Minha improvável parceira dos sonhos na pandemia


Nos odiamos em silêncio, até que abrimos espaço para a dor e boa comida

Por Merissa Nathan Gerson

Em março de 2020, antes de minha mãe viajar de Washington, D.C., para me visitar em Nova Orleans, negociamos quanto tempo ela deveria ficar. Eu iria passar por uma cirurgia no joelho depois de romper massivamente meu menisco e ligamento cruzado anterior durante um desfile do Mardi Gras (Carnaval de Nova Orleans), e ela se ofereceu para me ajudar durante o período de recuperação.

Ela queria ficar por sete dias. Eu disse que cinco dias era o máximo que eu poderia suportar. No final, ela ficou por 53.

Ilustração de Brian Rea/The New York Times. 
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Isso porque a pandemia surgiu, junto com uma ordem para que todos ficássemos em casa na cidade. E o tédio se instalou. Comemos entediadas. Assistíamos a filmes entediadas, aprendendo a alternar entre o desejo de minha mãe por filmes antigos sobre guerra e imigração e meu desejo por programas de namoro que ela achava repugnante. Nós nos odiávamos silenciosamente, ainda sem entender como mudar a dinâmica que tínhamos construído ao longo de 38 anos.

Como muitos americanos de sua idade, minha mãe não levou a pandemia a sério no início. Foi um esforço de equipe para meus irmãos (em Los Angeles) e eu conseguirmos fazê-la usar uma máscara e ficar em casa. Eu encontrava alimentos pela casa como sorvete ou queijo de semente de anis trançado, evidências de suas fugas para a Baskin Robbins e para o mercadinho palestino do bairro.

No início, esquivei-me de sua tristeza e do colapso de minha autonomia adulta. Minha mãe substituiu minha primeira cuidadora, Abby, uma amiga e curandeira de New England, que cuidou de mim como uma criança antes e depois da cirurgia.

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Minha mãe não tinha brilho nos olhos como Abby - ainda. Seu olhar era pesado. Meu pai morrera repentinamente apenas alguns meses antes, e ela carregava um coração partido de um cômodo para outro como se fosse uma mochila. Eu me senti mal por precisar dela e culpada por todo o trabalho que ela teve ao cuidar de mim. Ela já tinha coisas suficientes para lidar.

Quando tomei banho pela primeira vez após a cirurgia, desmaiei ao ver meus pontos e comecei a gritar. Eu esperava que minha mãe não fosse escutar por estar aérea, mas ela entrou correndo com um banquinho para meu joelho e sentou-se ao pé da banheira, segurando seu café gelado com a mão. Ao vê-la ali, sentada comigo, enquanto eu estava nua em uma cadeira coberta por um saco de lixo, como se fosse normal, comecei a notar e a apreciar o quanto ela me amava.

Fiquei impressionada com seus atos simples de devoção. Tive que confiar que ela levantaria minha perna e me ajudaria da cama às muletas até o banheiro, todas as vezes. Tive que depender dela para carregar minhas coisas de um cômodo para outro, para encontrar minhas roupas, para me alimentar. Ela fez ovos e torradas e "matzo brei" (prato de origem judaica), aprendeu como eu gostava do meu chá, fez minha cama e lavou minhas roupas.

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Eu não tinha deixado ninguém se aproximar tanto de mim em anos. Ela estava se tornando meu parceiro dos sonhos.

Por escrever sobre comida, minha mãe testava receitas o tempo todo. Ela cozinhou panquecas holandesas para bebês por uma semana, ficou estranhamente exuberante com seu homus caseiro quente, e fez e refez várias versões de mujadara judia-iraquiana, um prato servido aos enlutados, feito com lentilhas, cebolas caramelizadas e arroz ou bulgur.

Eu odeio cozinhar para mim. Ela nos inscreveu para ter acesso aos alimentos produzidos na comunidade local, havia alcachofras e pêssegos em abundância. Tínhamos o suficiente para dar e vender.

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E então apareceu mais gente. Josh, que morava atrás de mim, apareceu com geleia de morango de Ponchatoula, Louisiana. Ele foi tão doce, deixando-a a três metros de onde eu estava sentada na varanda. Havia uma condição: “Você se importaria”, disse ele, “se eu fosse para o seu quintal? Minha galinha voou para a sua nespereira”.

Essa foi a primeira de muitas fugas daquela galinha e de muitas trocas. Demos a Josh e seu namorado, Michael, bolo e pão; eles deixaram curry e deixaram minha mãe colher suas amoras.

Este também foi o início para minha mãe e eu nos apaixonarmos. Ela ganhou vida quando a vizinhança passou a ter rosto, deixando meu pai na sepultura e juntando-se aos vivos enquanto colhia as amoras na rua, encontrando os vizinhos que espiavam pela janela para falar com ela enquanto ela fazia sua colheita. Ela fez amoras secas, bolo de amora, muffins de amora e geleia de amora. Ela amava amoras como se fossem uma coisa de outro mundo. Fiquei maravilhada com ela.

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Nossa vizinha, Annie, começou a vir colher nossas laranjinhas kinkan e limões com seus dois filhos. Ela fazia biscoitos para nós e os deixava na varanda todas as semanas. Deixamos para ela chili, ensopado e chalá feito em casa.

Virginia apareceu logo em seguida, morava do outro lado da rua. Ela e minha mãe começaram a conversar na cerca, e isso gerou mais trocas. Virginia nos trouxe ketchup, fez nossas primeiras máscaras e depois mostrou a minha mãe sua sagrada sala de artesanato do Mardi Gras, onde os sapatos das Krewe of Muses (Musas de Krew, carro alegórico só com mulheres do Mardi Gras) eram dourados e estavam em um antro de purpurina. Ela ensinou minha mãe a respeito de gambás e nos trouxe morangos de Ponchatoula. Deixamos uma porção de perna de cordeiro defumada em sua caixa de correio quando Alon Shaya, um chef local, nos trouxe o prato.

A monotonia da quarentena deu lugar a um affair socialmente distante, encontros noturnos e tudo mais. Os olhos da minha mãe brilhavam enquanto ela compartilhava histórias dos encontros do dia durante o jantar que ela preparava ou a comida pecaminosamente deliciosa que pedíamos de restaurantes locais. Comecei a me soltar, a abraçar o cuidado que me sentia tão culpada por receber, as três refeições por dia preparadas por minha mãe, a necessidade de alguém, aquele abandono de uma independência quase hostil que havia construído ao longo dos anos.

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Minha mãe estava radiante. Ela fazia longas caminhadas com máscara e explorava Nova Orleans a pé, descobrindo os nomes judeus ocultos em tantos cemitérios, as horríveis estátuas confederadas e a beleza surreal do Parque da Cidade.

Por fim, começamos a processar nossa dor, encontrando o espaço que é tão difícil de encontrar quando duas pessoas estão sofrendo simultaneamente. Às vezes era no meio da noite, como quando eu ouvia o barulho de uma gata (morrendo ou acasalando) e a acordava assustada. Ou a vez em que a galinha do nosso vizinho deu seu último suspiro quando um falcão a roubou de seu quintal, levou-a para o meu telhado, matou-a e jogou-a do lado de fora da minha janela.

A quarentena para nós não era entediante.

Começamos a aprender que estávamos em luto por dois homens diferentes. O dela era o marido que conheceu na década de 1970, um companheiro e amigo que ia ao cinema com ela e viajava pelo mundo, que a apoiava emocionalmente, dormia ao lado dela, abriu espaço para a carreira dela.

E eu estava de luto pela perda do meu pai, alguém um pouco mais distante, que foi meu por apenas 38 anos, e quem eu ansiava por ter ao nosso lado no sofá, rindo da TV ruim, maravilhado por filmes antigos.

Compramos roupas novas para ela pela internet, pois ela havia feito as malas para apenas cinco dias e precisava de roupas para quase dois meses. Começamos a segurar nossas mãos enquanto assistíamos à nossa estranha seleção de filmes: Paixão de Primavera, Presente de Grego e Força Maior, ou nos deleitávamos com A Amiga Genial, nossa companhia por uma semana inteira.

Essa conexão entre nós foi como se estivéssemos saindo do vazio. Parecia que estávamos juntas em um inferno para fazer um piquenique tranquilo.

Encontramos um ritmo, suas caminhadas de duas horas enquanto eu dava aulas pelo Zoom aos meus alunos de Tulane, seguidas de almoços juntas e uma revisão do meu currículo. Aos domingos, um amigo a levava para um passeio de bicicleta e, depois, colocávamos máscaras e íamos de carro pelo Bairro Francês vazio até o Bywater, onde acenávamos para amigos de longe e pedíamos coquetéis para viagem.

Tínhamos encontrado nosso jeito.

Quando ela se animou novamente, cheia de cor e vida, eu a ajudei a se maquiar e se vestir para seus seminários pelo Zoom, e nos sentamos ao amanhecer, eu na cama, ela na beira da janela, e conversamos sobre o luto. Mas não os nossos ao mesmo tempo. Aprendemos a intercalar amoras, galinhas e flores recém-colhidas, a cozinhar, respirar e a prestar atenção à vida que vivíamos, a importância de estar plenas para finalmente abrir espaço para falar do nosso vazio.

Em maio, eu estava andando novamente. Ela começou a fazer muffins e ensopados para mim, estocando meu freezer. E então, em uma segunda-feira, ela colocou luvas plásticas de cozinha e uma máscara e foi ao aeroporto muito vazio para voltar para casa.

Tínhamos sobrevivido durante 53 dias de quarentena por conta do novo coronavírus. Meu pai ainda estava morto. Seu marido ainda estava morto. Ele não voltaria. E na ausência dele, sem ninguém por perto, minha mãe e eu nos apaixonamos por cuidarmos uma da outra. / TRADUÇÃO DE ROMINA CÁCIA

The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times

Em março de 2020, antes de minha mãe viajar de Washington, D.C., para me visitar em Nova Orleans, negociamos quanto tempo ela deveria ficar. Eu iria passar por uma cirurgia no joelho depois de romper massivamente meu menisco e ligamento cruzado anterior durante um desfile do Mardi Gras (Carnaval de Nova Orleans), e ela se ofereceu para me ajudar durante o período de recuperação.

Ela queria ficar por sete dias. Eu disse que cinco dias era o máximo que eu poderia suportar. No final, ela ficou por 53.

Ilustração de Brian Rea/The New York Times. 

Isso porque a pandemia surgiu, junto com uma ordem para que todos ficássemos em casa na cidade. E o tédio se instalou. Comemos entediadas. Assistíamos a filmes entediadas, aprendendo a alternar entre o desejo de minha mãe por filmes antigos sobre guerra e imigração e meu desejo por programas de namoro que ela achava repugnante. Nós nos odiávamos silenciosamente, ainda sem entender como mudar a dinâmica que tínhamos construído ao longo de 38 anos.

Como muitos americanos de sua idade, minha mãe não levou a pandemia a sério no início. Foi um esforço de equipe para meus irmãos (em Los Angeles) e eu conseguirmos fazê-la usar uma máscara e ficar em casa. Eu encontrava alimentos pela casa como sorvete ou queijo de semente de anis trançado, evidências de suas fugas para a Baskin Robbins e para o mercadinho palestino do bairro.

No início, esquivei-me de sua tristeza e do colapso de minha autonomia adulta. Minha mãe substituiu minha primeira cuidadora, Abby, uma amiga e curandeira de New England, que cuidou de mim como uma criança antes e depois da cirurgia.

Minha mãe não tinha brilho nos olhos como Abby - ainda. Seu olhar era pesado. Meu pai morrera repentinamente apenas alguns meses antes, e ela carregava um coração partido de um cômodo para outro como se fosse uma mochila. Eu me senti mal por precisar dela e culpada por todo o trabalho que ela teve ao cuidar de mim. Ela já tinha coisas suficientes para lidar.

Quando tomei banho pela primeira vez após a cirurgia, desmaiei ao ver meus pontos e comecei a gritar. Eu esperava que minha mãe não fosse escutar por estar aérea, mas ela entrou correndo com um banquinho para meu joelho e sentou-se ao pé da banheira, segurando seu café gelado com a mão. Ao vê-la ali, sentada comigo, enquanto eu estava nua em uma cadeira coberta por um saco de lixo, como se fosse normal, comecei a notar e a apreciar o quanto ela me amava.

Fiquei impressionada com seus atos simples de devoção. Tive que confiar que ela levantaria minha perna e me ajudaria da cama às muletas até o banheiro, todas as vezes. Tive que depender dela para carregar minhas coisas de um cômodo para outro, para encontrar minhas roupas, para me alimentar. Ela fez ovos e torradas e "matzo brei" (prato de origem judaica), aprendeu como eu gostava do meu chá, fez minha cama e lavou minhas roupas.

Eu não tinha deixado ninguém se aproximar tanto de mim em anos. Ela estava se tornando meu parceiro dos sonhos.

Por escrever sobre comida, minha mãe testava receitas o tempo todo. Ela cozinhou panquecas holandesas para bebês por uma semana, ficou estranhamente exuberante com seu homus caseiro quente, e fez e refez várias versões de mujadara judia-iraquiana, um prato servido aos enlutados, feito com lentilhas, cebolas caramelizadas e arroz ou bulgur.

Eu odeio cozinhar para mim. Ela nos inscreveu para ter acesso aos alimentos produzidos na comunidade local, havia alcachofras e pêssegos em abundância. Tínhamos o suficiente para dar e vender.

E então apareceu mais gente. Josh, que morava atrás de mim, apareceu com geleia de morango de Ponchatoula, Louisiana. Ele foi tão doce, deixando-a a três metros de onde eu estava sentada na varanda. Havia uma condição: “Você se importaria”, disse ele, “se eu fosse para o seu quintal? Minha galinha voou para a sua nespereira”.

Essa foi a primeira de muitas fugas daquela galinha e de muitas trocas. Demos a Josh e seu namorado, Michael, bolo e pão; eles deixaram curry e deixaram minha mãe colher suas amoras.

Este também foi o início para minha mãe e eu nos apaixonarmos. Ela ganhou vida quando a vizinhança passou a ter rosto, deixando meu pai na sepultura e juntando-se aos vivos enquanto colhia as amoras na rua, encontrando os vizinhos que espiavam pela janela para falar com ela enquanto ela fazia sua colheita. Ela fez amoras secas, bolo de amora, muffins de amora e geleia de amora. Ela amava amoras como se fossem uma coisa de outro mundo. Fiquei maravilhada com ela.

Nossa vizinha, Annie, começou a vir colher nossas laranjinhas kinkan e limões com seus dois filhos. Ela fazia biscoitos para nós e os deixava na varanda todas as semanas. Deixamos para ela chili, ensopado e chalá feito em casa.

Virginia apareceu logo em seguida, morava do outro lado da rua. Ela e minha mãe começaram a conversar na cerca, e isso gerou mais trocas. Virginia nos trouxe ketchup, fez nossas primeiras máscaras e depois mostrou a minha mãe sua sagrada sala de artesanato do Mardi Gras, onde os sapatos das Krewe of Muses (Musas de Krew, carro alegórico só com mulheres do Mardi Gras) eram dourados e estavam em um antro de purpurina. Ela ensinou minha mãe a respeito de gambás e nos trouxe morangos de Ponchatoula. Deixamos uma porção de perna de cordeiro defumada em sua caixa de correio quando Alon Shaya, um chef local, nos trouxe o prato.

A monotonia da quarentena deu lugar a um affair socialmente distante, encontros noturnos e tudo mais. Os olhos da minha mãe brilhavam enquanto ela compartilhava histórias dos encontros do dia durante o jantar que ela preparava ou a comida pecaminosamente deliciosa que pedíamos de restaurantes locais. Comecei a me soltar, a abraçar o cuidado que me sentia tão culpada por receber, as três refeições por dia preparadas por minha mãe, a necessidade de alguém, aquele abandono de uma independência quase hostil que havia construído ao longo dos anos.

Minha mãe estava radiante. Ela fazia longas caminhadas com máscara e explorava Nova Orleans a pé, descobrindo os nomes judeus ocultos em tantos cemitérios, as horríveis estátuas confederadas e a beleza surreal do Parque da Cidade.

Por fim, começamos a processar nossa dor, encontrando o espaço que é tão difícil de encontrar quando duas pessoas estão sofrendo simultaneamente. Às vezes era no meio da noite, como quando eu ouvia o barulho de uma gata (morrendo ou acasalando) e a acordava assustada. Ou a vez em que a galinha do nosso vizinho deu seu último suspiro quando um falcão a roubou de seu quintal, levou-a para o meu telhado, matou-a e jogou-a do lado de fora da minha janela.

A quarentena para nós não era entediante.

Começamos a aprender que estávamos em luto por dois homens diferentes. O dela era o marido que conheceu na década de 1970, um companheiro e amigo que ia ao cinema com ela e viajava pelo mundo, que a apoiava emocionalmente, dormia ao lado dela, abriu espaço para a carreira dela.

E eu estava de luto pela perda do meu pai, alguém um pouco mais distante, que foi meu por apenas 38 anos, e quem eu ansiava por ter ao nosso lado no sofá, rindo da TV ruim, maravilhado por filmes antigos.

Compramos roupas novas para ela pela internet, pois ela havia feito as malas para apenas cinco dias e precisava de roupas para quase dois meses. Começamos a segurar nossas mãos enquanto assistíamos à nossa estranha seleção de filmes: Paixão de Primavera, Presente de Grego e Força Maior, ou nos deleitávamos com A Amiga Genial, nossa companhia por uma semana inteira.

Essa conexão entre nós foi como se estivéssemos saindo do vazio. Parecia que estávamos juntas em um inferno para fazer um piquenique tranquilo.

Encontramos um ritmo, suas caminhadas de duas horas enquanto eu dava aulas pelo Zoom aos meus alunos de Tulane, seguidas de almoços juntas e uma revisão do meu currículo. Aos domingos, um amigo a levava para um passeio de bicicleta e, depois, colocávamos máscaras e íamos de carro pelo Bairro Francês vazio até o Bywater, onde acenávamos para amigos de longe e pedíamos coquetéis para viagem.

Tínhamos encontrado nosso jeito.

Quando ela se animou novamente, cheia de cor e vida, eu a ajudei a se maquiar e se vestir para seus seminários pelo Zoom, e nos sentamos ao amanhecer, eu na cama, ela na beira da janela, e conversamos sobre o luto. Mas não os nossos ao mesmo tempo. Aprendemos a intercalar amoras, galinhas e flores recém-colhidas, a cozinhar, respirar e a prestar atenção à vida que vivíamos, a importância de estar plenas para finalmente abrir espaço para falar do nosso vazio.

Em maio, eu estava andando novamente. Ela começou a fazer muffins e ensopados para mim, estocando meu freezer. E então, em uma segunda-feira, ela colocou luvas plásticas de cozinha e uma máscara e foi ao aeroporto muito vazio para voltar para casa.

Tínhamos sobrevivido durante 53 dias de quarentena por conta do novo coronavírus. Meu pai ainda estava morto. Seu marido ainda estava morto. Ele não voltaria. E na ausência dele, sem ninguém por perto, minha mãe e eu nos apaixonamos por cuidarmos uma da outra. / TRADUÇÃO DE ROMINA CÁCIA

The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times

Em março de 2020, antes de minha mãe viajar de Washington, D.C., para me visitar em Nova Orleans, negociamos quanto tempo ela deveria ficar. Eu iria passar por uma cirurgia no joelho depois de romper massivamente meu menisco e ligamento cruzado anterior durante um desfile do Mardi Gras (Carnaval de Nova Orleans), e ela se ofereceu para me ajudar durante o período de recuperação.

Ela queria ficar por sete dias. Eu disse que cinco dias era o máximo que eu poderia suportar. No final, ela ficou por 53.

Ilustração de Brian Rea/The New York Times. 

Isso porque a pandemia surgiu, junto com uma ordem para que todos ficássemos em casa na cidade. E o tédio se instalou. Comemos entediadas. Assistíamos a filmes entediadas, aprendendo a alternar entre o desejo de minha mãe por filmes antigos sobre guerra e imigração e meu desejo por programas de namoro que ela achava repugnante. Nós nos odiávamos silenciosamente, ainda sem entender como mudar a dinâmica que tínhamos construído ao longo de 38 anos.

Como muitos americanos de sua idade, minha mãe não levou a pandemia a sério no início. Foi um esforço de equipe para meus irmãos (em Los Angeles) e eu conseguirmos fazê-la usar uma máscara e ficar em casa. Eu encontrava alimentos pela casa como sorvete ou queijo de semente de anis trançado, evidências de suas fugas para a Baskin Robbins e para o mercadinho palestino do bairro.

No início, esquivei-me de sua tristeza e do colapso de minha autonomia adulta. Minha mãe substituiu minha primeira cuidadora, Abby, uma amiga e curandeira de New England, que cuidou de mim como uma criança antes e depois da cirurgia.

Minha mãe não tinha brilho nos olhos como Abby - ainda. Seu olhar era pesado. Meu pai morrera repentinamente apenas alguns meses antes, e ela carregava um coração partido de um cômodo para outro como se fosse uma mochila. Eu me senti mal por precisar dela e culpada por todo o trabalho que ela teve ao cuidar de mim. Ela já tinha coisas suficientes para lidar.

Quando tomei banho pela primeira vez após a cirurgia, desmaiei ao ver meus pontos e comecei a gritar. Eu esperava que minha mãe não fosse escutar por estar aérea, mas ela entrou correndo com um banquinho para meu joelho e sentou-se ao pé da banheira, segurando seu café gelado com a mão. Ao vê-la ali, sentada comigo, enquanto eu estava nua em uma cadeira coberta por um saco de lixo, como se fosse normal, comecei a notar e a apreciar o quanto ela me amava.

Fiquei impressionada com seus atos simples de devoção. Tive que confiar que ela levantaria minha perna e me ajudaria da cama às muletas até o banheiro, todas as vezes. Tive que depender dela para carregar minhas coisas de um cômodo para outro, para encontrar minhas roupas, para me alimentar. Ela fez ovos e torradas e "matzo brei" (prato de origem judaica), aprendeu como eu gostava do meu chá, fez minha cama e lavou minhas roupas.

Eu não tinha deixado ninguém se aproximar tanto de mim em anos. Ela estava se tornando meu parceiro dos sonhos.

Por escrever sobre comida, minha mãe testava receitas o tempo todo. Ela cozinhou panquecas holandesas para bebês por uma semana, ficou estranhamente exuberante com seu homus caseiro quente, e fez e refez várias versões de mujadara judia-iraquiana, um prato servido aos enlutados, feito com lentilhas, cebolas caramelizadas e arroz ou bulgur.

Eu odeio cozinhar para mim. Ela nos inscreveu para ter acesso aos alimentos produzidos na comunidade local, havia alcachofras e pêssegos em abundância. Tínhamos o suficiente para dar e vender.

E então apareceu mais gente. Josh, que morava atrás de mim, apareceu com geleia de morango de Ponchatoula, Louisiana. Ele foi tão doce, deixando-a a três metros de onde eu estava sentada na varanda. Havia uma condição: “Você se importaria”, disse ele, “se eu fosse para o seu quintal? Minha galinha voou para a sua nespereira”.

Essa foi a primeira de muitas fugas daquela galinha e de muitas trocas. Demos a Josh e seu namorado, Michael, bolo e pão; eles deixaram curry e deixaram minha mãe colher suas amoras.

Este também foi o início para minha mãe e eu nos apaixonarmos. Ela ganhou vida quando a vizinhança passou a ter rosto, deixando meu pai na sepultura e juntando-se aos vivos enquanto colhia as amoras na rua, encontrando os vizinhos que espiavam pela janela para falar com ela enquanto ela fazia sua colheita. Ela fez amoras secas, bolo de amora, muffins de amora e geleia de amora. Ela amava amoras como se fossem uma coisa de outro mundo. Fiquei maravilhada com ela.

Nossa vizinha, Annie, começou a vir colher nossas laranjinhas kinkan e limões com seus dois filhos. Ela fazia biscoitos para nós e os deixava na varanda todas as semanas. Deixamos para ela chili, ensopado e chalá feito em casa.

Virginia apareceu logo em seguida, morava do outro lado da rua. Ela e minha mãe começaram a conversar na cerca, e isso gerou mais trocas. Virginia nos trouxe ketchup, fez nossas primeiras máscaras e depois mostrou a minha mãe sua sagrada sala de artesanato do Mardi Gras, onde os sapatos das Krewe of Muses (Musas de Krew, carro alegórico só com mulheres do Mardi Gras) eram dourados e estavam em um antro de purpurina. Ela ensinou minha mãe a respeito de gambás e nos trouxe morangos de Ponchatoula. Deixamos uma porção de perna de cordeiro defumada em sua caixa de correio quando Alon Shaya, um chef local, nos trouxe o prato.

A monotonia da quarentena deu lugar a um affair socialmente distante, encontros noturnos e tudo mais. Os olhos da minha mãe brilhavam enquanto ela compartilhava histórias dos encontros do dia durante o jantar que ela preparava ou a comida pecaminosamente deliciosa que pedíamos de restaurantes locais. Comecei a me soltar, a abraçar o cuidado que me sentia tão culpada por receber, as três refeições por dia preparadas por minha mãe, a necessidade de alguém, aquele abandono de uma independência quase hostil que havia construído ao longo dos anos.

Minha mãe estava radiante. Ela fazia longas caminhadas com máscara e explorava Nova Orleans a pé, descobrindo os nomes judeus ocultos em tantos cemitérios, as horríveis estátuas confederadas e a beleza surreal do Parque da Cidade.

Por fim, começamos a processar nossa dor, encontrando o espaço que é tão difícil de encontrar quando duas pessoas estão sofrendo simultaneamente. Às vezes era no meio da noite, como quando eu ouvia o barulho de uma gata (morrendo ou acasalando) e a acordava assustada. Ou a vez em que a galinha do nosso vizinho deu seu último suspiro quando um falcão a roubou de seu quintal, levou-a para o meu telhado, matou-a e jogou-a do lado de fora da minha janela.

A quarentena para nós não era entediante.

Começamos a aprender que estávamos em luto por dois homens diferentes. O dela era o marido que conheceu na década de 1970, um companheiro e amigo que ia ao cinema com ela e viajava pelo mundo, que a apoiava emocionalmente, dormia ao lado dela, abriu espaço para a carreira dela.

E eu estava de luto pela perda do meu pai, alguém um pouco mais distante, que foi meu por apenas 38 anos, e quem eu ansiava por ter ao nosso lado no sofá, rindo da TV ruim, maravilhado por filmes antigos.

Compramos roupas novas para ela pela internet, pois ela havia feito as malas para apenas cinco dias e precisava de roupas para quase dois meses. Começamos a segurar nossas mãos enquanto assistíamos à nossa estranha seleção de filmes: Paixão de Primavera, Presente de Grego e Força Maior, ou nos deleitávamos com A Amiga Genial, nossa companhia por uma semana inteira.

Essa conexão entre nós foi como se estivéssemos saindo do vazio. Parecia que estávamos juntas em um inferno para fazer um piquenique tranquilo.

Encontramos um ritmo, suas caminhadas de duas horas enquanto eu dava aulas pelo Zoom aos meus alunos de Tulane, seguidas de almoços juntas e uma revisão do meu currículo. Aos domingos, um amigo a levava para um passeio de bicicleta e, depois, colocávamos máscaras e íamos de carro pelo Bairro Francês vazio até o Bywater, onde acenávamos para amigos de longe e pedíamos coquetéis para viagem.

Tínhamos encontrado nosso jeito.

Quando ela se animou novamente, cheia de cor e vida, eu a ajudei a se maquiar e se vestir para seus seminários pelo Zoom, e nos sentamos ao amanhecer, eu na cama, ela na beira da janela, e conversamos sobre o luto. Mas não os nossos ao mesmo tempo. Aprendemos a intercalar amoras, galinhas e flores recém-colhidas, a cozinhar, respirar e a prestar atenção à vida que vivíamos, a importância de estar plenas para finalmente abrir espaço para falar do nosso vazio.

Em maio, eu estava andando novamente. Ela começou a fazer muffins e ensopados para mim, estocando meu freezer. E então, em uma segunda-feira, ela colocou luvas plásticas de cozinha e uma máscara e foi ao aeroporto muito vazio para voltar para casa.

Tínhamos sobrevivido durante 53 dias de quarentena por conta do novo coronavírus. Meu pai ainda estava morto. Seu marido ainda estava morto. Ele não voltaria. E na ausência dele, sem ninguém por perto, minha mãe e eu nos apaixonamos por cuidarmos uma da outra. / TRADUÇÃO DE ROMINA CÁCIA

The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times

Em março de 2020, antes de minha mãe viajar de Washington, D.C., para me visitar em Nova Orleans, negociamos quanto tempo ela deveria ficar. Eu iria passar por uma cirurgia no joelho depois de romper massivamente meu menisco e ligamento cruzado anterior durante um desfile do Mardi Gras (Carnaval de Nova Orleans), e ela se ofereceu para me ajudar durante o período de recuperação.

Ela queria ficar por sete dias. Eu disse que cinco dias era o máximo que eu poderia suportar. No final, ela ficou por 53.

Ilustração de Brian Rea/The New York Times. 

Isso porque a pandemia surgiu, junto com uma ordem para que todos ficássemos em casa na cidade. E o tédio se instalou. Comemos entediadas. Assistíamos a filmes entediadas, aprendendo a alternar entre o desejo de minha mãe por filmes antigos sobre guerra e imigração e meu desejo por programas de namoro que ela achava repugnante. Nós nos odiávamos silenciosamente, ainda sem entender como mudar a dinâmica que tínhamos construído ao longo de 38 anos.

Como muitos americanos de sua idade, minha mãe não levou a pandemia a sério no início. Foi um esforço de equipe para meus irmãos (em Los Angeles) e eu conseguirmos fazê-la usar uma máscara e ficar em casa. Eu encontrava alimentos pela casa como sorvete ou queijo de semente de anis trançado, evidências de suas fugas para a Baskin Robbins e para o mercadinho palestino do bairro.

No início, esquivei-me de sua tristeza e do colapso de minha autonomia adulta. Minha mãe substituiu minha primeira cuidadora, Abby, uma amiga e curandeira de New England, que cuidou de mim como uma criança antes e depois da cirurgia.

Minha mãe não tinha brilho nos olhos como Abby - ainda. Seu olhar era pesado. Meu pai morrera repentinamente apenas alguns meses antes, e ela carregava um coração partido de um cômodo para outro como se fosse uma mochila. Eu me senti mal por precisar dela e culpada por todo o trabalho que ela teve ao cuidar de mim. Ela já tinha coisas suficientes para lidar.

Quando tomei banho pela primeira vez após a cirurgia, desmaiei ao ver meus pontos e comecei a gritar. Eu esperava que minha mãe não fosse escutar por estar aérea, mas ela entrou correndo com um banquinho para meu joelho e sentou-se ao pé da banheira, segurando seu café gelado com a mão. Ao vê-la ali, sentada comigo, enquanto eu estava nua em uma cadeira coberta por um saco de lixo, como se fosse normal, comecei a notar e a apreciar o quanto ela me amava.

Fiquei impressionada com seus atos simples de devoção. Tive que confiar que ela levantaria minha perna e me ajudaria da cama às muletas até o banheiro, todas as vezes. Tive que depender dela para carregar minhas coisas de um cômodo para outro, para encontrar minhas roupas, para me alimentar. Ela fez ovos e torradas e "matzo brei" (prato de origem judaica), aprendeu como eu gostava do meu chá, fez minha cama e lavou minhas roupas.

Eu não tinha deixado ninguém se aproximar tanto de mim em anos. Ela estava se tornando meu parceiro dos sonhos.

Por escrever sobre comida, minha mãe testava receitas o tempo todo. Ela cozinhou panquecas holandesas para bebês por uma semana, ficou estranhamente exuberante com seu homus caseiro quente, e fez e refez várias versões de mujadara judia-iraquiana, um prato servido aos enlutados, feito com lentilhas, cebolas caramelizadas e arroz ou bulgur.

Eu odeio cozinhar para mim. Ela nos inscreveu para ter acesso aos alimentos produzidos na comunidade local, havia alcachofras e pêssegos em abundância. Tínhamos o suficiente para dar e vender.

E então apareceu mais gente. Josh, que morava atrás de mim, apareceu com geleia de morango de Ponchatoula, Louisiana. Ele foi tão doce, deixando-a a três metros de onde eu estava sentada na varanda. Havia uma condição: “Você se importaria”, disse ele, “se eu fosse para o seu quintal? Minha galinha voou para a sua nespereira”.

Essa foi a primeira de muitas fugas daquela galinha e de muitas trocas. Demos a Josh e seu namorado, Michael, bolo e pão; eles deixaram curry e deixaram minha mãe colher suas amoras.

Este também foi o início para minha mãe e eu nos apaixonarmos. Ela ganhou vida quando a vizinhança passou a ter rosto, deixando meu pai na sepultura e juntando-se aos vivos enquanto colhia as amoras na rua, encontrando os vizinhos que espiavam pela janela para falar com ela enquanto ela fazia sua colheita. Ela fez amoras secas, bolo de amora, muffins de amora e geleia de amora. Ela amava amoras como se fossem uma coisa de outro mundo. Fiquei maravilhada com ela.

Nossa vizinha, Annie, começou a vir colher nossas laranjinhas kinkan e limões com seus dois filhos. Ela fazia biscoitos para nós e os deixava na varanda todas as semanas. Deixamos para ela chili, ensopado e chalá feito em casa.

Virginia apareceu logo em seguida, morava do outro lado da rua. Ela e minha mãe começaram a conversar na cerca, e isso gerou mais trocas. Virginia nos trouxe ketchup, fez nossas primeiras máscaras e depois mostrou a minha mãe sua sagrada sala de artesanato do Mardi Gras, onde os sapatos das Krewe of Muses (Musas de Krew, carro alegórico só com mulheres do Mardi Gras) eram dourados e estavam em um antro de purpurina. Ela ensinou minha mãe a respeito de gambás e nos trouxe morangos de Ponchatoula. Deixamos uma porção de perna de cordeiro defumada em sua caixa de correio quando Alon Shaya, um chef local, nos trouxe o prato.

A monotonia da quarentena deu lugar a um affair socialmente distante, encontros noturnos e tudo mais. Os olhos da minha mãe brilhavam enquanto ela compartilhava histórias dos encontros do dia durante o jantar que ela preparava ou a comida pecaminosamente deliciosa que pedíamos de restaurantes locais. Comecei a me soltar, a abraçar o cuidado que me sentia tão culpada por receber, as três refeições por dia preparadas por minha mãe, a necessidade de alguém, aquele abandono de uma independência quase hostil que havia construído ao longo dos anos.

Minha mãe estava radiante. Ela fazia longas caminhadas com máscara e explorava Nova Orleans a pé, descobrindo os nomes judeus ocultos em tantos cemitérios, as horríveis estátuas confederadas e a beleza surreal do Parque da Cidade.

Por fim, começamos a processar nossa dor, encontrando o espaço que é tão difícil de encontrar quando duas pessoas estão sofrendo simultaneamente. Às vezes era no meio da noite, como quando eu ouvia o barulho de uma gata (morrendo ou acasalando) e a acordava assustada. Ou a vez em que a galinha do nosso vizinho deu seu último suspiro quando um falcão a roubou de seu quintal, levou-a para o meu telhado, matou-a e jogou-a do lado de fora da minha janela.

A quarentena para nós não era entediante.

Começamos a aprender que estávamos em luto por dois homens diferentes. O dela era o marido que conheceu na década de 1970, um companheiro e amigo que ia ao cinema com ela e viajava pelo mundo, que a apoiava emocionalmente, dormia ao lado dela, abriu espaço para a carreira dela.

E eu estava de luto pela perda do meu pai, alguém um pouco mais distante, que foi meu por apenas 38 anos, e quem eu ansiava por ter ao nosso lado no sofá, rindo da TV ruim, maravilhado por filmes antigos.

Compramos roupas novas para ela pela internet, pois ela havia feito as malas para apenas cinco dias e precisava de roupas para quase dois meses. Começamos a segurar nossas mãos enquanto assistíamos à nossa estranha seleção de filmes: Paixão de Primavera, Presente de Grego e Força Maior, ou nos deleitávamos com A Amiga Genial, nossa companhia por uma semana inteira.

Essa conexão entre nós foi como se estivéssemos saindo do vazio. Parecia que estávamos juntas em um inferno para fazer um piquenique tranquilo.

Encontramos um ritmo, suas caminhadas de duas horas enquanto eu dava aulas pelo Zoom aos meus alunos de Tulane, seguidas de almoços juntas e uma revisão do meu currículo. Aos domingos, um amigo a levava para um passeio de bicicleta e, depois, colocávamos máscaras e íamos de carro pelo Bairro Francês vazio até o Bywater, onde acenávamos para amigos de longe e pedíamos coquetéis para viagem.

Tínhamos encontrado nosso jeito.

Quando ela se animou novamente, cheia de cor e vida, eu a ajudei a se maquiar e se vestir para seus seminários pelo Zoom, e nos sentamos ao amanhecer, eu na cama, ela na beira da janela, e conversamos sobre o luto. Mas não os nossos ao mesmo tempo. Aprendemos a intercalar amoras, galinhas e flores recém-colhidas, a cozinhar, respirar e a prestar atenção à vida que vivíamos, a importância de estar plenas para finalmente abrir espaço para falar do nosso vazio.

Em maio, eu estava andando novamente. Ela começou a fazer muffins e ensopados para mim, estocando meu freezer. E então, em uma segunda-feira, ela colocou luvas plásticas de cozinha e uma máscara e foi ao aeroporto muito vazio para voltar para casa.

Tínhamos sobrevivido durante 53 dias de quarentena por conta do novo coronavírus. Meu pai ainda estava morto. Seu marido ainda estava morto. Ele não voltaria. E na ausência dele, sem ninguém por perto, minha mãe e eu nos apaixonamos por cuidarmos uma da outra. / TRADUÇÃO DE ROMINA CÁCIA

The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times

Em março de 2020, antes de minha mãe viajar de Washington, D.C., para me visitar em Nova Orleans, negociamos quanto tempo ela deveria ficar. Eu iria passar por uma cirurgia no joelho depois de romper massivamente meu menisco e ligamento cruzado anterior durante um desfile do Mardi Gras (Carnaval de Nova Orleans), e ela se ofereceu para me ajudar durante o período de recuperação.

Ela queria ficar por sete dias. Eu disse que cinco dias era o máximo que eu poderia suportar. No final, ela ficou por 53.

Ilustração de Brian Rea/The New York Times. 

Isso porque a pandemia surgiu, junto com uma ordem para que todos ficássemos em casa na cidade. E o tédio se instalou. Comemos entediadas. Assistíamos a filmes entediadas, aprendendo a alternar entre o desejo de minha mãe por filmes antigos sobre guerra e imigração e meu desejo por programas de namoro que ela achava repugnante. Nós nos odiávamos silenciosamente, ainda sem entender como mudar a dinâmica que tínhamos construído ao longo de 38 anos.

Como muitos americanos de sua idade, minha mãe não levou a pandemia a sério no início. Foi um esforço de equipe para meus irmãos (em Los Angeles) e eu conseguirmos fazê-la usar uma máscara e ficar em casa. Eu encontrava alimentos pela casa como sorvete ou queijo de semente de anis trançado, evidências de suas fugas para a Baskin Robbins e para o mercadinho palestino do bairro.

No início, esquivei-me de sua tristeza e do colapso de minha autonomia adulta. Minha mãe substituiu minha primeira cuidadora, Abby, uma amiga e curandeira de New England, que cuidou de mim como uma criança antes e depois da cirurgia.

Minha mãe não tinha brilho nos olhos como Abby - ainda. Seu olhar era pesado. Meu pai morrera repentinamente apenas alguns meses antes, e ela carregava um coração partido de um cômodo para outro como se fosse uma mochila. Eu me senti mal por precisar dela e culpada por todo o trabalho que ela teve ao cuidar de mim. Ela já tinha coisas suficientes para lidar.

Quando tomei banho pela primeira vez após a cirurgia, desmaiei ao ver meus pontos e comecei a gritar. Eu esperava que minha mãe não fosse escutar por estar aérea, mas ela entrou correndo com um banquinho para meu joelho e sentou-se ao pé da banheira, segurando seu café gelado com a mão. Ao vê-la ali, sentada comigo, enquanto eu estava nua em uma cadeira coberta por um saco de lixo, como se fosse normal, comecei a notar e a apreciar o quanto ela me amava.

Fiquei impressionada com seus atos simples de devoção. Tive que confiar que ela levantaria minha perna e me ajudaria da cama às muletas até o banheiro, todas as vezes. Tive que depender dela para carregar minhas coisas de um cômodo para outro, para encontrar minhas roupas, para me alimentar. Ela fez ovos e torradas e "matzo brei" (prato de origem judaica), aprendeu como eu gostava do meu chá, fez minha cama e lavou minhas roupas.

Eu não tinha deixado ninguém se aproximar tanto de mim em anos. Ela estava se tornando meu parceiro dos sonhos.

Por escrever sobre comida, minha mãe testava receitas o tempo todo. Ela cozinhou panquecas holandesas para bebês por uma semana, ficou estranhamente exuberante com seu homus caseiro quente, e fez e refez várias versões de mujadara judia-iraquiana, um prato servido aos enlutados, feito com lentilhas, cebolas caramelizadas e arroz ou bulgur.

Eu odeio cozinhar para mim. Ela nos inscreveu para ter acesso aos alimentos produzidos na comunidade local, havia alcachofras e pêssegos em abundância. Tínhamos o suficiente para dar e vender.

E então apareceu mais gente. Josh, que morava atrás de mim, apareceu com geleia de morango de Ponchatoula, Louisiana. Ele foi tão doce, deixando-a a três metros de onde eu estava sentada na varanda. Havia uma condição: “Você se importaria”, disse ele, “se eu fosse para o seu quintal? Minha galinha voou para a sua nespereira”.

Essa foi a primeira de muitas fugas daquela galinha e de muitas trocas. Demos a Josh e seu namorado, Michael, bolo e pão; eles deixaram curry e deixaram minha mãe colher suas amoras.

Este também foi o início para minha mãe e eu nos apaixonarmos. Ela ganhou vida quando a vizinhança passou a ter rosto, deixando meu pai na sepultura e juntando-se aos vivos enquanto colhia as amoras na rua, encontrando os vizinhos que espiavam pela janela para falar com ela enquanto ela fazia sua colheita. Ela fez amoras secas, bolo de amora, muffins de amora e geleia de amora. Ela amava amoras como se fossem uma coisa de outro mundo. Fiquei maravilhada com ela.

Nossa vizinha, Annie, começou a vir colher nossas laranjinhas kinkan e limões com seus dois filhos. Ela fazia biscoitos para nós e os deixava na varanda todas as semanas. Deixamos para ela chili, ensopado e chalá feito em casa.

Virginia apareceu logo em seguida, morava do outro lado da rua. Ela e minha mãe começaram a conversar na cerca, e isso gerou mais trocas. Virginia nos trouxe ketchup, fez nossas primeiras máscaras e depois mostrou a minha mãe sua sagrada sala de artesanato do Mardi Gras, onde os sapatos das Krewe of Muses (Musas de Krew, carro alegórico só com mulheres do Mardi Gras) eram dourados e estavam em um antro de purpurina. Ela ensinou minha mãe a respeito de gambás e nos trouxe morangos de Ponchatoula. Deixamos uma porção de perna de cordeiro defumada em sua caixa de correio quando Alon Shaya, um chef local, nos trouxe o prato.

A monotonia da quarentena deu lugar a um affair socialmente distante, encontros noturnos e tudo mais. Os olhos da minha mãe brilhavam enquanto ela compartilhava histórias dos encontros do dia durante o jantar que ela preparava ou a comida pecaminosamente deliciosa que pedíamos de restaurantes locais. Comecei a me soltar, a abraçar o cuidado que me sentia tão culpada por receber, as três refeições por dia preparadas por minha mãe, a necessidade de alguém, aquele abandono de uma independência quase hostil que havia construído ao longo dos anos.

Minha mãe estava radiante. Ela fazia longas caminhadas com máscara e explorava Nova Orleans a pé, descobrindo os nomes judeus ocultos em tantos cemitérios, as horríveis estátuas confederadas e a beleza surreal do Parque da Cidade.

Por fim, começamos a processar nossa dor, encontrando o espaço que é tão difícil de encontrar quando duas pessoas estão sofrendo simultaneamente. Às vezes era no meio da noite, como quando eu ouvia o barulho de uma gata (morrendo ou acasalando) e a acordava assustada. Ou a vez em que a galinha do nosso vizinho deu seu último suspiro quando um falcão a roubou de seu quintal, levou-a para o meu telhado, matou-a e jogou-a do lado de fora da minha janela.

A quarentena para nós não era entediante.

Começamos a aprender que estávamos em luto por dois homens diferentes. O dela era o marido que conheceu na década de 1970, um companheiro e amigo que ia ao cinema com ela e viajava pelo mundo, que a apoiava emocionalmente, dormia ao lado dela, abriu espaço para a carreira dela.

E eu estava de luto pela perda do meu pai, alguém um pouco mais distante, que foi meu por apenas 38 anos, e quem eu ansiava por ter ao nosso lado no sofá, rindo da TV ruim, maravilhado por filmes antigos.

Compramos roupas novas para ela pela internet, pois ela havia feito as malas para apenas cinco dias e precisava de roupas para quase dois meses. Começamos a segurar nossas mãos enquanto assistíamos à nossa estranha seleção de filmes: Paixão de Primavera, Presente de Grego e Força Maior, ou nos deleitávamos com A Amiga Genial, nossa companhia por uma semana inteira.

Essa conexão entre nós foi como se estivéssemos saindo do vazio. Parecia que estávamos juntas em um inferno para fazer um piquenique tranquilo.

Encontramos um ritmo, suas caminhadas de duas horas enquanto eu dava aulas pelo Zoom aos meus alunos de Tulane, seguidas de almoços juntas e uma revisão do meu currículo. Aos domingos, um amigo a levava para um passeio de bicicleta e, depois, colocávamos máscaras e íamos de carro pelo Bairro Francês vazio até o Bywater, onde acenávamos para amigos de longe e pedíamos coquetéis para viagem.

Tínhamos encontrado nosso jeito.

Quando ela se animou novamente, cheia de cor e vida, eu a ajudei a se maquiar e se vestir para seus seminários pelo Zoom, e nos sentamos ao amanhecer, eu na cama, ela na beira da janela, e conversamos sobre o luto. Mas não os nossos ao mesmo tempo. Aprendemos a intercalar amoras, galinhas e flores recém-colhidas, a cozinhar, respirar e a prestar atenção à vida que vivíamos, a importância de estar plenas para finalmente abrir espaço para falar do nosso vazio.

Em maio, eu estava andando novamente. Ela começou a fazer muffins e ensopados para mim, estocando meu freezer. E então, em uma segunda-feira, ela colocou luvas plásticas de cozinha e uma máscara e foi ao aeroporto muito vazio para voltar para casa.

Tínhamos sobrevivido durante 53 dias de quarentena por conta do novo coronavírus. Meu pai ainda estava morto. Seu marido ainda estava morto. Ele não voltaria. E na ausência dele, sem ninguém por perto, minha mãe e eu nos apaixonamos por cuidarmos uma da outra. / TRADUÇÃO DE ROMINA CÁCIA

The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times

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