Um guia de uma economista ‘eletrizante’ para a recuperação econômica


Mariana Mazzucato, professora que tem toda a atenção de líderes e executivos mundiais, imagina um mundo pós-pandêmico que redefine o que deve ser valorizado

Por Alisha Haridasani Gupta

Ao longo dos anos, Mariana Mazzucato, economista e professora da University College London, conquistou um tipo de celebridade incomum para os acadêmicos. Em fevereiro, a revista GQ britânica a apontou como uma das 50 pessoas mais influentes da Grã-Bretanha, ao lado de David Beckham e Phoebe Waller-Bridge. O Financial Times caracterizou uma de suas palestras como “eletrizante”.

Ela tem toda a atenção de políticos e executivos de todo o mundo – desde a deputada democrata Alexandria Ocasio-Cortez nos Estados Unidos e o presidente Cyril Ramaphosa na África do Sul até o fundador da Microsoft, Bill Gates, e o Papa Francisco – que a procuram para ouvir conselhos ou se baseiam em seu trabalho para ter ideias.

Mariana Mazzucato, economista e professora da University College London. Foto: sabella de Maddalena/The New York Times
continua após a publicidade

À primeira vista, sua missão é reimaginar o capitalismo e impulsionar o setor público apoiado pelo Estado. Mas seu trabalho ressoou tanto entre os pensadores esquerdistas quanto nos círculos fiscalmente conservadores do mercado livre, onde até o mais leve sopro de socialismo costuma disparar alarmes. O Financial Times, por exemplo, feroz defensor do livre mercado, observou que o argumento apresentado em um dos livros de Mazzucato, O Estado Empreendedor: Desmascarando o mito do setor público vs. setor privado, está “basicamente correto”.

Os princípios fundamentais da obra de sua vida, que ela expõe em vários livros, são: (1) as maneiras com as quais atualmente definimos o crescimento econômico são muito estreitas; e (2) muitas das maiores conquistas do mundo – o pouso na Lua ou a invenção da internet, por exemplo – provêm de investimentos do governo, não do setor privado, como muitas vezes de supõe.

“Na verdade, toda tecnologia que faz do iPhone um aparelho tão inteligente vem de pesquisas básicas e aplicadas que foram financiadas pelo Estado”, ela escreve em O Estado empreendedor.

continua após a publicidade

Ela não pretende sugerir que Steve Jobs não tenha sido fundamental para o sucesso da Apple, mas “ignorar o lado ‘público’ dessa história impedirá que venham a nascer futuras Apples”. Este mês, quase um ano após o início de uma pandemia que deixou bem claras as muitas fraquezas da economia global, ela foi nomeada presidente de um novo conselho da Organização Mundial da Saúde que põe a saúde pública no centro de como devemos pensar sobre a criação de valor e o crescimento econômico.

Conversamos com Mazzucato por e-mail para explorar como os líderes globais podem redefinir o valor daqui para frente e falar sobre as mulheres esquecidas por trás de muitas das maiores inovações do mundo. A conversa foi editada por motivos de extensão e clareza.

A pandemia deixou claro o quanto a economia depende do trabalho não remunerado – realizado sobretudo pelas mulheres – e dos empregos subvalorizados em setores dominados por mulheres. Como os governos podem começar a valorizar esses empregos e integrá-los a políticas de crescimento econômico mais amplas?

continua após a publicidade

A covid-19 intensificou muito nosso foco sobre o que tem valor em uma economia – no que podemos botar preço e o que podemos trocar com quê. Acontece que as áreas que consideramos de “alto valor” – finanças e imóveis, por exemplo – não são os componentes da sociedade que consideramos “fundamentais”.

A covid-19 trouxe definições governamentais sobre o que é trabalho “chave” ou “essencial”: nossos cidadãos mais valiosos e insubstituíveis são aqueles que trabalham com saúde e assistência social, educação, transporte público, supermercados e serviços de entrega. Esses empregos são desproporcionalmente ocupados por mulheres, bem como por pessoas não brancas, na Europa, no Reino Unido e nos Estados Unidos. O sofrimento não é mais inevitável para esses grupos do que para outros: trata-se de uma escolha política, como qualquer outra.

É um disparate pensar que o trabalho não remunerado dentro das famílias poderia ser calculado nas medições do PIB? Como isso funcionaria de fato?

continua após a publicidade

Bom, em primeiro lugar, não precisamos tentar adaptar e ajustar tudo para caber no PIB. Como medida, o PIB é inerentemente falacioso, já que, dentro dele, o valor econômico é determinado apenas com base nas transações de mercado – contabilizamos apenas bens e serviços vendidos nos mercados. O PIB é usado para justificar desigualdades excessivas de renda e riqueza, ao mesmo tempo que tenta transformar a extração de valor em criação de valor.

Por causa da covid, agora estamos muito mais conscientes do valor dos serviços formais e informais de cuidado infantil. A covid obrigou as mulheres a abandonar o mercado de trabalho a taxas muito mais elevadas do que os homens, porque as mulheres sempre são responsabilizadas pelas atividades domésticas e familiares. Trabalho doméstico, limpeza, cuidado e criação das crianças têm tremendos efeitos colaterais, mas não fizemos um bom trabalho no mapeamento, na articulação e na valorização dessas atividades.

Dada a crescente desigualdade econômica em todo o mundo, é justo presumir que o capitalismo seja fundamentalmente incompatível com o feminismo?

continua após a publicidade

O capitalismo de hoje é incompatível com o feminismo. As empresas privadas são direcionadas pelos mandatos dos acionistas, que não se alinham inerentemente com as prioridades feministas e interseccionais. E são essas empresas que as pessoas veem como as mais inovadoras e as mais valiosas.

Mas a história nos diz que a inovação é resultado de um grande esforço coletivo – não apenas de um pequeno grupo de jovens brancos da Califórnia. Se queremos resolver os maiores problemas do mundo, precisamos compreender e desafiar essa noção.

No ano passado, a declaração de um grupo de quase 200 executivos-chefes das maiores empresas do mundo pôs o foco no investimento em funcionários e clientes, não apenas nos acionistas. Essa ousadia é suficiente?

continua após a publicidade

Costumo dizer que está na hora de as empresas pararem de falar e começarem a fazer. No ano passado, o mantra em Davos era “participação do stakeholder, não capitalismo de acionista” – o que aconteceu com esse senso de solidariedade durante a crise da covid? As maiores empresas do mundo ficaram maiores – principalmente no setor de tecnologia, que se vê como o farol da inovação, mas não honra seu pacto social com a sociedade em que está inserida, por exemplo, pagando salários justos, tratando os trabalhadores com justiça ou declarando impostos.

Claro, as empresas poderiam fazer mais. Mas os mercados raramente encontram essa direção por conta própria.

Em um artigo recente para a revista Time, você imaginou o mundo em 2023. Conte-nos um pouco mais sobre ele.

Imagino um 2023 em que não apenas derrotamos a covid, mas também usamos o processo de recuperação como um ponto de inflexão rumo a um novo mundo que seja mais verde, mais inclusivo e mais sustentável, alimentado por um crescimento econômico inteligente, liderado pela inovação.

Isso começa com movimentos públicos que forcem os resgates governamentais a se condicionarem à manutenção da folha de pagamento, à garantia do salário mínimo, à suspensão da recompra de ações e à garantia da representação dos trabalhadores nos conselhos – alinhando as metas da empresa às metas dos trabalhadores.

Esse sonho se estende à assistência médica, que é notoriamente injusta. Na minha visão, condições ousadas se colocaram na governança da propriedade intelectual, nos preços e na fabricação de tratamentos e vacinas contra a covid-19 para garantir que as terapias sejam baratas e universalmente acessíveis. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times

Ao longo dos anos, Mariana Mazzucato, economista e professora da University College London, conquistou um tipo de celebridade incomum para os acadêmicos. Em fevereiro, a revista GQ britânica a apontou como uma das 50 pessoas mais influentes da Grã-Bretanha, ao lado de David Beckham e Phoebe Waller-Bridge. O Financial Times caracterizou uma de suas palestras como “eletrizante”.

Ela tem toda a atenção de políticos e executivos de todo o mundo – desde a deputada democrata Alexandria Ocasio-Cortez nos Estados Unidos e o presidente Cyril Ramaphosa na África do Sul até o fundador da Microsoft, Bill Gates, e o Papa Francisco – que a procuram para ouvir conselhos ou se baseiam em seu trabalho para ter ideias.

Mariana Mazzucato, economista e professora da University College London. Foto: sabella de Maddalena/The New York Times

À primeira vista, sua missão é reimaginar o capitalismo e impulsionar o setor público apoiado pelo Estado. Mas seu trabalho ressoou tanto entre os pensadores esquerdistas quanto nos círculos fiscalmente conservadores do mercado livre, onde até o mais leve sopro de socialismo costuma disparar alarmes. O Financial Times, por exemplo, feroz defensor do livre mercado, observou que o argumento apresentado em um dos livros de Mazzucato, O Estado Empreendedor: Desmascarando o mito do setor público vs. setor privado, está “basicamente correto”.

Os princípios fundamentais da obra de sua vida, que ela expõe em vários livros, são: (1) as maneiras com as quais atualmente definimos o crescimento econômico são muito estreitas; e (2) muitas das maiores conquistas do mundo – o pouso na Lua ou a invenção da internet, por exemplo – provêm de investimentos do governo, não do setor privado, como muitas vezes de supõe.

“Na verdade, toda tecnologia que faz do iPhone um aparelho tão inteligente vem de pesquisas básicas e aplicadas que foram financiadas pelo Estado”, ela escreve em O Estado empreendedor.

Ela não pretende sugerir que Steve Jobs não tenha sido fundamental para o sucesso da Apple, mas “ignorar o lado ‘público’ dessa história impedirá que venham a nascer futuras Apples”. Este mês, quase um ano após o início de uma pandemia que deixou bem claras as muitas fraquezas da economia global, ela foi nomeada presidente de um novo conselho da Organização Mundial da Saúde que põe a saúde pública no centro de como devemos pensar sobre a criação de valor e o crescimento econômico.

Conversamos com Mazzucato por e-mail para explorar como os líderes globais podem redefinir o valor daqui para frente e falar sobre as mulheres esquecidas por trás de muitas das maiores inovações do mundo. A conversa foi editada por motivos de extensão e clareza.

A pandemia deixou claro o quanto a economia depende do trabalho não remunerado – realizado sobretudo pelas mulheres – e dos empregos subvalorizados em setores dominados por mulheres. Como os governos podem começar a valorizar esses empregos e integrá-los a políticas de crescimento econômico mais amplas?

A covid-19 intensificou muito nosso foco sobre o que tem valor em uma economia – no que podemos botar preço e o que podemos trocar com quê. Acontece que as áreas que consideramos de “alto valor” – finanças e imóveis, por exemplo – não são os componentes da sociedade que consideramos “fundamentais”.

A covid-19 trouxe definições governamentais sobre o que é trabalho “chave” ou “essencial”: nossos cidadãos mais valiosos e insubstituíveis são aqueles que trabalham com saúde e assistência social, educação, transporte público, supermercados e serviços de entrega. Esses empregos são desproporcionalmente ocupados por mulheres, bem como por pessoas não brancas, na Europa, no Reino Unido e nos Estados Unidos. O sofrimento não é mais inevitável para esses grupos do que para outros: trata-se de uma escolha política, como qualquer outra.

É um disparate pensar que o trabalho não remunerado dentro das famílias poderia ser calculado nas medições do PIB? Como isso funcionaria de fato?

Bom, em primeiro lugar, não precisamos tentar adaptar e ajustar tudo para caber no PIB. Como medida, o PIB é inerentemente falacioso, já que, dentro dele, o valor econômico é determinado apenas com base nas transações de mercado – contabilizamos apenas bens e serviços vendidos nos mercados. O PIB é usado para justificar desigualdades excessivas de renda e riqueza, ao mesmo tempo que tenta transformar a extração de valor em criação de valor.

Por causa da covid, agora estamos muito mais conscientes do valor dos serviços formais e informais de cuidado infantil. A covid obrigou as mulheres a abandonar o mercado de trabalho a taxas muito mais elevadas do que os homens, porque as mulheres sempre são responsabilizadas pelas atividades domésticas e familiares. Trabalho doméstico, limpeza, cuidado e criação das crianças têm tremendos efeitos colaterais, mas não fizemos um bom trabalho no mapeamento, na articulação e na valorização dessas atividades.

Dada a crescente desigualdade econômica em todo o mundo, é justo presumir que o capitalismo seja fundamentalmente incompatível com o feminismo?

O capitalismo de hoje é incompatível com o feminismo. As empresas privadas são direcionadas pelos mandatos dos acionistas, que não se alinham inerentemente com as prioridades feministas e interseccionais. E são essas empresas que as pessoas veem como as mais inovadoras e as mais valiosas.

Mas a história nos diz que a inovação é resultado de um grande esforço coletivo – não apenas de um pequeno grupo de jovens brancos da Califórnia. Se queremos resolver os maiores problemas do mundo, precisamos compreender e desafiar essa noção.

No ano passado, a declaração de um grupo de quase 200 executivos-chefes das maiores empresas do mundo pôs o foco no investimento em funcionários e clientes, não apenas nos acionistas. Essa ousadia é suficiente?

Costumo dizer que está na hora de as empresas pararem de falar e começarem a fazer. No ano passado, o mantra em Davos era “participação do stakeholder, não capitalismo de acionista” – o que aconteceu com esse senso de solidariedade durante a crise da covid? As maiores empresas do mundo ficaram maiores – principalmente no setor de tecnologia, que se vê como o farol da inovação, mas não honra seu pacto social com a sociedade em que está inserida, por exemplo, pagando salários justos, tratando os trabalhadores com justiça ou declarando impostos.

Claro, as empresas poderiam fazer mais. Mas os mercados raramente encontram essa direção por conta própria.

Em um artigo recente para a revista Time, você imaginou o mundo em 2023. Conte-nos um pouco mais sobre ele.

Imagino um 2023 em que não apenas derrotamos a covid, mas também usamos o processo de recuperação como um ponto de inflexão rumo a um novo mundo que seja mais verde, mais inclusivo e mais sustentável, alimentado por um crescimento econômico inteligente, liderado pela inovação.

Isso começa com movimentos públicos que forcem os resgates governamentais a se condicionarem à manutenção da folha de pagamento, à garantia do salário mínimo, à suspensão da recompra de ações e à garantia da representação dos trabalhadores nos conselhos – alinhando as metas da empresa às metas dos trabalhadores.

Esse sonho se estende à assistência médica, que é notoriamente injusta. Na minha visão, condições ousadas se colocaram na governança da propriedade intelectual, nos preços e na fabricação de tratamentos e vacinas contra a covid-19 para garantir que as terapias sejam baratas e universalmente acessíveis. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times

Ao longo dos anos, Mariana Mazzucato, economista e professora da University College London, conquistou um tipo de celebridade incomum para os acadêmicos. Em fevereiro, a revista GQ britânica a apontou como uma das 50 pessoas mais influentes da Grã-Bretanha, ao lado de David Beckham e Phoebe Waller-Bridge. O Financial Times caracterizou uma de suas palestras como “eletrizante”.

Ela tem toda a atenção de políticos e executivos de todo o mundo – desde a deputada democrata Alexandria Ocasio-Cortez nos Estados Unidos e o presidente Cyril Ramaphosa na África do Sul até o fundador da Microsoft, Bill Gates, e o Papa Francisco – que a procuram para ouvir conselhos ou se baseiam em seu trabalho para ter ideias.

Mariana Mazzucato, economista e professora da University College London. Foto: sabella de Maddalena/The New York Times

À primeira vista, sua missão é reimaginar o capitalismo e impulsionar o setor público apoiado pelo Estado. Mas seu trabalho ressoou tanto entre os pensadores esquerdistas quanto nos círculos fiscalmente conservadores do mercado livre, onde até o mais leve sopro de socialismo costuma disparar alarmes. O Financial Times, por exemplo, feroz defensor do livre mercado, observou que o argumento apresentado em um dos livros de Mazzucato, O Estado Empreendedor: Desmascarando o mito do setor público vs. setor privado, está “basicamente correto”.

Os princípios fundamentais da obra de sua vida, que ela expõe em vários livros, são: (1) as maneiras com as quais atualmente definimos o crescimento econômico são muito estreitas; e (2) muitas das maiores conquistas do mundo – o pouso na Lua ou a invenção da internet, por exemplo – provêm de investimentos do governo, não do setor privado, como muitas vezes de supõe.

“Na verdade, toda tecnologia que faz do iPhone um aparelho tão inteligente vem de pesquisas básicas e aplicadas que foram financiadas pelo Estado”, ela escreve em O Estado empreendedor.

Ela não pretende sugerir que Steve Jobs não tenha sido fundamental para o sucesso da Apple, mas “ignorar o lado ‘público’ dessa história impedirá que venham a nascer futuras Apples”. Este mês, quase um ano após o início de uma pandemia que deixou bem claras as muitas fraquezas da economia global, ela foi nomeada presidente de um novo conselho da Organização Mundial da Saúde que põe a saúde pública no centro de como devemos pensar sobre a criação de valor e o crescimento econômico.

Conversamos com Mazzucato por e-mail para explorar como os líderes globais podem redefinir o valor daqui para frente e falar sobre as mulheres esquecidas por trás de muitas das maiores inovações do mundo. A conversa foi editada por motivos de extensão e clareza.

A pandemia deixou claro o quanto a economia depende do trabalho não remunerado – realizado sobretudo pelas mulheres – e dos empregos subvalorizados em setores dominados por mulheres. Como os governos podem começar a valorizar esses empregos e integrá-los a políticas de crescimento econômico mais amplas?

A covid-19 intensificou muito nosso foco sobre o que tem valor em uma economia – no que podemos botar preço e o que podemos trocar com quê. Acontece que as áreas que consideramos de “alto valor” – finanças e imóveis, por exemplo – não são os componentes da sociedade que consideramos “fundamentais”.

A covid-19 trouxe definições governamentais sobre o que é trabalho “chave” ou “essencial”: nossos cidadãos mais valiosos e insubstituíveis são aqueles que trabalham com saúde e assistência social, educação, transporte público, supermercados e serviços de entrega. Esses empregos são desproporcionalmente ocupados por mulheres, bem como por pessoas não brancas, na Europa, no Reino Unido e nos Estados Unidos. O sofrimento não é mais inevitável para esses grupos do que para outros: trata-se de uma escolha política, como qualquer outra.

É um disparate pensar que o trabalho não remunerado dentro das famílias poderia ser calculado nas medições do PIB? Como isso funcionaria de fato?

Bom, em primeiro lugar, não precisamos tentar adaptar e ajustar tudo para caber no PIB. Como medida, o PIB é inerentemente falacioso, já que, dentro dele, o valor econômico é determinado apenas com base nas transações de mercado – contabilizamos apenas bens e serviços vendidos nos mercados. O PIB é usado para justificar desigualdades excessivas de renda e riqueza, ao mesmo tempo que tenta transformar a extração de valor em criação de valor.

Por causa da covid, agora estamos muito mais conscientes do valor dos serviços formais e informais de cuidado infantil. A covid obrigou as mulheres a abandonar o mercado de trabalho a taxas muito mais elevadas do que os homens, porque as mulheres sempre são responsabilizadas pelas atividades domésticas e familiares. Trabalho doméstico, limpeza, cuidado e criação das crianças têm tremendos efeitos colaterais, mas não fizemos um bom trabalho no mapeamento, na articulação e na valorização dessas atividades.

Dada a crescente desigualdade econômica em todo o mundo, é justo presumir que o capitalismo seja fundamentalmente incompatível com o feminismo?

O capitalismo de hoje é incompatível com o feminismo. As empresas privadas são direcionadas pelos mandatos dos acionistas, que não se alinham inerentemente com as prioridades feministas e interseccionais. E são essas empresas que as pessoas veem como as mais inovadoras e as mais valiosas.

Mas a história nos diz que a inovação é resultado de um grande esforço coletivo – não apenas de um pequeno grupo de jovens brancos da Califórnia. Se queremos resolver os maiores problemas do mundo, precisamos compreender e desafiar essa noção.

No ano passado, a declaração de um grupo de quase 200 executivos-chefes das maiores empresas do mundo pôs o foco no investimento em funcionários e clientes, não apenas nos acionistas. Essa ousadia é suficiente?

Costumo dizer que está na hora de as empresas pararem de falar e começarem a fazer. No ano passado, o mantra em Davos era “participação do stakeholder, não capitalismo de acionista” – o que aconteceu com esse senso de solidariedade durante a crise da covid? As maiores empresas do mundo ficaram maiores – principalmente no setor de tecnologia, que se vê como o farol da inovação, mas não honra seu pacto social com a sociedade em que está inserida, por exemplo, pagando salários justos, tratando os trabalhadores com justiça ou declarando impostos.

Claro, as empresas poderiam fazer mais. Mas os mercados raramente encontram essa direção por conta própria.

Em um artigo recente para a revista Time, você imaginou o mundo em 2023. Conte-nos um pouco mais sobre ele.

Imagino um 2023 em que não apenas derrotamos a covid, mas também usamos o processo de recuperação como um ponto de inflexão rumo a um novo mundo que seja mais verde, mais inclusivo e mais sustentável, alimentado por um crescimento econômico inteligente, liderado pela inovação.

Isso começa com movimentos públicos que forcem os resgates governamentais a se condicionarem à manutenção da folha de pagamento, à garantia do salário mínimo, à suspensão da recompra de ações e à garantia da representação dos trabalhadores nos conselhos – alinhando as metas da empresa às metas dos trabalhadores.

Esse sonho se estende à assistência médica, que é notoriamente injusta. Na minha visão, condições ousadas se colocaram na governança da propriedade intelectual, nos preços e na fabricação de tratamentos e vacinas contra a covid-19 para garantir que as terapias sejam baratas e universalmente acessíveis. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times

Ao longo dos anos, Mariana Mazzucato, economista e professora da University College London, conquistou um tipo de celebridade incomum para os acadêmicos. Em fevereiro, a revista GQ britânica a apontou como uma das 50 pessoas mais influentes da Grã-Bretanha, ao lado de David Beckham e Phoebe Waller-Bridge. O Financial Times caracterizou uma de suas palestras como “eletrizante”.

Ela tem toda a atenção de políticos e executivos de todo o mundo – desde a deputada democrata Alexandria Ocasio-Cortez nos Estados Unidos e o presidente Cyril Ramaphosa na África do Sul até o fundador da Microsoft, Bill Gates, e o Papa Francisco – que a procuram para ouvir conselhos ou se baseiam em seu trabalho para ter ideias.

Mariana Mazzucato, economista e professora da University College London. Foto: sabella de Maddalena/The New York Times

À primeira vista, sua missão é reimaginar o capitalismo e impulsionar o setor público apoiado pelo Estado. Mas seu trabalho ressoou tanto entre os pensadores esquerdistas quanto nos círculos fiscalmente conservadores do mercado livre, onde até o mais leve sopro de socialismo costuma disparar alarmes. O Financial Times, por exemplo, feroz defensor do livre mercado, observou que o argumento apresentado em um dos livros de Mazzucato, O Estado Empreendedor: Desmascarando o mito do setor público vs. setor privado, está “basicamente correto”.

Os princípios fundamentais da obra de sua vida, que ela expõe em vários livros, são: (1) as maneiras com as quais atualmente definimos o crescimento econômico são muito estreitas; e (2) muitas das maiores conquistas do mundo – o pouso na Lua ou a invenção da internet, por exemplo – provêm de investimentos do governo, não do setor privado, como muitas vezes de supõe.

“Na verdade, toda tecnologia que faz do iPhone um aparelho tão inteligente vem de pesquisas básicas e aplicadas que foram financiadas pelo Estado”, ela escreve em O Estado empreendedor.

Ela não pretende sugerir que Steve Jobs não tenha sido fundamental para o sucesso da Apple, mas “ignorar o lado ‘público’ dessa história impedirá que venham a nascer futuras Apples”. Este mês, quase um ano após o início de uma pandemia que deixou bem claras as muitas fraquezas da economia global, ela foi nomeada presidente de um novo conselho da Organização Mundial da Saúde que põe a saúde pública no centro de como devemos pensar sobre a criação de valor e o crescimento econômico.

Conversamos com Mazzucato por e-mail para explorar como os líderes globais podem redefinir o valor daqui para frente e falar sobre as mulheres esquecidas por trás de muitas das maiores inovações do mundo. A conversa foi editada por motivos de extensão e clareza.

A pandemia deixou claro o quanto a economia depende do trabalho não remunerado – realizado sobretudo pelas mulheres – e dos empregos subvalorizados em setores dominados por mulheres. Como os governos podem começar a valorizar esses empregos e integrá-los a políticas de crescimento econômico mais amplas?

A covid-19 intensificou muito nosso foco sobre o que tem valor em uma economia – no que podemos botar preço e o que podemos trocar com quê. Acontece que as áreas que consideramos de “alto valor” – finanças e imóveis, por exemplo – não são os componentes da sociedade que consideramos “fundamentais”.

A covid-19 trouxe definições governamentais sobre o que é trabalho “chave” ou “essencial”: nossos cidadãos mais valiosos e insubstituíveis são aqueles que trabalham com saúde e assistência social, educação, transporte público, supermercados e serviços de entrega. Esses empregos são desproporcionalmente ocupados por mulheres, bem como por pessoas não brancas, na Europa, no Reino Unido e nos Estados Unidos. O sofrimento não é mais inevitável para esses grupos do que para outros: trata-se de uma escolha política, como qualquer outra.

É um disparate pensar que o trabalho não remunerado dentro das famílias poderia ser calculado nas medições do PIB? Como isso funcionaria de fato?

Bom, em primeiro lugar, não precisamos tentar adaptar e ajustar tudo para caber no PIB. Como medida, o PIB é inerentemente falacioso, já que, dentro dele, o valor econômico é determinado apenas com base nas transações de mercado – contabilizamos apenas bens e serviços vendidos nos mercados. O PIB é usado para justificar desigualdades excessivas de renda e riqueza, ao mesmo tempo que tenta transformar a extração de valor em criação de valor.

Por causa da covid, agora estamos muito mais conscientes do valor dos serviços formais e informais de cuidado infantil. A covid obrigou as mulheres a abandonar o mercado de trabalho a taxas muito mais elevadas do que os homens, porque as mulheres sempre são responsabilizadas pelas atividades domésticas e familiares. Trabalho doméstico, limpeza, cuidado e criação das crianças têm tremendos efeitos colaterais, mas não fizemos um bom trabalho no mapeamento, na articulação e na valorização dessas atividades.

Dada a crescente desigualdade econômica em todo o mundo, é justo presumir que o capitalismo seja fundamentalmente incompatível com o feminismo?

O capitalismo de hoje é incompatível com o feminismo. As empresas privadas são direcionadas pelos mandatos dos acionistas, que não se alinham inerentemente com as prioridades feministas e interseccionais. E são essas empresas que as pessoas veem como as mais inovadoras e as mais valiosas.

Mas a história nos diz que a inovação é resultado de um grande esforço coletivo – não apenas de um pequeno grupo de jovens brancos da Califórnia. Se queremos resolver os maiores problemas do mundo, precisamos compreender e desafiar essa noção.

No ano passado, a declaração de um grupo de quase 200 executivos-chefes das maiores empresas do mundo pôs o foco no investimento em funcionários e clientes, não apenas nos acionistas. Essa ousadia é suficiente?

Costumo dizer que está na hora de as empresas pararem de falar e começarem a fazer. No ano passado, o mantra em Davos era “participação do stakeholder, não capitalismo de acionista” – o que aconteceu com esse senso de solidariedade durante a crise da covid? As maiores empresas do mundo ficaram maiores – principalmente no setor de tecnologia, que se vê como o farol da inovação, mas não honra seu pacto social com a sociedade em que está inserida, por exemplo, pagando salários justos, tratando os trabalhadores com justiça ou declarando impostos.

Claro, as empresas poderiam fazer mais. Mas os mercados raramente encontram essa direção por conta própria.

Em um artigo recente para a revista Time, você imaginou o mundo em 2023. Conte-nos um pouco mais sobre ele.

Imagino um 2023 em que não apenas derrotamos a covid, mas também usamos o processo de recuperação como um ponto de inflexão rumo a um novo mundo que seja mais verde, mais inclusivo e mais sustentável, alimentado por um crescimento econômico inteligente, liderado pela inovação.

Isso começa com movimentos públicos que forcem os resgates governamentais a se condicionarem à manutenção da folha de pagamento, à garantia do salário mínimo, à suspensão da recompra de ações e à garantia da representação dos trabalhadores nos conselhos – alinhando as metas da empresa às metas dos trabalhadores.

Esse sonho se estende à assistência médica, que é notoriamente injusta. Na minha visão, condições ousadas se colocaram na governança da propriedade intelectual, nos preços e na fabricação de tratamentos e vacinas contra a covid-19 para garantir que as terapias sejam baratas e universalmente acessíveis. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times

Ao longo dos anos, Mariana Mazzucato, economista e professora da University College London, conquistou um tipo de celebridade incomum para os acadêmicos. Em fevereiro, a revista GQ britânica a apontou como uma das 50 pessoas mais influentes da Grã-Bretanha, ao lado de David Beckham e Phoebe Waller-Bridge. O Financial Times caracterizou uma de suas palestras como “eletrizante”.

Ela tem toda a atenção de políticos e executivos de todo o mundo – desde a deputada democrata Alexandria Ocasio-Cortez nos Estados Unidos e o presidente Cyril Ramaphosa na África do Sul até o fundador da Microsoft, Bill Gates, e o Papa Francisco – que a procuram para ouvir conselhos ou se baseiam em seu trabalho para ter ideias.

Mariana Mazzucato, economista e professora da University College London. Foto: sabella de Maddalena/The New York Times

À primeira vista, sua missão é reimaginar o capitalismo e impulsionar o setor público apoiado pelo Estado. Mas seu trabalho ressoou tanto entre os pensadores esquerdistas quanto nos círculos fiscalmente conservadores do mercado livre, onde até o mais leve sopro de socialismo costuma disparar alarmes. O Financial Times, por exemplo, feroz defensor do livre mercado, observou que o argumento apresentado em um dos livros de Mazzucato, O Estado Empreendedor: Desmascarando o mito do setor público vs. setor privado, está “basicamente correto”.

Os princípios fundamentais da obra de sua vida, que ela expõe em vários livros, são: (1) as maneiras com as quais atualmente definimos o crescimento econômico são muito estreitas; e (2) muitas das maiores conquistas do mundo – o pouso na Lua ou a invenção da internet, por exemplo – provêm de investimentos do governo, não do setor privado, como muitas vezes de supõe.

“Na verdade, toda tecnologia que faz do iPhone um aparelho tão inteligente vem de pesquisas básicas e aplicadas que foram financiadas pelo Estado”, ela escreve em O Estado empreendedor.

Ela não pretende sugerir que Steve Jobs não tenha sido fundamental para o sucesso da Apple, mas “ignorar o lado ‘público’ dessa história impedirá que venham a nascer futuras Apples”. Este mês, quase um ano após o início de uma pandemia que deixou bem claras as muitas fraquezas da economia global, ela foi nomeada presidente de um novo conselho da Organização Mundial da Saúde que põe a saúde pública no centro de como devemos pensar sobre a criação de valor e o crescimento econômico.

Conversamos com Mazzucato por e-mail para explorar como os líderes globais podem redefinir o valor daqui para frente e falar sobre as mulheres esquecidas por trás de muitas das maiores inovações do mundo. A conversa foi editada por motivos de extensão e clareza.

A pandemia deixou claro o quanto a economia depende do trabalho não remunerado – realizado sobretudo pelas mulheres – e dos empregos subvalorizados em setores dominados por mulheres. Como os governos podem começar a valorizar esses empregos e integrá-los a políticas de crescimento econômico mais amplas?

A covid-19 intensificou muito nosso foco sobre o que tem valor em uma economia – no que podemos botar preço e o que podemos trocar com quê. Acontece que as áreas que consideramos de “alto valor” – finanças e imóveis, por exemplo – não são os componentes da sociedade que consideramos “fundamentais”.

A covid-19 trouxe definições governamentais sobre o que é trabalho “chave” ou “essencial”: nossos cidadãos mais valiosos e insubstituíveis são aqueles que trabalham com saúde e assistência social, educação, transporte público, supermercados e serviços de entrega. Esses empregos são desproporcionalmente ocupados por mulheres, bem como por pessoas não brancas, na Europa, no Reino Unido e nos Estados Unidos. O sofrimento não é mais inevitável para esses grupos do que para outros: trata-se de uma escolha política, como qualquer outra.

É um disparate pensar que o trabalho não remunerado dentro das famílias poderia ser calculado nas medições do PIB? Como isso funcionaria de fato?

Bom, em primeiro lugar, não precisamos tentar adaptar e ajustar tudo para caber no PIB. Como medida, o PIB é inerentemente falacioso, já que, dentro dele, o valor econômico é determinado apenas com base nas transações de mercado – contabilizamos apenas bens e serviços vendidos nos mercados. O PIB é usado para justificar desigualdades excessivas de renda e riqueza, ao mesmo tempo que tenta transformar a extração de valor em criação de valor.

Por causa da covid, agora estamos muito mais conscientes do valor dos serviços formais e informais de cuidado infantil. A covid obrigou as mulheres a abandonar o mercado de trabalho a taxas muito mais elevadas do que os homens, porque as mulheres sempre são responsabilizadas pelas atividades domésticas e familiares. Trabalho doméstico, limpeza, cuidado e criação das crianças têm tremendos efeitos colaterais, mas não fizemos um bom trabalho no mapeamento, na articulação e na valorização dessas atividades.

Dada a crescente desigualdade econômica em todo o mundo, é justo presumir que o capitalismo seja fundamentalmente incompatível com o feminismo?

O capitalismo de hoje é incompatível com o feminismo. As empresas privadas são direcionadas pelos mandatos dos acionistas, que não se alinham inerentemente com as prioridades feministas e interseccionais. E são essas empresas que as pessoas veem como as mais inovadoras e as mais valiosas.

Mas a história nos diz que a inovação é resultado de um grande esforço coletivo – não apenas de um pequeno grupo de jovens brancos da Califórnia. Se queremos resolver os maiores problemas do mundo, precisamos compreender e desafiar essa noção.

No ano passado, a declaração de um grupo de quase 200 executivos-chefes das maiores empresas do mundo pôs o foco no investimento em funcionários e clientes, não apenas nos acionistas. Essa ousadia é suficiente?

Costumo dizer que está na hora de as empresas pararem de falar e começarem a fazer. No ano passado, o mantra em Davos era “participação do stakeholder, não capitalismo de acionista” – o que aconteceu com esse senso de solidariedade durante a crise da covid? As maiores empresas do mundo ficaram maiores – principalmente no setor de tecnologia, que se vê como o farol da inovação, mas não honra seu pacto social com a sociedade em que está inserida, por exemplo, pagando salários justos, tratando os trabalhadores com justiça ou declarando impostos.

Claro, as empresas poderiam fazer mais. Mas os mercados raramente encontram essa direção por conta própria.

Em um artigo recente para a revista Time, você imaginou o mundo em 2023. Conte-nos um pouco mais sobre ele.

Imagino um 2023 em que não apenas derrotamos a covid, mas também usamos o processo de recuperação como um ponto de inflexão rumo a um novo mundo que seja mais verde, mais inclusivo e mais sustentável, alimentado por um crescimento econômico inteligente, liderado pela inovação.

Isso começa com movimentos públicos que forcem os resgates governamentais a se condicionarem à manutenção da folha de pagamento, à garantia do salário mínimo, à suspensão da recompra de ações e à garantia da representação dos trabalhadores nos conselhos – alinhando as metas da empresa às metas dos trabalhadores.

Esse sonho se estende à assistência médica, que é notoriamente injusta. Na minha visão, condições ousadas se colocaram na governança da propriedade intelectual, nos preços e na fabricação de tratamentos e vacinas contra a covid-19 para garantir que as terapias sejam baratas e universalmente acessíveis. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times

Atualizamos nossa política de cookies

Ao utilizar nossos serviços, você aceita a política de monitoramento de cookies.