela Grande Migração – mudanças, ela escreveu mais tarde, “que ficaram abundantemente claras na música”.

Os novos filmes superaram muitos, embora não todos, dos problemas que perseguiram os filmes de jazz do passado, os quais historicamente se esforçaram mais para contornar as limitações do olhar branco do que para mostrar de onde a música surge ou seu poder de transcender. A escuta e o patrocínio dos brancos realmente não entram nas narrativas desses novos filmes como outra coisa senão uma distração ou uma inconveniência necessária.

No início do ano passado, o crítico Kevin Whitehead publicou Play the Way You Feel: The Essential Guide to Jazz Stories on Film (Toque da Forma Como Se Sente: Guia Essencial Para Histórias do Jazz nos Filmes, em tradução livre), uma pesquisa sobre a longa história do jazz nas telas de cinema. Como ele observa, o jazz e o cinema cresceram juntos no período entre guerras. Mas naqueles anos e muito mais além, escreve Whitehead, os filmes consistentemente apagaram a história do jazz: “Num filme depois do outro, os afro-americanos, que inventaram a música, são empurrados para as margens – isso quando os personagens brancos não os empurram para fora da tela”.

Aconteceu em New Orleans, filme de 1947 estrelado por Louis Armstrong e Billie Holiday que deveria ser sobre a ascensão de Armstrong, mas foi reescrito, a pedido de seus produtores, para colocar uma história de amor entre brancos no centro da trama. Aconteceu em Paris Blues, drama de 1961 com Paul Newman e Sidney Poitier, baseado em um romance sobre os casos de amor inter-raciais de dois músicos de jazz. Este elemento-chave, porém, foi mais ou menos apagado do roteiro. Em última análise, o filme é sobre a luta do trombonista Ram, interpretado por Newman, para convencer a si mesmo e aos outros de que o jazz é digno de sua obsessão. Ele insiste que uma carreira como músico de improviso requer uma devoção tão absoluta que ele não conseguirá manter um relacionamento.

Nos últimos anos, o jazz apareceu nas telas com mais destaque na obra de Damien Chazelle. Seus Whiplash (2014) e La La Land (2016) contam histórias de jovens brancos que, assim como Ram, estão tortuosamente comprometidos em tocar jazz e a sensação de excelência que isso lhes proporciona.

Nesses filmes, o jazz é um desafio e um fardo. Mas em Sylvie’s Love, A Voz Suprema do Blues e Soul, a música é mais um bálsamo: um rio de possibilidades correndo por um país hostil e – como Rainey diz no roteiro de Wilson – simplesmente a linguagem da vida.

Em muitos níveis, o mais expansivo e comovente dos novos filmes de jazz é Soul. Pianista e professor de banda do ensino médio, Joe está à beira da morte quando seu espírito foge para o Grande Antes, onde almas não iniciadas se preparam para entrar em corpos ao nascer. Lá ele encontra 22, uma alma recalcitrante a quem os poderes constituídos não conseguiram convencer a encarnar num corpo humano.

Em sua sala de aula, Joe (dublado por Jamie Foxx) prega as glórias da improvisação de jazz, baseando-se numa história verídica que o famoso pianista Jon Batiste, que interpreta a música que Joe toca, contou ao diretor do filme, Docter, e ao codiretor, Powers. “Foi o momento em que me apaixonei pelo jazz”, diz Joe, relembrando a primeira vez que entrou num clube de jazz quando criança. Ele acaricia as teclas do piano enquanto fala. “Ouça isso!”, ele diz.

“Olha só, a melodia é apenas uma desculpa para trazer você à tona”. Depois que um acidente deixa Joe na UTI e sua alma sai do corpo, ele e 22 elaboram um plano para trazê-lo de volta à vida. Ele descobre que todas as almas precisam de uma “centelha” que desperte sua paixão e as guie pela vida.

Ele sabe de imediato que sua centelha é tocar piano. Este, diz ele, é o seu propósito na vida. Mas um dos guias espirituais-conselheiros que povoam o Grande Antes (todos chamados de Jerry) rapidamente o corrige. “Não atribuímos propósitos”, diz este Jerry.

“De onde você tirou essa ideia? A centelha não é o propósito da alma. Oh, vocês, mentores, e suas paixões – seus ‘propósitos’, seus significados de vida! Que bobos!”. A conversa fica maravilhosamente em aberto. Mas o argumento fica bem claro e sutil: acima do significado, acima do propósito, acima de qualquer meio para um fim, existe apenas a vida. Ou seja, a música. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times

No meio de A Voz Suprema do Blues, drama da Netflix baseado na aclamada peça de teatro de August Wilson, a protagonista começa um monólogo: “Os brancos não entendem nada de blues”, pondera Rainey (Viola Davis), pioneira da encruzilhada entre o blues e o jazz com uma fé inflexível em seu próprio motor expressivo.

“Eles ouvem o som, mas não sabem como as coisas foram parar lá”, diz ela enquanto se prepara para gravar num estúdio de Chicago em 1927. “Eles não entendem que é assim que a vida fala. Você não canta para se sentir melhor, você canta porque é seu jeito de entender a vida”.

Novosfilmes sobre jazz apresentam protagonistas negros resplandecendo – musicalmente, visualmente, tematicamente. Foto: Netflix

O tempo parece parar quando Rainey fala. A diferença entre suas palavras e o que a sociedade branca está pronta para ouvir se estende diante de nós. Você percebe que este é o espaço fértil onde sua música cresce – um território sem governo, cheio demais de espírito, expressão e abnegação para a lei ou a política interferirem. Mas esta cena talvez seja tão brilhante justamente por ser muito rara na história do cinema.

Os filmes quase nunca contaram a história do jazz através das lentes da vida negra. Agora, indesculpavelmente tarde, isso está começando a mudar. Dirigido pelo veterano diretor de teatro George C. Wolfe, A Voz Suprema do Blues é um dos três filmes lançados nesta temporada que se concentram no jazz e no blues; todos foram feitos por diretores ou codiretores negros.

Os outros dois são histórias da cidade de Nova York: Sylvie's Love, de Eugene Ashe, um romance de meados do século entre um jovem saxofonista de jazz e uma produtora de TV emergente, e Soul, um longa-metragem da Pixar dirigido por Pete Docter e codirigido por Kemp Powers que usa a experiência de quase morte de um pianista para abrir questões sobre inspiração, compaixão e como todos nós navegamos no interminável contraponto entre a frustração e a resiliência.

Os filmes apresentam protagonistas negros resplandecendo – musicalmente, visualmente, tematicamente – e dá a esses personagens uma dimensionalidade e uma profundidade que reflete a própria música. Lembra a explicação de Toni Morrison para o motivo de ela ter escrito Jazz, seu romance de 1992: ela queria explorar as mudanças na vida afro-americana provocadas pela Grande Migração – mudanças, ela escreveu mais tarde, “que ficaram abundantemente claras na música”.

Os novos filmes superaram muitos, embora não todos, dos problemas que perseguiram os filmes de jazz do passado, os quais historicamente se esforçaram mais para contornar as limitações do olhar branco do que para mostrar de onde a música surge ou seu poder de transcender. A escuta e o patrocínio dos brancos realmente não entram nas narrativas desses novos filmes como outra coisa senão uma distração ou uma inconveniência necessária.

No início do ano passado, o crítico Kevin Whitehead publicou Play the Way You Feel: The Essential Guide to Jazz Stories on Film (Toque da Forma Como Se Sente: Guia Essencial Para Histórias do Jazz nos Filmes, em tradução livre), uma pesquisa sobre a longa história do jazz nas telas de cinema. Como ele observa, o jazz e o cinema cresceram juntos no período entre guerras. Mas naqueles anos e muito mais além, escreve Whitehead, os filmes consistentemente apagaram a história do jazz: “Num filme depois do outro, os afro-americanos, que inventaram a música, são empurrados para as margens – isso quando os personagens brancos não os empurram para fora da tela”.

Aconteceu em New Orleans, filme de 1947 estrelado por Louis Armstrong e Billie Holiday que deveria ser sobre a ascensão de Armstrong, mas foi reescrito, a pedido de seus produtores, para colocar uma história de amor entre brancos no centro da trama. Aconteceu em Paris Blues, drama de 1961 com Paul Newman e Sidney Poitier, baseado em um romance sobre os casos de amor inter-raciais de dois músicos de jazz. Este elemento-chave, porém, foi mais ou menos apagado do roteiro. Em última análise, o filme é sobre a luta do trombonista Ram, interpretado por Newman, para convencer a si mesmo e aos outros de que o jazz é digno de sua obsessão. Ele insiste que uma carreira como músico de improviso requer uma devoção tão absoluta que ele não conseguirá manter um relacionamento.

Nos últimos anos, o jazz apareceu nas telas com mais destaque na obra de Damien Chazelle. Seus Whiplash (2014) e La La Land (2016) contam histórias de jovens brancos que, assim como Ram, estão tortuosamente comprometidos em tocar jazz e a sensação de excelência que isso lhes proporciona.

Nesses filmes, o jazz é um desafio e um fardo. Mas em Sylvie’s Love, A Voz Suprema do Blues e Soul, a música é mais um bálsamo: um rio de possibilidades correndo por um país hostil e – como Rainey diz no roteiro de Wilson – simplesmente a linguagem da vida.

Em muitos níveis, o mais expansivo e comovente dos novos filmes de jazz é Soul. Pianista e professor de banda do ensino médio, Joe está à beira da morte quando seu espírito foge para o Grande Antes, onde almas não iniciadas se preparam para entrar em corpos ao nascer. Lá ele encontra 22, uma alma recalcitrante a quem os poderes constituídos não conseguiram convencer a encarnar num corpo humano.

Em sua sala de aula, Joe (dublado por Jamie Foxx) prega as glórias da improvisação de jazz, baseando-se numa história verídica que o famoso pianista Jon Batiste, que interpreta a música que Joe toca, contou ao diretor do filme, Docter, e ao codiretor, Powers. “Foi o momento em que me apaixonei pelo jazz”, diz Joe, relembrando a primeira vez que entrou num clube de jazz quando criança. Ele acaricia as teclas do piano enquanto fala. “Ouça isso!”, ele diz.

“Olha só, a melodia é apenas uma desculpa para trazer você à tona”. Depois que um acidente deixa Joe na UTI e sua alma sai do corpo, ele e 22 elaboram um plano para trazê-lo de volta à vida. Ele descobre que todas as almas precisam de uma “centelha” que desperte sua paixão e as guie pela vida.

Ele sabe de imediato que sua centelha é tocar piano. Este, diz ele, é o seu propósito na vida. Mas um dos guias espirituais-conselheiros que povoam o Grande Antes (todos chamados de Jerry) rapidamente o corrige. “Não atribuímos propósitos”, diz este Jerry.

“De onde você tirou essa ideia? A centelha não é o propósito da alma. Oh, vocês, mentores, e suas paixões – seus ‘propósitos’, seus significados de vida! Que bobos!”. A conversa fica maravilhosamente em aberto. Mas o argumento fica bem claro e sutil: acima do significado, acima do propósito, acima de qualquer meio para um fim, existe apenas a vida. Ou seja, a música. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times

No meio de A Voz Suprema do Blues, drama da Netflix baseado na aclamada peça de teatro de August Wilson, a protagonista começa um monólogo: “Os brancos não entendem nada de blues”, pondera Rainey (Viola Davis), pioneira da encruzilhada entre o blues e o jazz com uma fé inflexível em seu próprio motor expressivo.

“Eles ouvem o som, mas não sabem como as coisas foram parar lá”, diz ela enquanto se prepara para gravar num estúdio de Chicago em 1927. “Eles não entendem que é assim que a vida fala. Você não canta para se sentir melhor, você canta porque é seu jeito de entender a vida”.

Novosfilmes sobre jazz apresentam protagonistas negros resplandecendo – musicalmente, visualmente, tematicamente. Foto: Netflix

O tempo parece parar quando Rainey fala. A diferença entre suas palavras e o que a sociedade branca está pronta para ouvir se estende diante de nós. Você percebe que este é o espaço fértil onde sua música cresce – um território sem governo, cheio demais de espírito, expressão e abnegação para a lei ou a política interferirem. Mas esta cena talvez seja tão brilhante justamente por ser muito rara na história do cinema.

Os filmes quase nunca contaram a história do jazz através das lentes da vida negra. Agora, indesculpavelmente tarde, isso está começando a mudar. Dirigido pelo veterano diretor de teatro George C. Wolfe, A Voz Suprema do Blues é um dos três filmes lançados nesta temporada que se concentram no jazz e no blues; todos foram feitos por diretores ou codiretores negros.

Os outros dois são histórias da cidade de Nova York: Sylvie's Love, de Eugene Ashe, um romance de meados do século entre um jovem saxofonista de jazz e uma produtora de TV emergente, e Soul, um longa-metragem da Pixar dirigido por Pete Docter e codirigido por Kemp Powers que usa a experiência de quase morte de um pianista para abrir questões sobre inspiração, compaixão e como todos nós navegamos no interminável contraponto entre a frustração e a resiliência.

Os filmes apresentam protagonistas negros resplandecendo – musicalmente, visualmente, tematicamente – e dá a esses personagens uma dimensionalidade e uma profundidade que reflete a própria música. Lembra a explicação de Toni Morrison para o motivo de ela ter escrito Jazz, seu romance de 1992: ela queria explorar as mudanças na vida afro-americana provocadas pela Grande Migração – mudanças, ela escreveu mais tarde, “que ficaram abundantemente claras na música”.

Os novos filmes superaram muitos, embora não todos, dos problemas que perseguiram os filmes de jazz do passado, os quais historicamente se esforçaram mais para contornar as limitações do olhar branco do que para mostrar de onde a música surge ou seu poder de transcender. A escuta e o patrocínio dos brancos realmente não entram nas narrativas desses novos filmes como outra coisa senão uma distração ou uma inconveniência necessária.

No início do ano passado, o crítico Kevin Whitehead publicou Play the Way You Feel: The Essential Guide to Jazz Stories on Film (Toque da Forma Como Se Sente: Guia Essencial Para Histórias do Jazz nos Filmes, em tradução livre), uma pesquisa sobre a longa história do jazz nas telas de cinema. Como ele observa, o jazz e o cinema cresceram juntos no período entre guerras. Mas naqueles anos e muito mais além, escreve Whitehead, os filmes consistentemente apagaram a história do jazz: “Num filme depois do outro, os afro-americanos, que inventaram a música, são empurrados para as margens – isso quando os personagens brancos não os empurram para fora da tela”.

Aconteceu em New Orleans, filme de 1947 estrelado por Louis Armstrong e Billie Holiday que deveria ser sobre a ascensão de Armstrong, mas foi reescrito, a pedido de seus produtores, para colocar uma história de amor entre brancos no centro da trama. Aconteceu em Paris Blues, drama de 1961 com Paul Newman e Sidney Poitier, baseado em um romance sobre os casos de amor inter-raciais de dois músicos de jazz. Este elemento-chave, porém, foi mais ou menos apagado do roteiro. Em última análise, o filme é sobre a luta do trombonista Ram, interpretado por Newman, para convencer a si mesmo e aos outros de que o jazz é digno de sua obsessão. Ele insiste que uma carreira como músico de improviso requer uma devoção tão absoluta que ele não conseguirá manter um relacionamento.

Nos últimos anos, o jazz apareceu nas telas com mais destaque na obra de Damien Chazelle. Seus Whiplash (2014) e La La Land (2016) contam histórias de jovens brancos que, assim como Ram, estão tortuosamente comprometidos em tocar jazz e a sensação de excelência que isso lhes proporciona.

Nesses filmes, o jazz é um desafio e um fardo. Mas em Sylvie’s Love, A Voz Suprema do Blues e Soul, a música é mais um bálsamo: um rio de possibilidades correndo por um país hostil e – como Rainey diz no roteiro de Wilson – simplesmente a linguagem da vida.

Em muitos níveis, o mais expansivo e comovente dos novos filmes de jazz é Soul. Pianista e professor de banda do ensino médio, Joe está à beira da morte quando seu espírito foge para o Grande Antes, onde almas não iniciadas se preparam para entrar em corpos ao nascer. Lá ele encontra 22, uma alma recalcitrante a quem os poderes constituídos não conseguiram convencer a encarnar num corpo humano.

Em sua sala de aula, Joe (dublado por Jamie Foxx) prega as glórias da improvisação de jazz, baseando-se numa história verídica que o famoso pianista Jon Batiste, que interpreta a música que Joe toca, contou ao diretor do filme, Docter, e ao codiretor, Powers. “Foi o momento em que me apaixonei pelo jazz”, diz Joe, relembrando a primeira vez que entrou num clube de jazz quando criança. Ele acaricia as teclas do piano enquanto fala. “Ouça isso!”, ele diz.

“Olha só, a melodia é apenas uma desculpa para trazer você à tona”. Depois que um acidente deixa Joe na UTI e sua alma sai do corpo, ele e 22 elaboram um plano para trazê-lo de volta à vida. Ele descobre que todas as almas precisam de uma “centelha” que desperte sua paixão e as guie pela vida.

Ele sabe de imediato que sua centelha é tocar piano. Este, diz ele, é o seu propósito na vida. Mas um dos guias espirituais-conselheiros que povoam o Grande Antes (todos chamados de Jerry) rapidamente o corrige. “Não atribuímos propósitos”, diz este Jerry.

“De onde você tirou essa ideia? A centelha não é o propósito da alma. Oh, vocês, mentores, e suas paixões – seus ‘propósitos’, seus significados de vida! Que bobos!”. A conversa fica maravilhosamente em aberto. Mas o argumento fica bem claro e sutil: acima do significado, acima do propósito, acima de qualquer meio para um fim, existe apenas a vida. Ou seja, a música. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times

No meio de A Voz Suprema do Blues, drama da Netflix baseado na aclamada peça de teatro de August Wilson, a protagonista começa um monólogo: “Os brancos não entendem nada de blues”, pondera Rainey (Viola Davis), pioneira da encruzilhada entre o blues e o jazz com uma fé inflexível em seu próprio motor expressivo.

“Eles ouvem o som, mas não sabem como as coisas foram parar lá”, diz ela enquanto se prepara para gravar num estúdio de Chicago em 1927. “Eles não entendem que é assim que a vida fala. Você não canta para se sentir melhor, você canta porque é seu jeito de entender a vida”.

Novosfilmes sobre jazz apresentam protagonistas negros resplandecendo – musicalmente, visualmente, tematicamente. Foto: Netflix

O tempo parece parar quando Rainey fala. A diferença entre suas palavras e o que a sociedade branca está pronta para ouvir se estende diante de nós. Você percebe que este é o espaço fértil onde sua música cresce – um território sem governo, cheio demais de espírito, expressão e abnegação para a lei ou a política interferirem. Mas esta cena talvez seja tão brilhante justamente por ser muito rara na história do cinema.

Os filmes quase nunca contaram a história do jazz através das lentes da vida negra. Agora, indesculpavelmente tarde, isso está começando a mudar. Dirigido pelo veterano diretor de teatro George C. Wolfe, A Voz Suprema do Blues é um dos três filmes lançados nesta temporada que se concentram no jazz e no blues; todos foram feitos por diretores ou codiretores negros.

Os outros dois são histórias da cidade de Nova York: Sylvie's Love, de Eugene Ashe, um romance de meados do século entre um jovem saxofonista de jazz e uma produtora de TV emergente, e Soul, um longa-metragem da Pixar dirigido por Pete Docter e codirigido por Kemp Powers que usa a experiência de quase morte de um pianista para abrir questões sobre inspiração, compaixão e como todos nós navegamos no interminável contraponto entre a frustração e a resiliência.

Os filmes apresentam protagonistas negros resplandecendo – musicalmente, visualmente, tematicamente – e dá a esses personagens uma dimensionalidade e uma profundidade que reflete a própria música. Lembra a explicação de Toni Morrison para o motivo de ela ter escrito Jazz, seu romance de 1992: ela queria explorar as mudanças na vida afro-americana provocadas pela Grande Migração – mudanças, ela escreveu mais tarde, “que ficaram abundantemente claras na música”.

Os novos filmes superaram muitos, embora não todos, dos problemas que perseguiram os filmes de jazz do passado, os quais historicamente se esforçaram mais para contornar as limitações do olhar branco do que para mostrar de onde a música surge ou seu poder de transcender. A escuta e o patrocínio dos brancos realmente não entram nas narrativas desses novos filmes como outra coisa senão uma distração ou uma inconveniência necessária.

No início do ano passado, o crítico Kevin Whitehead publicou Play the Way You Feel: The Essential Guide to Jazz Stories on Film (Toque da Forma Como Se Sente: Guia Essencial Para Histórias do Jazz nos Filmes, em tradução livre), uma pesquisa sobre a longa história do jazz nas telas de cinema. Como ele observa, o jazz e o cinema cresceram juntos no período entre guerras. Mas naqueles anos e muito mais além, escreve Whitehead, os filmes consistentemente apagaram a história do jazz: “Num filme depois do outro, os afro-americanos, que inventaram a música, são empurrados para as margens – isso quando os personagens brancos não os empurram para fora da tela”.

Aconteceu em New Orleans, filme de 1947 estrelado por Louis Armstrong e Billie Holiday que deveria ser sobre a ascensão de Armstrong, mas foi reescrito, a pedido de seus produtores, para colocar uma história de amor entre brancos no centro da trama. Aconteceu em Paris Blues, drama de 1961 com Paul Newman e Sidney Poitier, baseado em um romance sobre os casos de amor inter-raciais de dois músicos de jazz. Este elemento-chave, porém, foi mais ou menos apagado do roteiro. Em última análise, o filme é sobre a luta do trombonista Ram, interpretado por Newman, para convencer a si mesmo e aos outros de que o jazz é digno de sua obsessão. Ele insiste que uma carreira como músico de improviso requer uma devoção tão absoluta que ele não conseguirá manter um relacionamento.

Nos últimos anos, o jazz apareceu nas telas com mais destaque na obra de Damien Chazelle. Seus Whiplash (2014) e La La Land (2016) contam histórias de jovens brancos que, assim como Ram, estão tortuosamente comprometidos em tocar jazz e a sensação de excelência que isso lhes proporciona.

Nesses filmes, o jazz é um desafio e um fardo. Mas em Sylvie’s Love, A Voz Suprema do Blues e Soul, a música é mais um bálsamo: um rio de possibilidades correndo por um país hostil e – como Rainey diz no roteiro de Wilson – simplesmente a linguagem da vida.

Em muitos níveis, o mais expansivo e comovente dos novos filmes de jazz é Soul. Pianista e professor de banda do ensino médio, Joe está à beira da morte quando seu espírito foge para o Grande Antes, onde almas não iniciadas se preparam para entrar em corpos ao nascer. Lá ele encontra 22, uma alma recalcitrante a quem os poderes constituídos não conseguiram convencer a encarnar num corpo humano.

Em sua sala de aula, Joe (dublado por Jamie Foxx) prega as glórias da improvisação de jazz, baseando-se numa história verídica que o famoso pianista Jon Batiste, que interpreta a música que Joe toca, contou ao diretor do filme, Docter, e ao codiretor, Powers. “Foi o momento em que me apaixonei pelo jazz”, diz Joe, relembrando a primeira vez que entrou num clube de jazz quando criança. Ele acaricia as teclas do piano enquanto fala. “Ouça isso!”, ele diz.

“Olha só, a melodia é apenas uma desculpa para trazer você à tona”. Depois que um acidente deixa Joe na UTI e sua alma sai do corpo, ele e 22 elaboram um plano para trazê-lo de volta à vida. Ele descobre que todas as almas precisam de uma “centelha” que desperte sua paixão e as guie pela vida.

Ele sabe de imediato que sua centelha é tocar piano. Este, diz ele, é o seu propósito na vida. Mas um dos guias espirituais-conselheiros que povoam o Grande Antes (todos chamados de Jerry) rapidamente o corrige. “Não atribuímos propósitos”, diz este Jerry.

“De onde você tirou essa ideia? A centelha não é o propósito da alma. Oh, vocês, mentores, e suas paixões – seus ‘propósitos’, seus significados de vida! Que bobos!”. A conversa fica maravilhosamente em aberto. Mas o argumento fica bem claro e sutil: acima do significado, acima do propósito, acima de qualquer meio para um fim, existe apenas a vida. Ou seja, a música. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

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