Palcos de protestos por direitos civis no passado sofrem com gentrificação nos EUA


O declínio e a desvalorização, seguidos de gentrificação e renovação, das comunidades negras seguiram um padrão previsível

Por Emily Badger e Quoctrung Bui

WASHINGTON — Na esquina das ruas 14 e U no sentido noroeste, onde a fúria começou a transbordar naqueles que se tornaram os devastadores protestos de 1968 em Washington, o aluguel mensal atual de um apartamento de um quarto é de cerca US$ 2,5 mil. Por esse valor tem-se serviços de recepção, acesso ao terraço na cobertura e a proximidade de uma série de academias de ginástica de alto padrão.

Em 1968, o cruzamento era a porta de entrada para a comunidade negra da cidade, segregada, e abrigava várias organizações de luta por direitos civis. No escritório da Southern Christian Leadership Conference, nos dias que antecederam o assassinato de Martin Luther King Jr., os organizadores planejavam a campanha Poor People idealizada por ele. Essa história contrasta com o que se vê na região agora: apartamentos modernos de luxo e academias de ginástica chiques.

Um homem leva entulho de uma construção, em 2006, em um bairro de Cincinnati, uma área antes empobrecida onde a reconstrução começou após protestos em 2001. Foto: Arquivo - Tom Uhlman/The New York Times
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Mas, em toda a Washington e em outras cidades dos Estados Unidos, empreendimentos de alto padrão são erguidos diretamente sobre os bairros negros que mais sofreram durante os protestos civis de décadas atrás. E há uma lógica econômica por trás desse fenômeno: a dimensão do estrago feito nos bairros negros — começando com as condições precárias que motivaram os protestos, passando pelos edifícios queimados e os anos de abandono que se seguiram — facilitou para que, anos mais tarde, incorporadoras, novos negócios e novos moradores acumulassem riqueza.

“Pense em um incêndio florestal que limpa o terreno", disse Nizam Ali, cujo restaurante da família, Ben’s Chili Bowl, é um dos poucos empreendimentos pertencentes a negros perto do cruzamento entre 14ª e U a sobreviver aos protestos e ao declínio que se seguiu. “Infelizmente", disse ele, “essa limpeza foi feita pelo racismo e por assassinato".

Foi uma sequência de manipulação do zoneamento, incêndio criminoso, despovoamento, senhorios, traficantes, encarceramento em massa, impostos prediais inflados e crédito imobiliário negado. A própria gentrificação se tornou parte da crítica em uma nova geração de protestos por igualdade racial justamente porque chega na esteira dessa história em cidades como Washington, e por ter causado sua própria onda de encontros com a polícia.

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“A palavra ‘gentrificação' está na ponta da língua de quase todos os negros", disse Willow Lung-Amam, professora de estudos urbanos e planejamento na Universidade de Maryland, cujo marido é de uma família tradicional de Washington. “As pessoas estão muito tristes com a perda de instituições negras, do espaço político dos negros e seu espaço na cidade em geral. É impossível chegar ao fim de um jantar de domingo sem conversar a respeito da cidade e de como essa cidade não existe mais.”

Há debates semelhantes ocorrendo na Filadélfia, onde apartamentos para universitários começaram a preencher os terrenos vazios em um trecho da cidade cujo passado faz parte da história do jazz, incendiado em 1964; em Liberty City (Miami), onde a gentrificação parece iminente na região dos protestos de 1980; no sul de Los Angeles, onde a população negra teve queda significativa após os protestos de 1992 motivados pelo caso de Rodney King.

“Acho que as pessoas têm a sensação de não controlarem suas comunidades", disse Damien Goodmon, organizador social de Los Angeles e fundador da Liberty Community Land Trust, cujo objetivo é empoderar comunidades negras da região. Muitos outros bairros negros e todo o país que vivenciaram os protestos ou as forças que os motivaram permaneceram em decadência, e poucos viram uma gentrificação.

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E um histórico de protestos não é um pré-requisito para a gentrificação de hoje, mas a dinâmica econômica que transforma destruição em oportunidade é mais visível nesses lugares. Muitos desses bairros tinham imóveis baratos, mas também ofereciam habitações antigas perto do centro, com acesso ao transporte e a corredores comerciais planejados. Tinham também terrenos vazios e terrenos municipais que poderiam ser incorporados a projetos maiores. E como comunidades inteiras foram desvalorizadas, foi possível reformá-las como bairros inteiros.

“Quando uma área inteira é desvalorizada, pode-se reconstruí-la a partir de uma narrativa específica", disse Brandi Summers, professora de geografia e estudos metropolitanos globais da Universidade da Califórnia, em Berkeley. O livro dela, Black in Place, acompanhou a transformação do trecho nordeste da rua H, em Washington, após os distúrbios. A nova narrativa local, mostrando um multiculturalismo moderno, pode ser vista em placas como a da “Chocolate City", montada - e prontamente criticada - na estante de chocolates do mercado Whole Foods inaugurado em 2017.

‘Até o dia em que o protesto ocorreu’

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Os protestos dos anos 1960 desvalorizaram as propriedades negras nas áreas centrais das cidades mais importantes, resultado que durou anos. Com isso, a diferença de valor entre propriedades de brancos e propriedades de negros se ampliou mais em cidades onde os protestos foram mais violentos, de acordo com pesquisa dos historiadores da economia Robert Margo e William Collins.

“Por mais que esses eventos tenham sido destrutivos, nossa interpretação do impacto amplo e relativamente duradouro dos protestos em relação ao valor dos imóveis não é apenas uma consequência da destruição física de edifícios específicos", disse Collins. Em vez disso, ele disse que a destruição se somou à expectativa de que essas comunidades continuariam sendo lugares arriscados para se investir ou viver.

O mesmo padrão foi observado em protestos posteriores, como o de 1980 em Liberty City, região de Miami, iniciados quando um júri formado apenas por brancos absolveu os policiais envolvidos na morte de Arthur McDuffie por espancamento. “Liberty City estava em má situação antes do protesto de 1980, mas não havia uma associação específica entre o nome do bairro, ‘Liberty City’, e as mortes, a violência racial e os protestos", disse o historiador Marvin Dunn, professor emérito de psicologia da Universidade Internacional da Flórida, que cursou o ensino fundamental na região durante os anos 1950.

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“Ninguém pensava em Liberty City como um bairro mais perigoso do que as outras comunidades negras de Miami. Até o dia em que o protesto ocorreu.” Faz tempo que Liberty City era o destino procurado por negros americanos expulsos de outras regiões de Miami. Nos anos 1930, foi construído ali um grande projeto habitacional público e segregado.

Nos anos 1950, quando foi planejada a construção de uma estrada cortando o bairro de Overtown, predominantemente negro, no sul da cidade, os senhorios brancos de Liberty City correram para comprar casas alugadas baratas destinadas à multidão de locatários que viria. Esses edifícios passariam a ser chamados de “monstros de concreto".

Agora, 40 anos após os protestos, uma tentativa de substituir a habitação pública do bairro por empreendimentos imobiliários de renda mista deixou alguns moradores nervosos. E o terreno mais elevado de Liberty City, mais distante do litoral, valorizou a região subitamente em uma cidade preocupada com a alta do nível do mar. “Temos a tendência de supor que esses bairros mais pobres não são lugares para investimentos", disse N.D.B. Connolly, historiador da Universidade Johns Hopkins que também escreveu a respeito da região.

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“Vemos as condições físicas e pensamos nas vagas, mas o que está de fato ocorrendo é a substituição de uma forma de especulação, capitalismo e lucro por outra, com a gentrificação.” Depois dos distúrbios de Washington, a cidade contou mais de 250 terrenos onde os edifícios tinham sido completamente destruídos, especialmente nos três corredores principais dos protestos. Foi somente em 2010 que esses terrenos passaram a atrair a construção de propriedades tanto quanto os terrenos ocupados, de acordo com pesquisas contínuas dos economistas Leah Brooks, Jonathan Rose, Daniel Shoag e Stan Veuger.

“Nos anos 1970, vimos uma grande decepção, e vemos uma grande decepção agora", disse Leah, professora da Universidade George Washington. “Na época, a frustração era com o fato de não terem construído nada no lugar. Agora, a frustração é por construírem algo que não responde aos desejos da comunidade.”

Quando a rua H finalmente começou a atrair novas construções, sendo o último dos rês corredores a atrair interesse, alguns moradores relativamente novos deixaram claro seus desejos. O restaurante Ben’s Chili Bowl planejava abrir um novo endereço em uma rua parecida com a U. Mas, nas reuniões comunitárias, alguns vizinhos reagiram: não queriam um restaurante de fast food na redondezas, com o lixo produzido espalhado pelo bairro, nem queriam um bar ruidoso no andar de cima.

O restaurante abriu em 2015, mas teve dificuldades no novo endereço em meio a ideias conflitantes a respeito de como deveria ser aquele corredor. “Tínhamos grandes bairros negros e distritos comerciais negros", disse Ali, evocando uma época anterior aos incêndios, ao abandono e à reinvenção. “Se permitissem que prosperassem, imagine como esses bairros seriam hoje.” / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times

WASHINGTON — Na esquina das ruas 14 e U no sentido noroeste, onde a fúria começou a transbordar naqueles que se tornaram os devastadores protestos de 1968 em Washington, o aluguel mensal atual de um apartamento de um quarto é de cerca US$ 2,5 mil. Por esse valor tem-se serviços de recepção, acesso ao terraço na cobertura e a proximidade de uma série de academias de ginástica de alto padrão.

Em 1968, o cruzamento era a porta de entrada para a comunidade negra da cidade, segregada, e abrigava várias organizações de luta por direitos civis. No escritório da Southern Christian Leadership Conference, nos dias que antecederam o assassinato de Martin Luther King Jr., os organizadores planejavam a campanha Poor People idealizada por ele. Essa história contrasta com o que se vê na região agora: apartamentos modernos de luxo e academias de ginástica chiques.

Um homem leva entulho de uma construção, em 2006, em um bairro de Cincinnati, uma área antes empobrecida onde a reconstrução começou após protestos em 2001. Foto: Arquivo - Tom Uhlman/The New York Times

Mas, em toda a Washington e em outras cidades dos Estados Unidos, empreendimentos de alto padrão são erguidos diretamente sobre os bairros negros que mais sofreram durante os protestos civis de décadas atrás. E há uma lógica econômica por trás desse fenômeno: a dimensão do estrago feito nos bairros negros — começando com as condições precárias que motivaram os protestos, passando pelos edifícios queimados e os anos de abandono que se seguiram — facilitou para que, anos mais tarde, incorporadoras, novos negócios e novos moradores acumulassem riqueza.

“Pense em um incêndio florestal que limpa o terreno", disse Nizam Ali, cujo restaurante da família, Ben’s Chili Bowl, é um dos poucos empreendimentos pertencentes a negros perto do cruzamento entre 14ª e U a sobreviver aos protestos e ao declínio que se seguiu. “Infelizmente", disse ele, “essa limpeza foi feita pelo racismo e por assassinato".

Foi uma sequência de manipulação do zoneamento, incêndio criminoso, despovoamento, senhorios, traficantes, encarceramento em massa, impostos prediais inflados e crédito imobiliário negado. A própria gentrificação se tornou parte da crítica em uma nova geração de protestos por igualdade racial justamente porque chega na esteira dessa história em cidades como Washington, e por ter causado sua própria onda de encontros com a polícia.

“A palavra ‘gentrificação' está na ponta da língua de quase todos os negros", disse Willow Lung-Amam, professora de estudos urbanos e planejamento na Universidade de Maryland, cujo marido é de uma família tradicional de Washington. “As pessoas estão muito tristes com a perda de instituições negras, do espaço político dos negros e seu espaço na cidade em geral. É impossível chegar ao fim de um jantar de domingo sem conversar a respeito da cidade e de como essa cidade não existe mais.”

Há debates semelhantes ocorrendo na Filadélfia, onde apartamentos para universitários começaram a preencher os terrenos vazios em um trecho da cidade cujo passado faz parte da história do jazz, incendiado em 1964; em Liberty City (Miami), onde a gentrificação parece iminente na região dos protestos de 1980; no sul de Los Angeles, onde a população negra teve queda significativa após os protestos de 1992 motivados pelo caso de Rodney King.

“Acho que as pessoas têm a sensação de não controlarem suas comunidades", disse Damien Goodmon, organizador social de Los Angeles e fundador da Liberty Community Land Trust, cujo objetivo é empoderar comunidades negras da região. Muitos outros bairros negros e todo o país que vivenciaram os protestos ou as forças que os motivaram permaneceram em decadência, e poucos viram uma gentrificação.

E um histórico de protestos não é um pré-requisito para a gentrificação de hoje, mas a dinâmica econômica que transforma destruição em oportunidade é mais visível nesses lugares. Muitos desses bairros tinham imóveis baratos, mas também ofereciam habitações antigas perto do centro, com acesso ao transporte e a corredores comerciais planejados. Tinham também terrenos vazios e terrenos municipais que poderiam ser incorporados a projetos maiores. E como comunidades inteiras foram desvalorizadas, foi possível reformá-las como bairros inteiros.

“Quando uma área inteira é desvalorizada, pode-se reconstruí-la a partir de uma narrativa específica", disse Brandi Summers, professora de geografia e estudos metropolitanos globais da Universidade da Califórnia, em Berkeley. O livro dela, Black in Place, acompanhou a transformação do trecho nordeste da rua H, em Washington, após os distúrbios. A nova narrativa local, mostrando um multiculturalismo moderno, pode ser vista em placas como a da “Chocolate City", montada - e prontamente criticada - na estante de chocolates do mercado Whole Foods inaugurado em 2017.

‘Até o dia em que o protesto ocorreu’

Os protestos dos anos 1960 desvalorizaram as propriedades negras nas áreas centrais das cidades mais importantes, resultado que durou anos. Com isso, a diferença de valor entre propriedades de brancos e propriedades de negros se ampliou mais em cidades onde os protestos foram mais violentos, de acordo com pesquisa dos historiadores da economia Robert Margo e William Collins.

“Por mais que esses eventos tenham sido destrutivos, nossa interpretação do impacto amplo e relativamente duradouro dos protestos em relação ao valor dos imóveis não é apenas uma consequência da destruição física de edifícios específicos", disse Collins. Em vez disso, ele disse que a destruição se somou à expectativa de que essas comunidades continuariam sendo lugares arriscados para se investir ou viver.

O mesmo padrão foi observado em protestos posteriores, como o de 1980 em Liberty City, região de Miami, iniciados quando um júri formado apenas por brancos absolveu os policiais envolvidos na morte de Arthur McDuffie por espancamento. “Liberty City estava em má situação antes do protesto de 1980, mas não havia uma associação específica entre o nome do bairro, ‘Liberty City’, e as mortes, a violência racial e os protestos", disse o historiador Marvin Dunn, professor emérito de psicologia da Universidade Internacional da Flórida, que cursou o ensino fundamental na região durante os anos 1950.

“Ninguém pensava em Liberty City como um bairro mais perigoso do que as outras comunidades negras de Miami. Até o dia em que o protesto ocorreu.” Faz tempo que Liberty City era o destino procurado por negros americanos expulsos de outras regiões de Miami. Nos anos 1930, foi construído ali um grande projeto habitacional público e segregado.

Nos anos 1950, quando foi planejada a construção de uma estrada cortando o bairro de Overtown, predominantemente negro, no sul da cidade, os senhorios brancos de Liberty City correram para comprar casas alugadas baratas destinadas à multidão de locatários que viria. Esses edifícios passariam a ser chamados de “monstros de concreto".

Agora, 40 anos após os protestos, uma tentativa de substituir a habitação pública do bairro por empreendimentos imobiliários de renda mista deixou alguns moradores nervosos. E o terreno mais elevado de Liberty City, mais distante do litoral, valorizou a região subitamente em uma cidade preocupada com a alta do nível do mar. “Temos a tendência de supor que esses bairros mais pobres não são lugares para investimentos", disse N.D.B. Connolly, historiador da Universidade Johns Hopkins que também escreveu a respeito da região.

“Vemos as condições físicas e pensamos nas vagas, mas o que está de fato ocorrendo é a substituição de uma forma de especulação, capitalismo e lucro por outra, com a gentrificação.” Depois dos distúrbios de Washington, a cidade contou mais de 250 terrenos onde os edifícios tinham sido completamente destruídos, especialmente nos três corredores principais dos protestos. Foi somente em 2010 que esses terrenos passaram a atrair a construção de propriedades tanto quanto os terrenos ocupados, de acordo com pesquisas contínuas dos economistas Leah Brooks, Jonathan Rose, Daniel Shoag e Stan Veuger.

“Nos anos 1970, vimos uma grande decepção, e vemos uma grande decepção agora", disse Leah, professora da Universidade George Washington. “Na época, a frustração era com o fato de não terem construído nada no lugar. Agora, a frustração é por construírem algo que não responde aos desejos da comunidade.”

Quando a rua H finalmente começou a atrair novas construções, sendo o último dos rês corredores a atrair interesse, alguns moradores relativamente novos deixaram claro seus desejos. O restaurante Ben’s Chili Bowl planejava abrir um novo endereço em uma rua parecida com a U. Mas, nas reuniões comunitárias, alguns vizinhos reagiram: não queriam um restaurante de fast food na redondezas, com o lixo produzido espalhado pelo bairro, nem queriam um bar ruidoso no andar de cima.

O restaurante abriu em 2015, mas teve dificuldades no novo endereço em meio a ideias conflitantes a respeito de como deveria ser aquele corredor. “Tínhamos grandes bairros negros e distritos comerciais negros", disse Ali, evocando uma época anterior aos incêndios, ao abandono e à reinvenção. “Se permitissem que prosperassem, imagine como esses bairros seriam hoje.” / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times

WASHINGTON — Na esquina das ruas 14 e U no sentido noroeste, onde a fúria começou a transbordar naqueles que se tornaram os devastadores protestos de 1968 em Washington, o aluguel mensal atual de um apartamento de um quarto é de cerca US$ 2,5 mil. Por esse valor tem-se serviços de recepção, acesso ao terraço na cobertura e a proximidade de uma série de academias de ginástica de alto padrão.

Em 1968, o cruzamento era a porta de entrada para a comunidade negra da cidade, segregada, e abrigava várias organizações de luta por direitos civis. No escritório da Southern Christian Leadership Conference, nos dias que antecederam o assassinato de Martin Luther King Jr., os organizadores planejavam a campanha Poor People idealizada por ele. Essa história contrasta com o que se vê na região agora: apartamentos modernos de luxo e academias de ginástica chiques.

Um homem leva entulho de uma construção, em 2006, em um bairro de Cincinnati, uma área antes empobrecida onde a reconstrução começou após protestos em 2001. Foto: Arquivo - Tom Uhlman/The New York Times

Mas, em toda a Washington e em outras cidades dos Estados Unidos, empreendimentos de alto padrão são erguidos diretamente sobre os bairros negros que mais sofreram durante os protestos civis de décadas atrás. E há uma lógica econômica por trás desse fenômeno: a dimensão do estrago feito nos bairros negros — começando com as condições precárias que motivaram os protestos, passando pelos edifícios queimados e os anos de abandono que se seguiram — facilitou para que, anos mais tarde, incorporadoras, novos negócios e novos moradores acumulassem riqueza.

“Pense em um incêndio florestal que limpa o terreno", disse Nizam Ali, cujo restaurante da família, Ben’s Chili Bowl, é um dos poucos empreendimentos pertencentes a negros perto do cruzamento entre 14ª e U a sobreviver aos protestos e ao declínio que se seguiu. “Infelizmente", disse ele, “essa limpeza foi feita pelo racismo e por assassinato".

Foi uma sequência de manipulação do zoneamento, incêndio criminoso, despovoamento, senhorios, traficantes, encarceramento em massa, impostos prediais inflados e crédito imobiliário negado. A própria gentrificação se tornou parte da crítica em uma nova geração de protestos por igualdade racial justamente porque chega na esteira dessa história em cidades como Washington, e por ter causado sua própria onda de encontros com a polícia.

“A palavra ‘gentrificação' está na ponta da língua de quase todos os negros", disse Willow Lung-Amam, professora de estudos urbanos e planejamento na Universidade de Maryland, cujo marido é de uma família tradicional de Washington. “As pessoas estão muito tristes com a perda de instituições negras, do espaço político dos negros e seu espaço na cidade em geral. É impossível chegar ao fim de um jantar de domingo sem conversar a respeito da cidade e de como essa cidade não existe mais.”

Há debates semelhantes ocorrendo na Filadélfia, onde apartamentos para universitários começaram a preencher os terrenos vazios em um trecho da cidade cujo passado faz parte da história do jazz, incendiado em 1964; em Liberty City (Miami), onde a gentrificação parece iminente na região dos protestos de 1980; no sul de Los Angeles, onde a população negra teve queda significativa após os protestos de 1992 motivados pelo caso de Rodney King.

“Acho que as pessoas têm a sensação de não controlarem suas comunidades", disse Damien Goodmon, organizador social de Los Angeles e fundador da Liberty Community Land Trust, cujo objetivo é empoderar comunidades negras da região. Muitos outros bairros negros e todo o país que vivenciaram os protestos ou as forças que os motivaram permaneceram em decadência, e poucos viram uma gentrificação.

E um histórico de protestos não é um pré-requisito para a gentrificação de hoje, mas a dinâmica econômica que transforma destruição em oportunidade é mais visível nesses lugares. Muitos desses bairros tinham imóveis baratos, mas também ofereciam habitações antigas perto do centro, com acesso ao transporte e a corredores comerciais planejados. Tinham também terrenos vazios e terrenos municipais que poderiam ser incorporados a projetos maiores. E como comunidades inteiras foram desvalorizadas, foi possível reformá-las como bairros inteiros.

“Quando uma área inteira é desvalorizada, pode-se reconstruí-la a partir de uma narrativa específica", disse Brandi Summers, professora de geografia e estudos metropolitanos globais da Universidade da Califórnia, em Berkeley. O livro dela, Black in Place, acompanhou a transformação do trecho nordeste da rua H, em Washington, após os distúrbios. A nova narrativa local, mostrando um multiculturalismo moderno, pode ser vista em placas como a da “Chocolate City", montada - e prontamente criticada - na estante de chocolates do mercado Whole Foods inaugurado em 2017.

‘Até o dia em que o protesto ocorreu’

Os protestos dos anos 1960 desvalorizaram as propriedades negras nas áreas centrais das cidades mais importantes, resultado que durou anos. Com isso, a diferença de valor entre propriedades de brancos e propriedades de negros se ampliou mais em cidades onde os protestos foram mais violentos, de acordo com pesquisa dos historiadores da economia Robert Margo e William Collins.

“Por mais que esses eventos tenham sido destrutivos, nossa interpretação do impacto amplo e relativamente duradouro dos protestos em relação ao valor dos imóveis não é apenas uma consequência da destruição física de edifícios específicos", disse Collins. Em vez disso, ele disse que a destruição se somou à expectativa de que essas comunidades continuariam sendo lugares arriscados para se investir ou viver.

O mesmo padrão foi observado em protestos posteriores, como o de 1980 em Liberty City, região de Miami, iniciados quando um júri formado apenas por brancos absolveu os policiais envolvidos na morte de Arthur McDuffie por espancamento. “Liberty City estava em má situação antes do protesto de 1980, mas não havia uma associação específica entre o nome do bairro, ‘Liberty City’, e as mortes, a violência racial e os protestos", disse o historiador Marvin Dunn, professor emérito de psicologia da Universidade Internacional da Flórida, que cursou o ensino fundamental na região durante os anos 1950.

“Ninguém pensava em Liberty City como um bairro mais perigoso do que as outras comunidades negras de Miami. Até o dia em que o protesto ocorreu.” Faz tempo que Liberty City era o destino procurado por negros americanos expulsos de outras regiões de Miami. Nos anos 1930, foi construído ali um grande projeto habitacional público e segregado.

Nos anos 1950, quando foi planejada a construção de uma estrada cortando o bairro de Overtown, predominantemente negro, no sul da cidade, os senhorios brancos de Liberty City correram para comprar casas alugadas baratas destinadas à multidão de locatários que viria. Esses edifícios passariam a ser chamados de “monstros de concreto".

Agora, 40 anos após os protestos, uma tentativa de substituir a habitação pública do bairro por empreendimentos imobiliários de renda mista deixou alguns moradores nervosos. E o terreno mais elevado de Liberty City, mais distante do litoral, valorizou a região subitamente em uma cidade preocupada com a alta do nível do mar. “Temos a tendência de supor que esses bairros mais pobres não são lugares para investimentos", disse N.D.B. Connolly, historiador da Universidade Johns Hopkins que também escreveu a respeito da região.

“Vemos as condições físicas e pensamos nas vagas, mas o que está de fato ocorrendo é a substituição de uma forma de especulação, capitalismo e lucro por outra, com a gentrificação.” Depois dos distúrbios de Washington, a cidade contou mais de 250 terrenos onde os edifícios tinham sido completamente destruídos, especialmente nos três corredores principais dos protestos. Foi somente em 2010 que esses terrenos passaram a atrair a construção de propriedades tanto quanto os terrenos ocupados, de acordo com pesquisas contínuas dos economistas Leah Brooks, Jonathan Rose, Daniel Shoag e Stan Veuger.

“Nos anos 1970, vimos uma grande decepção, e vemos uma grande decepção agora", disse Leah, professora da Universidade George Washington. “Na época, a frustração era com o fato de não terem construído nada no lugar. Agora, a frustração é por construírem algo que não responde aos desejos da comunidade.”

Quando a rua H finalmente começou a atrair novas construções, sendo o último dos rês corredores a atrair interesse, alguns moradores relativamente novos deixaram claro seus desejos. O restaurante Ben’s Chili Bowl planejava abrir um novo endereço em uma rua parecida com a U. Mas, nas reuniões comunitárias, alguns vizinhos reagiram: não queriam um restaurante de fast food na redondezas, com o lixo produzido espalhado pelo bairro, nem queriam um bar ruidoso no andar de cima.

O restaurante abriu em 2015, mas teve dificuldades no novo endereço em meio a ideias conflitantes a respeito de como deveria ser aquele corredor. “Tínhamos grandes bairros negros e distritos comerciais negros", disse Ali, evocando uma época anterior aos incêndios, ao abandono e à reinvenção. “Se permitissem que prosperassem, imagine como esses bairros seriam hoje.” / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

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