Filtros em redes sociais reacendem uma obsessão antiga da humanidade com a simetria


Recursos acessíveis em qualquer smartphone permitem que os usuários avaliem suas características, criando uma preocupação maior com perfeição e beleza

Por Rhonda Garelick

THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - Os espelhos mentem. Eles invertem as coisas. Aquele rosto que você vê no banheiro todas as manhãs, em seu estojo de maquiagem: é “seu oposto” - o inverso do rosto que todo mundo vê. Todos nós sabemos disso, em teoria.

E, no entanto, nos últimos dois anos mais ou menos, esse simples fato fascinou e às vezes incomodou profundamente muitas pessoas (especialmente os jovens) que experimentavam os filtros de simetria facial nas redes sociais. Alguns desses filtros invertem o reflexo do espelho, revelando imagens do rosto como os outros o percebem, enervando muitos usuários ao lançar uma nova luz sobre todas as imperfeições às quais nossos reflexos espelhados familiares nos habituam ou nem deixam que percebamos: a linha irregular do cabelo, a boca torta, os olhos que não estão perfeitamente nivelados.

Tudo isso aparece nitidamente quando ocorre a inversão. Por essas razões, confrontar o rosto “virado” pode parecer um pouco estranho (não muito diferente de ouvir sua própria voz gravada).

continua após a publicidade

Outros filtros surpreendem de maneira diferente, criando simetria, alinhando feições e suavizando irregularidades, ou apresentando imagens aperfeiçoadas mas profundamente desconhecidas por meio de uma espécie de Photoshop em tempo real ou cirurgia plástica virtual.

Filtros de redes sociais reacenderam uma obsessão antiga da humanindade com a beleza.  Foto: Miki Kim/The New York Times

Os filtros tornaram-se muito populares. Com certa frequência, uma nova tendência focada na simetria do rosto parece tomar conta do TikTok, ao som de músicas (como Deja Vu de Olivia Rodrigo) ou filmes. Percorra as páginas e páginas de usuários experimentando esses filtros e você encontrará uma série de reações: algumas pessoas riem do que parece ser um reflexo distorcido como na casa de espelhos de um parque de diversões; outros parecem sentir um verdadeiro choque e desespero com o rosto desconhecido na tela do telefone.

continua após a publicidade

Um efeito de simetria comumente usado, listado no aplicativo como um dos efeitos criativos do TikTok, é “Inverted” (Invertido). De acordo com as contagens de visualizações públicas do TikTok, o efeito invertido foi usado em quase 10 milhões de vídeos. Na página da hashtag para #Inverted, uma descrição pergunta aos usuários: “Are you #Inverted? (Você está invertido?) Use nosso Efeito Criativo e descubra.”

O algoritmo também pode favorecer o uso de filtros de simetria. Seja algorítmico, puro interesse humano ou uma mistura dos dois, os vídeos marcados com #Inverted renderam 23 bilhões de visualizações no aplicativo.

O que impulsiona essa mania neste momento? A estranheza dos tempos de pandemia pode ser parcialmente responsável. Nos últimos dois anos, tivemos muito “tempo virtual” com os rostos e muito pouco tempo normal com as pessoas cara a cara. Em particular, passamos horas olhando para nossos próprios rostos e de outras pessoas, com todos os nossos defeitos, em telas de videoconferência. (O aumento de cirurgias plásticas na era da pandemia foi chamado de “boom do zoom”.) E em público, as máscaras nos privaram da experiência humana saudável de interagir com os rostos ao nosso redor. Isso por si só pode explicar um maior interesse em aplicativos de análise facial.

continua após a publicidade

Mas motivações muito além da pandemia também impulsionam essa tendência. Existe a diversão moderna de viralizar nas mídias sociais; o antigo e eterno fascínio pela beleza e como avaliá-la; a diversão alegre e carnavalesca de brincar com imagens espelhadas; e o desejo profundo de nos vermos como os outros nos veem.

Leslie Lizette Cartier, uma estudante de 20 anos do Colorado, atingiu o auge da mídia social com seu TikTok de simetria facial, que tem cerca de 11 milhões de visualizações. Sua escolha para acompanhamento musical? A música tema do Quasimodo de O Corcunda de Notre Dame da Disney. A música já havia sido usada com filtros de simetria antes e Cartier se apegou à tendência. A letra inclui: “Você é deformado/ E você é feio/ E esses são os crimes pelos quais o mundo mostra pouca piedade”. Apesar da mensagem da música, Cartier disse que não se incomodava com a irregularidade que o filtro revelava em seu rosto.

“Enquanto ia crescendo”, ela disse, “sempre brinquei com o fato de que um lado do meu rosto é muito fortemente definido e o outro é um pouco mais suave. Quando experimentei o filtro de simetria, esperava que fosse assim. Eu fiz o vídeo com a intenção de fazer essa brincadeira.”

continua após a publicidade

Ainda assim, quando seu vídeo viralizou, muitos espectadores ficaram chateados, tanto pelo visual quanto pelo áudio, sugerindo que incentivava a zombaria daqueles com desfigurações. “Eles estavam dizendo que esse filtro, toda essa tendência, era muito prejudicial”, ela disse. “Eles diziam: ‘Você está tirando sarro. Imagine pessoas que realmente ficam feias, tipo, isso pode machucá-las.’”

Os jornalistas têm documentado esse fenômeno, abordando os efeitos deletérios para a saúde mental de se ver como os outros nos veem e oferecendo maneiras de lidar com esse novo autoconhecimento. Muitos artigos tratam o assunto como uma espécie de trauma, outro exemplo da insegurança corporal que a internet provoca, que alguns chamam de “dismorfia de filtro”.

Dito isso, a obsessão atual com a simetria pode surgir de algo mais antigo e profundo do que qualquer um desses gatilhos. O fascínio humano pela simetria é um fenômeno antigo, com vastas implicações culturais e biológicas, o que ajuda a explicar as fortes emoções expressas nas mídias sociais.

continua após a publicidade

A beleza sempre convidou à quantificação e à avaliação. Aristóteles acreditava que “as principais formas de beleza são a ordem e a simetria”. Vitruvius, arquiteto do antigo mundo romano, comparou a beleza de um templo simétrico à beleza de uma pessoa simétrica. Leonardo da Vinci criou seu famoso desenho Homem Vitruviano em 1490, representando uma figura humana nua de proporções ideais e simétricas, demonstrando as restrições matemáticas postuladas por Vitruvius, conhecidas como “proporção áurea”.

Alguns cientistas que estudam beleza sustentam há muito tempo que quanto mais simétrico, mais bonito. Foto: Miki Kim/The New York Times

Na natureza

continua após a publicidade

O conceito de simetria nos ajuda a ver conexões entre o design de nossas vidas humanas e todo o resto da criação, uma ligação entre a beleza humana e o intrincado funcionamento da natureza, biologia, matemática, física. Os cientistas descobriram que os animais procuram simetria em potenciais parceiros. Os pássaros precisam de asas simétricas para voar. Pernas simétricas ajudam os seres humanos a andar.

A simetria é fundamental até para a física moderna. Como Mordecai-Mark Mac Low, presidente de astrofísica do Museu Americano de História Natural, explicou em um e-mail: “Mesmo as teorias da relatividade especial e geral de Einstein dependem da simetria, com relação à velocidade relativa ou à própria curvatura do espaço-tempo .”

E assim, parte da obsessão das redes sociais com a simetria pode realmente estar surgindo de um antigo imperativo que antes privilegiava a simetria (e talvez ainda o faça).

Alguns cientistas que estudam a beleza sustentam isso há muito tempo. Em seu livro de 1999, Survival of the Prettiest, a professora de psicologia de Harvard Nancy Etcoff argumenta que, independentemente da cultura ou etnia, todos os seres humanos amam e são atraídos pela beleza. “Quanto mais simetria tem um corpo, mais atraente ele é”, ela disse em uma entrevista. “Encontramos algo de ‘errado’ nas pequenas assimetrias.” Embora os estilos de beleza mudem com o tempo, ela disse, muitas pessoas “querem olhar para algo próximo da perfeição ou sem falhas óbvias”.

É injusto ou errado dissecar a beleza dessa maneira? É antifeminista (considerando que as mulheres tendem a dedicar mais tempo e energia à sua aparência)? Pode ser. Mas para Etcoff, as interpretações culturais não são importantes. “Algumas coisas”, ela disse, são instintivas. “Somos capazes de superar nosso instinto, mas isso faz parte da natureza humana.” O DNA, ela observou, era “o produtor original de simetria”.

Diante disso, não é surpreendente que aqueles que trabalham na cultura da beleza estejam tão interessados em simetria quanto Aristóteles e Vitrúvio sempre estiveram. De acordo com o Dr. Stafford Broumand, cirurgião plástico da cidade de Nova York: “A maioria das pessoas é assimétrica. Existem algumas modelos que têm uma simetria facial incrível e, quando você as vê, é de tirar o fôlego. Por que elas são tão surpreendentemente bonitas? Essa simetria impressionante é parte disso.” (Quais modelos em particular? Broumand hesitou. “Elas podem até ser minhas pacientes.”)

Mas não é desalmado reduzir nossos rostos singulares e preciosos a equações e proporções? E o charme da imperfeição? O sorriso adoravelmente torto de Drew Barrymore? As feições sensuais desproporcionais de Ellen Barkin? A pinta de Cindy Crawford? “Todas as coisas são literalmente melhores, mais belas e mais amadas pelas imperfeições que foram divinamente apontadas”, escreveu o pensador britânico do século 19 John Ruskin em “The Stones of Venice”. Como Etcoff reconheceu, “a estranheza, a raridade, a singularidade de uma pessoa podem ser extremamente atraentes”.

Podemos encontrar corroboração para isso em uma forma de arte que data do Japão do século XV. Os gregos podem ter valorizado a perfeição, mas a antiga tradição japonesa do kintsugi (que significa “juntar com ouro”) buscava ideais bem diferentes. O kintsugi, que cresceu em popularidade no século XVII, é o ofício de reparar cerâmica quebrada preenchendo uma rachadura com laca e depois destacando a “cicatriz” com ouro em pó, platina ou prata.

“O kintsugi é um princípio estético que celebra a ruptura e a imperfeição em vez de escondê-la ou rejeitá-la”, disse Petya Andreeva, professora de história da arte asiática na Parsons School of Design. “É derivado da doutrina budista do wabi-sabi, que enfatiza a impermanência do mundo material, bem como a transitoriedade da experiência humana. A estética wabi-sabi defende acabamentos ásperos ou irregulares e assimetria.”

Contemplar o kintsugi pode não oferecer conforto imediato aos jovens angustiados nas mídias sociais, ou a qualquer um de nós que está cansado de seus próprios rostos em conversas por vídeo. Mas oferece uma perspectiva valiosa, especialmente considerada à luz das filosofias que afirmam que temos necessidades “naturais” ou instintivas de simetria. No fundo, essas não são visões tão divergentes, mas são duas maneiras de olhar para um fenômeno.

Quer você ame e busque simetria (vamos chamar isso de lado vitruviano) ou reverencie e celebre sua ausência (o lado kintsugi), você está buscando algum tipo de harmonia diante da ruptura ou conflito. E buscar dar sentido ao mundo e suas imagens é, de fato, uma nobre busca com uma longa história. /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times

THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - Os espelhos mentem. Eles invertem as coisas. Aquele rosto que você vê no banheiro todas as manhãs, em seu estojo de maquiagem: é “seu oposto” - o inverso do rosto que todo mundo vê. Todos nós sabemos disso, em teoria.

E, no entanto, nos últimos dois anos mais ou menos, esse simples fato fascinou e às vezes incomodou profundamente muitas pessoas (especialmente os jovens) que experimentavam os filtros de simetria facial nas redes sociais. Alguns desses filtros invertem o reflexo do espelho, revelando imagens do rosto como os outros o percebem, enervando muitos usuários ao lançar uma nova luz sobre todas as imperfeições às quais nossos reflexos espelhados familiares nos habituam ou nem deixam que percebamos: a linha irregular do cabelo, a boca torta, os olhos que não estão perfeitamente nivelados.

Tudo isso aparece nitidamente quando ocorre a inversão. Por essas razões, confrontar o rosto “virado” pode parecer um pouco estranho (não muito diferente de ouvir sua própria voz gravada).

Outros filtros surpreendem de maneira diferente, criando simetria, alinhando feições e suavizando irregularidades, ou apresentando imagens aperfeiçoadas mas profundamente desconhecidas por meio de uma espécie de Photoshop em tempo real ou cirurgia plástica virtual.

Filtros de redes sociais reacenderam uma obsessão antiga da humanindade com a beleza.  Foto: Miki Kim/The New York Times

Os filtros tornaram-se muito populares. Com certa frequência, uma nova tendência focada na simetria do rosto parece tomar conta do TikTok, ao som de músicas (como Deja Vu de Olivia Rodrigo) ou filmes. Percorra as páginas e páginas de usuários experimentando esses filtros e você encontrará uma série de reações: algumas pessoas riem do que parece ser um reflexo distorcido como na casa de espelhos de um parque de diversões; outros parecem sentir um verdadeiro choque e desespero com o rosto desconhecido na tela do telefone.

Um efeito de simetria comumente usado, listado no aplicativo como um dos efeitos criativos do TikTok, é “Inverted” (Invertido). De acordo com as contagens de visualizações públicas do TikTok, o efeito invertido foi usado em quase 10 milhões de vídeos. Na página da hashtag para #Inverted, uma descrição pergunta aos usuários: “Are you #Inverted? (Você está invertido?) Use nosso Efeito Criativo e descubra.”

O algoritmo também pode favorecer o uso de filtros de simetria. Seja algorítmico, puro interesse humano ou uma mistura dos dois, os vídeos marcados com #Inverted renderam 23 bilhões de visualizações no aplicativo.

O que impulsiona essa mania neste momento? A estranheza dos tempos de pandemia pode ser parcialmente responsável. Nos últimos dois anos, tivemos muito “tempo virtual” com os rostos e muito pouco tempo normal com as pessoas cara a cara. Em particular, passamos horas olhando para nossos próprios rostos e de outras pessoas, com todos os nossos defeitos, em telas de videoconferência. (O aumento de cirurgias plásticas na era da pandemia foi chamado de “boom do zoom”.) E em público, as máscaras nos privaram da experiência humana saudável de interagir com os rostos ao nosso redor. Isso por si só pode explicar um maior interesse em aplicativos de análise facial.

Mas motivações muito além da pandemia também impulsionam essa tendência. Existe a diversão moderna de viralizar nas mídias sociais; o antigo e eterno fascínio pela beleza e como avaliá-la; a diversão alegre e carnavalesca de brincar com imagens espelhadas; e o desejo profundo de nos vermos como os outros nos veem.

Leslie Lizette Cartier, uma estudante de 20 anos do Colorado, atingiu o auge da mídia social com seu TikTok de simetria facial, que tem cerca de 11 milhões de visualizações. Sua escolha para acompanhamento musical? A música tema do Quasimodo de O Corcunda de Notre Dame da Disney. A música já havia sido usada com filtros de simetria antes e Cartier se apegou à tendência. A letra inclui: “Você é deformado/ E você é feio/ E esses são os crimes pelos quais o mundo mostra pouca piedade”. Apesar da mensagem da música, Cartier disse que não se incomodava com a irregularidade que o filtro revelava em seu rosto.

“Enquanto ia crescendo”, ela disse, “sempre brinquei com o fato de que um lado do meu rosto é muito fortemente definido e o outro é um pouco mais suave. Quando experimentei o filtro de simetria, esperava que fosse assim. Eu fiz o vídeo com a intenção de fazer essa brincadeira.”

Ainda assim, quando seu vídeo viralizou, muitos espectadores ficaram chateados, tanto pelo visual quanto pelo áudio, sugerindo que incentivava a zombaria daqueles com desfigurações. “Eles estavam dizendo que esse filtro, toda essa tendência, era muito prejudicial”, ela disse. “Eles diziam: ‘Você está tirando sarro. Imagine pessoas que realmente ficam feias, tipo, isso pode machucá-las.’”

Os jornalistas têm documentado esse fenômeno, abordando os efeitos deletérios para a saúde mental de se ver como os outros nos veem e oferecendo maneiras de lidar com esse novo autoconhecimento. Muitos artigos tratam o assunto como uma espécie de trauma, outro exemplo da insegurança corporal que a internet provoca, que alguns chamam de “dismorfia de filtro”.

Dito isso, a obsessão atual com a simetria pode surgir de algo mais antigo e profundo do que qualquer um desses gatilhos. O fascínio humano pela simetria é um fenômeno antigo, com vastas implicações culturais e biológicas, o que ajuda a explicar as fortes emoções expressas nas mídias sociais.

A beleza sempre convidou à quantificação e à avaliação. Aristóteles acreditava que “as principais formas de beleza são a ordem e a simetria”. Vitruvius, arquiteto do antigo mundo romano, comparou a beleza de um templo simétrico à beleza de uma pessoa simétrica. Leonardo da Vinci criou seu famoso desenho Homem Vitruviano em 1490, representando uma figura humana nua de proporções ideais e simétricas, demonstrando as restrições matemáticas postuladas por Vitruvius, conhecidas como “proporção áurea”.

Alguns cientistas que estudam beleza sustentam há muito tempo que quanto mais simétrico, mais bonito. Foto: Miki Kim/The New York Times

Na natureza

O conceito de simetria nos ajuda a ver conexões entre o design de nossas vidas humanas e todo o resto da criação, uma ligação entre a beleza humana e o intrincado funcionamento da natureza, biologia, matemática, física. Os cientistas descobriram que os animais procuram simetria em potenciais parceiros. Os pássaros precisam de asas simétricas para voar. Pernas simétricas ajudam os seres humanos a andar.

A simetria é fundamental até para a física moderna. Como Mordecai-Mark Mac Low, presidente de astrofísica do Museu Americano de História Natural, explicou em um e-mail: “Mesmo as teorias da relatividade especial e geral de Einstein dependem da simetria, com relação à velocidade relativa ou à própria curvatura do espaço-tempo .”

E assim, parte da obsessão das redes sociais com a simetria pode realmente estar surgindo de um antigo imperativo que antes privilegiava a simetria (e talvez ainda o faça).

Alguns cientistas que estudam a beleza sustentam isso há muito tempo. Em seu livro de 1999, Survival of the Prettiest, a professora de psicologia de Harvard Nancy Etcoff argumenta que, independentemente da cultura ou etnia, todos os seres humanos amam e são atraídos pela beleza. “Quanto mais simetria tem um corpo, mais atraente ele é”, ela disse em uma entrevista. “Encontramos algo de ‘errado’ nas pequenas assimetrias.” Embora os estilos de beleza mudem com o tempo, ela disse, muitas pessoas “querem olhar para algo próximo da perfeição ou sem falhas óbvias”.

É injusto ou errado dissecar a beleza dessa maneira? É antifeminista (considerando que as mulheres tendem a dedicar mais tempo e energia à sua aparência)? Pode ser. Mas para Etcoff, as interpretações culturais não são importantes. “Algumas coisas”, ela disse, são instintivas. “Somos capazes de superar nosso instinto, mas isso faz parte da natureza humana.” O DNA, ela observou, era “o produtor original de simetria”.

Diante disso, não é surpreendente que aqueles que trabalham na cultura da beleza estejam tão interessados em simetria quanto Aristóteles e Vitrúvio sempre estiveram. De acordo com o Dr. Stafford Broumand, cirurgião plástico da cidade de Nova York: “A maioria das pessoas é assimétrica. Existem algumas modelos que têm uma simetria facial incrível e, quando você as vê, é de tirar o fôlego. Por que elas são tão surpreendentemente bonitas? Essa simetria impressionante é parte disso.” (Quais modelos em particular? Broumand hesitou. “Elas podem até ser minhas pacientes.”)

Mas não é desalmado reduzir nossos rostos singulares e preciosos a equações e proporções? E o charme da imperfeição? O sorriso adoravelmente torto de Drew Barrymore? As feições sensuais desproporcionais de Ellen Barkin? A pinta de Cindy Crawford? “Todas as coisas são literalmente melhores, mais belas e mais amadas pelas imperfeições que foram divinamente apontadas”, escreveu o pensador britânico do século 19 John Ruskin em “The Stones of Venice”. Como Etcoff reconheceu, “a estranheza, a raridade, a singularidade de uma pessoa podem ser extremamente atraentes”.

Podemos encontrar corroboração para isso em uma forma de arte que data do Japão do século XV. Os gregos podem ter valorizado a perfeição, mas a antiga tradição japonesa do kintsugi (que significa “juntar com ouro”) buscava ideais bem diferentes. O kintsugi, que cresceu em popularidade no século XVII, é o ofício de reparar cerâmica quebrada preenchendo uma rachadura com laca e depois destacando a “cicatriz” com ouro em pó, platina ou prata.

“O kintsugi é um princípio estético que celebra a ruptura e a imperfeição em vez de escondê-la ou rejeitá-la”, disse Petya Andreeva, professora de história da arte asiática na Parsons School of Design. “É derivado da doutrina budista do wabi-sabi, que enfatiza a impermanência do mundo material, bem como a transitoriedade da experiência humana. A estética wabi-sabi defende acabamentos ásperos ou irregulares e assimetria.”

Contemplar o kintsugi pode não oferecer conforto imediato aos jovens angustiados nas mídias sociais, ou a qualquer um de nós que está cansado de seus próprios rostos em conversas por vídeo. Mas oferece uma perspectiva valiosa, especialmente considerada à luz das filosofias que afirmam que temos necessidades “naturais” ou instintivas de simetria. No fundo, essas não são visões tão divergentes, mas são duas maneiras de olhar para um fenômeno.

Quer você ame e busque simetria (vamos chamar isso de lado vitruviano) ou reverencie e celebre sua ausência (o lado kintsugi), você está buscando algum tipo de harmonia diante da ruptura ou conflito. E buscar dar sentido ao mundo e suas imagens é, de fato, uma nobre busca com uma longa história. /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times

THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - Os espelhos mentem. Eles invertem as coisas. Aquele rosto que você vê no banheiro todas as manhãs, em seu estojo de maquiagem: é “seu oposto” - o inverso do rosto que todo mundo vê. Todos nós sabemos disso, em teoria.

E, no entanto, nos últimos dois anos mais ou menos, esse simples fato fascinou e às vezes incomodou profundamente muitas pessoas (especialmente os jovens) que experimentavam os filtros de simetria facial nas redes sociais. Alguns desses filtros invertem o reflexo do espelho, revelando imagens do rosto como os outros o percebem, enervando muitos usuários ao lançar uma nova luz sobre todas as imperfeições às quais nossos reflexos espelhados familiares nos habituam ou nem deixam que percebamos: a linha irregular do cabelo, a boca torta, os olhos que não estão perfeitamente nivelados.

Tudo isso aparece nitidamente quando ocorre a inversão. Por essas razões, confrontar o rosto “virado” pode parecer um pouco estranho (não muito diferente de ouvir sua própria voz gravada).

Outros filtros surpreendem de maneira diferente, criando simetria, alinhando feições e suavizando irregularidades, ou apresentando imagens aperfeiçoadas mas profundamente desconhecidas por meio de uma espécie de Photoshop em tempo real ou cirurgia plástica virtual.

Filtros de redes sociais reacenderam uma obsessão antiga da humanindade com a beleza.  Foto: Miki Kim/The New York Times

Os filtros tornaram-se muito populares. Com certa frequência, uma nova tendência focada na simetria do rosto parece tomar conta do TikTok, ao som de músicas (como Deja Vu de Olivia Rodrigo) ou filmes. Percorra as páginas e páginas de usuários experimentando esses filtros e você encontrará uma série de reações: algumas pessoas riem do que parece ser um reflexo distorcido como na casa de espelhos de um parque de diversões; outros parecem sentir um verdadeiro choque e desespero com o rosto desconhecido na tela do telefone.

Um efeito de simetria comumente usado, listado no aplicativo como um dos efeitos criativos do TikTok, é “Inverted” (Invertido). De acordo com as contagens de visualizações públicas do TikTok, o efeito invertido foi usado em quase 10 milhões de vídeos. Na página da hashtag para #Inverted, uma descrição pergunta aos usuários: “Are you #Inverted? (Você está invertido?) Use nosso Efeito Criativo e descubra.”

O algoritmo também pode favorecer o uso de filtros de simetria. Seja algorítmico, puro interesse humano ou uma mistura dos dois, os vídeos marcados com #Inverted renderam 23 bilhões de visualizações no aplicativo.

O que impulsiona essa mania neste momento? A estranheza dos tempos de pandemia pode ser parcialmente responsável. Nos últimos dois anos, tivemos muito “tempo virtual” com os rostos e muito pouco tempo normal com as pessoas cara a cara. Em particular, passamos horas olhando para nossos próprios rostos e de outras pessoas, com todos os nossos defeitos, em telas de videoconferência. (O aumento de cirurgias plásticas na era da pandemia foi chamado de “boom do zoom”.) E em público, as máscaras nos privaram da experiência humana saudável de interagir com os rostos ao nosso redor. Isso por si só pode explicar um maior interesse em aplicativos de análise facial.

Mas motivações muito além da pandemia também impulsionam essa tendência. Existe a diversão moderna de viralizar nas mídias sociais; o antigo e eterno fascínio pela beleza e como avaliá-la; a diversão alegre e carnavalesca de brincar com imagens espelhadas; e o desejo profundo de nos vermos como os outros nos veem.

Leslie Lizette Cartier, uma estudante de 20 anos do Colorado, atingiu o auge da mídia social com seu TikTok de simetria facial, que tem cerca de 11 milhões de visualizações. Sua escolha para acompanhamento musical? A música tema do Quasimodo de O Corcunda de Notre Dame da Disney. A música já havia sido usada com filtros de simetria antes e Cartier se apegou à tendência. A letra inclui: “Você é deformado/ E você é feio/ E esses são os crimes pelos quais o mundo mostra pouca piedade”. Apesar da mensagem da música, Cartier disse que não se incomodava com a irregularidade que o filtro revelava em seu rosto.

“Enquanto ia crescendo”, ela disse, “sempre brinquei com o fato de que um lado do meu rosto é muito fortemente definido e o outro é um pouco mais suave. Quando experimentei o filtro de simetria, esperava que fosse assim. Eu fiz o vídeo com a intenção de fazer essa brincadeira.”

Ainda assim, quando seu vídeo viralizou, muitos espectadores ficaram chateados, tanto pelo visual quanto pelo áudio, sugerindo que incentivava a zombaria daqueles com desfigurações. “Eles estavam dizendo que esse filtro, toda essa tendência, era muito prejudicial”, ela disse. “Eles diziam: ‘Você está tirando sarro. Imagine pessoas que realmente ficam feias, tipo, isso pode machucá-las.’”

Os jornalistas têm documentado esse fenômeno, abordando os efeitos deletérios para a saúde mental de se ver como os outros nos veem e oferecendo maneiras de lidar com esse novo autoconhecimento. Muitos artigos tratam o assunto como uma espécie de trauma, outro exemplo da insegurança corporal que a internet provoca, que alguns chamam de “dismorfia de filtro”.

Dito isso, a obsessão atual com a simetria pode surgir de algo mais antigo e profundo do que qualquer um desses gatilhos. O fascínio humano pela simetria é um fenômeno antigo, com vastas implicações culturais e biológicas, o que ajuda a explicar as fortes emoções expressas nas mídias sociais.

A beleza sempre convidou à quantificação e à avaliação. Aristóteles acreditava que “as principais formas de beleza são a ordem e a simetria”. Vitruvius, arquiteto do antigo mundo romano, comparou a beleza de um templo simétrico à beleza de uma pessoa simétrica. Leonardo da Vinci criou seu famoso desenho Homem Vitruviano em 1490, representando uma figura humana nua de proporções ideais e simétricas, demonstrando as restrições matemáticas postuladas por Vitruvius, conhecidas como “proporção áurea”.

Alguns cientistas que estudam beleza sustentam há muito tempo que quanto mais simétrico, mais bonito. Foto: Miki Kim/The New York Times

Na natureza

O conceito de simetria nos ajuda a ver conexões entre o design de nossas vidas humanas e todo o resto da criação, uma ligação entre a beleza humana e o intrincado funcionamento da natureza, biologia, matemática, física. Os cientistas descobriram que os animais procuram simetria em potenciais parceiros. Os pássaros precisam de asas simétricas para voar. Pernas simétricas ajudam os seres humanos a andar.

A simetria é fundamental até para a física moderna. Como Mordecai-Mark Mac Low, presidente de astrofísica do Museu Americano de História Natural, explicou em um e-mail: “Mesmo as teorias da relatividade especial e geral de Einstein dependem da simetria, com relação à velocidade relativa ou à própria curvatura do espaço-tempo .”

E assim, parte da obsessão das redes sociais com a simetria pode realmente estar surgindo de um antigo imperativo que antes privilegiava a simetria (e talvez ainda o faça).

Alguns cientistas que estudam a beleza sustentam isso há muito tempo. Em seu livro de 1999, Survival of the Prettiest, a professora de psicologia de Harvard Nancy Etcoff argumenta que, independentemente da cultura ou etnia, todos os seres humanos amam e são atraídos pela beleza. “Quanto mais simetria tem um corpo, mais atraente ele é”, ela disse em uma entrevista. “Encontramos algo de ‘errado’ nas pequenas assimetrias.” Embora os estilos de beleza mudem com o tempo, ela disse, muitas pessoas “querem olhar para algo próximo da perfeição ou sem falhas óbvias”.

É injusto ou errado dissecar a beleza dessa maneira? É antifeminista (considerando que as mulheres tendem a dedicar mais tempo e energia à sua aparência)? Pode ser. Mas para Etcoff, as interpretações culturais não são importantes. “Algumas coisas”, ela disse, são instintivas. “Somos capazes de superar nosso instinto, mas isso faz parte da natureza humana.” O DNA, ela observou, era “o produtor original de simetria”.

Diante disso, não é surpreendente que aqueles que trabalham na cultura da beleza estejam tão interessados em simetria quanto Aristóteles e Vitrúvio sempre estiveram. De acordo com o Dr. Stafford Broumand, cirurgião plástico da cidade de Nova York: “A maioria das pessoas é assimétrica. Existem algumas modelos que têm uma simetria facial incrível e, quando você as vê, é de tirar o fôlego. Por que elas são tão surpreendentemente bonitas? Essa simetria impressionante é parte disso.” (Quais modelos em particular? Broumand hesitou. “Elas podem até ser minhas pacientes.”)

Mas não é desalmado reduzir nossos rostos singulares e preciosos a equações e proporções? E o charme da imperfeição? O sorriso adoravelmente torto de Drew Barrymore? As feições sensuais desproporcionais de Ellen Barkin? A pinta de Cindy Crawford? “Todas as coisas são literalmente melhores, mais belas e mais amadas pelas imperfeições que foram divinamente apontadas”, escreveu o pensador britânico do século 19 John Ruskin em “The Stones of Venice”. Como Etcoff reconheceu, “a estranheza, a raridade, a singularidade de uma pessoa podem ser extremamente atraentes”.

Podemos encontrar corroboração para isso em uma forma de arte que data do Japão do século XV. Os gregos podem ter valorizado a perfeição, mas a antiga tradição japonesa do kintsugi (que significa “juntar com ouro”) buscava ideais bem diferentes. O kintsugi, que cresceu em popularidade no século XVII, é o ofício de reparar cerâmica quebrada preenchendo uma rachadura com laca e depois destacando a “cicatriz” com ouro em pó, platina ou prata.

“O kintsugi é um princípio estético que celebra a ruptura e a imperfeição em vez de escondê-la ou rejeitá-la”, disse Petya Andreeva, professora de história da arte asiática na Parsons School of Design. “É derivado da doutrina budista do wabi-sabi, que enfatiza a impermanência do mundo material, bem como a transitoriedade da experiência humana. A estética wabi-sabi defende acabamentos ásperos ou irregulares e assimetria.”

Contemplar o kintsugi pode não oferecer conforto imediato aos jovens angustiados nas mídias sociais, ou a qualquer um de nós que está cansado de seus próprios rostos em conversas por vídeo. Mas oferece uma perspectiva valiosa, especialmente considerada à luz das filosofias que afirmam que temos necessidades “naturais” ou instintivas de simetria. No fundo, essas não são visões tão divergentes, mas são duas maneiras de olhar para um fenômeno.

Quer você ame e busque simetria (vamos chamar isso de lado vitruviano) ou reverencie e celebre sua ausência (o lado kintsugi), você está buscando algum tipo de harmonia diante da ruptura ou conflito. E buscar dar sentido ao mundo e suas imagens é, de fato, uma nobre busca com uma longa história. /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times

THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - Os espelhos mentem. Eles invertem as coisas. Aquele rosto que você vê no banheiro todas as manhãs, em seu estojo de maquiagem: é “seu oposto” - o inverso do rosto que todo mundo vê. Todos nós sabemos disso, em teoria.

E, no entanto, nos últimos dois anos mais ou menos, esse simples fato fascinou e às vezes incomodou profundamente muitas pessoas (especialmente os jovens) que experimentavam os filtros de simetria facial nas redes sociais. Alguns desses filtros invertem o reflexo do espelho, revelando imagens do rosto como os outros o percebem, enervando muitos usuários ao lançar uma nova luz sobre todas as imperfeições às quais nossos reflexos espelhados familiares nos habituam ou nem deixam que percebamos: a linha irregular do cabelo, a boca torta, os olhos que não estão perfeitamente nivelados.

Tudo isso aparece nitidamente quando ocorre a inversão. Por essas razões, confrontar o rosto “virado” pode parecer um pouco estranho (não muito diferente de ouvir sua própria voz gravada).

Outros filtros surpreendem de maneira diferente, criando simetria, alinhando feições e suavizando irregularidades, ou apresentando imagens aperfeiçoadas mas profundamente desconhecidas por meio de uma espécie de Photoshop em tempo real ou cirurgia plástica virtual.

Filtros de redes sociais reacenderam uma obsessão antiga da humanindade com a beleza.  Foto: Miki Kim/The New York Times

Os filtros tornaram-se muito populares. Com certa frequência, uma nova tendência focada na simetria do rosto parece tomar conta do TikTok, ao som de músicas (como Deja Vu de Olivia Rodrigo) ou filmes. Percorra as páginas e páginas de usuários experimentando esses filtros e você encontrará uma série de reações: algumas pessoas riem do que parece ser um reflexo distorcido como na casa de espelhos de um parque de diversões; outros parecem sentir um verdadeiro choque e desespero com o rosto desconhecido na tela do telefone.

Um efeito de simetria comumente usado, listado no aplicativo como um dos efeitos criativos do TikTok, é “Inverted” (Invertido). De acordo com as contagens de visualizações públicas do TikTok, o efeito invertido foi usado em quase 10 milhões de vídeos. Na página da hashtag para #Inverted, uma descrição pergunta aos usuários: “Are you #Inverted? (Você está invertido?) Use nosso Efeito Criativo e descubra.”

O algoritmo também pode favorecer o uso de filtros de simetria. Seja algorítmico, puro interesse humano ou uma mistura dos dois, os vídeos marcados com #Inverted renderam 23 bilhões de visualizações no aplicativo.

O que impulsiona essa mania neste momento? A estranheza dos tempos de pandemia pode ser parcialmente responsável. Nos últimos dois anos, tivemos muito “tempo virtual” com os rostos e muito pouco tempo normal com as pessoas cara a cara. Em particular, passamos horas olhando para nossos próprios rostos e de outras pessoas, com todos os nossos defeitos, em telas de videoconferência. (O aumento de cirurgias plásticas na era da pandemia foi chamado de “boom do zoom”.) E em público, as máscaras nos privaram da experiência humana saudável de interagir com os rostos ao nosso redor. Isso por si só pode explicar um maior interesse em aplicativos de análise facial.

Mas motivações muito além da pandemia também impulsionam essa tendência. Existe a diversão moderna de viralizar nas mídias sociais; o antigo e eterno fascínio pela beleza e como avaliá-la; a diversão alegre e carnavalesca de brincar com imagens espelhadas; e o desejo profundo de nos vermos como os outros nos veem.

Leslie Lizette Cartier, uma estudante de 20 anos do Colorado, atingiu o auge da mídia social com seu TikTok de simetria facial, que tem cerca de 11 milhões de visualizações. Sua escolha para acompanhamento musical? A música tema do Quasimodo de O Corcunda de Notre Dame da Disney. A música já havia sido usada com filtros de simetria antes e Cartier se apegou à tendência. A letra inclui: “Você é deformado/ E você é feio/ E esses são os crimes pelos quais o mundo mostra pouca piedade”. Apesar da mensagem da música, Cartier disse que não se incomodava com a irregularidade que o filtro revelava em seu rosto.

“Enquanto ia crescendo”, ela disse, “sempre brinquei com o fato de que um lado do meu rosto é muito fortemente definido e o outro é um pouco mais suave. Quando experimentei o filtro de simetria, esperava que fosse assim. Eu fiz o vídeo com a intenção de fazer essa brincadeira.”

Ainda assim, quando seu vídeo viralizou, muitos espectadores ficaram chateados, tanto pelo visual quanto pelo áudio, sugerindo que incentivava a zombaria daqueles com desfigurações. “Eles estavam dizendo que esse filtro, toda essa tendência, era muito prejudicial”, ela disse. “Eles diziam: ‘Você está tirando sarro. Imagine pessoas que realmente ficam feias, tipo, isso pode machucá-las.’”

Os jornalistas têm documentado esse fenômeno, abordando os efeitos deletérios para a saúde mental de se ver como os outros nos veem e oferecendo maneiras de lidar com esse novo autoconhecimento. Muitos artigos tratam o assunto como uma espécie de trauma, outro exemplo da insegurança corporal que a internet provoca, que alguns chamam de “dismorfia de filtro”.

Dito isso, a obsessão atual com a simetria pode surgir de algo mais antigo e profundo do que qualquer um desses gatilhos. O fascínio humano pela simetria é um fenômeno antigo, com vastas implicações culturais e biológicas, o que ajuda a explicar as fortes emoções expressas nas mídias sociais.

A beleza sempre convidou à quantificação e à avaliação. Aristóteles acreditava que “as principais formas de beleza são a ordem e a simetria”. Vitruvius, arquiteto do antigo mundo romano, comparou a beleza de um templo simétrico à beleza de uma pessoa simétrica. Leonardo da Vinci criou seu famoso desenho Homem Vitruviano em 1490, representando uma figura humana nua de proporções ideais e simétricas, demonstrando as restrições matemáticas postuladas por Vitruvius, conhecidas como “proporção áurea”.

Alguns cientistas que estudam beleza sustentam há muito tempo que quanto mais simétrico, mais bonito. Foto: Miki Kim/The New York Times

Na natureza

O conceito de simetria nos ajuda a ver conexões entre o design de nossas vidas humanas e todo o resto da criação, uma ligação entre a beleza humana e o intrincado funcionamento da natureza, biologia, matemática, física. Os cientistas descobriram que os animais procuram simetria em potenciais parceiros. Os pássaros precisam de asas simétricas para voar. Pernas simétricas ajudam os seres humanos a andar.

A simetria é fundamental até para a física moderna. Como Mordecai-Mark Mac Low, presidente de astrofísica do Museu Americano de História Natural, explicou em um e-mail: “Mesmo as teorias da relatividade especial e geral de Einstein dependem da simetria, com relação à velocidade relativa ou à própria curvatura do espaço-tempo .”

E assim, parte da obsessão das redes sociais com a simetria pode realmente estar surgindo de um antigo imperativo que antes privilegiava a simetria (e talvez ainda o faça).

Alguns cientistas que estudam a beleza sustentam isso há muito tempo. Em seu livro de 1999, Survival of the Prettiest, a professora de psicologia de Harvard Nancy Etcoff argumenta que, independentemente da cultura ou etnia, todos os seres humanos amam e são atraídos pela beleza. “Quanto mais simetria tem um corpo, mais atraente ele é”, ela disse em uma entrevista. “Encontramos algo de ‘errado’ nas pequenas assimetrias.” Embora os estilos de beleza mudem com o tempo, ela disse, muitas pessoas “querem olhar para algo próximo da perfeição ou sem falhas óbvias”.

É injusto ou errado dissecar a beleza dessa maneira? É antifeminista (considerando que as mulheres tendem a dedicar mais tempo e energia à sua aparência)? Pode ser. Mas para Etcoff, as interpretações culturais não são importantes. “Algumas coisas”, ela disse, são instintivas. “Somos capazes de superar nosso instinto, mas isso faz parte da natureza humana.” O DNA, ela observou, era “o produtor original de simetria”.

Diante disso, não é surpreendente que aqueles que trabalham na cultura da beleza estejam tão interessados em simetria quanto Aristóteles e Vitrúvio sempre estiveram. De acordo com o Dr. Stafford Broumand, cirurgião plástico da cidade de Nova York: “A maioria das pessoas é assimétrica. Existem algumas modelos que têm uma simetria facial incrível e, quando você as vê, é de tirar o fôlego. Por que elas são tão surpreendentemente bonitas? Essa simetria impressionante é parte disso.” (Quais modelos em particular? Broumand hesitou. “Elas podem até ser minhas pacientes.”)

Mas não é desalmado reduzir nossos rostos singulares e preciosos a equações e proporções? E o charme da imperfeição? O sorriso adoravelmente torto de Drew Barrymore? As feições sensuais desproporcionais de Ellen Barkin? A pinta de Cindy Crawford? “Todas as coisas são literalmente melhores, mais belas e mais amadas pelas imperfeições que foram divinamente apontadas”, escreveu o pensador britânico do século 19 John Ruskin em “The Stones of Venice”. Como Etcoff reconheceu, “a estranheza, a raridade, a singularidade de uma pessoa podem ser extremamente atraentes”.

Podemos encontrar corroboração para isso em uma forma de arte que data do Japão do século XV. Os gregos podem ter valorizado a perfeição, mas a antiga tradição japonesa do kintsugi (que significa “juntar com ouro”) buscava ideais bem diferentes. O kintsugi, que cresceu em popularidade no século XVII, é o ofício de reparar cerâmica quebrada preenchendo uma rachadura com laca e depois destacando a “cicatriz” com ouro em pó, platina ou prata.

“O kintsugi é um princípio estético que celebra a ruptura e a imperfeição em vez de escondê-la ou rejeitá-la”, disse Petya Andreeva, professora de história da arte asiática na Parsons School of Design. “É derivado da doutrina budista do wabi-sabi, que enfatiza a impermanência do mundo material, bem como a transitoriedade da experiência humana. A estética wabi-sabi defende acabamentos ásperos ou irregulares e assimetria.”

Contemplar o kintsugi pode não oferecer conforto imediato aos jovens angustiados nas mídias sociais, ou a qualquer um de nós que está cansado de seus próprios rostos em conversas por vídeo. Mas oferece uma perspectiva valiosa, especialmente considerada à luz das filosofias que afirmam que temos necessidades “naturais” ou instintivas de simetria. No fundo, essas não são visões tão divergentes, mas são duas maneiras de olhar para um fenômeno.

Quer você ame e busque simetria (vamos chamar isso de lado vitruviano) ou reverencie e celebre sua ausência (o lado kintsugi), você está buscando algum tipo de harmonia diante da ruptura ou conflito. E buscar dar sentido ao mundo e suas imagens é, de fato, uma nobre busca com uma longa história. /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times

Atualizamos nossa política de cookies

Ao utilizar nossos serviços, você aceita a política de monitoramento de cookies.