Modern Love: Beijando um colega de trabalho no meio do lixo


Depois de dois ataques, busquei cura no continente mais frio, seco e vazio da Terra

Por Elizabeth Endicott

THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - No meu primeiro dia de trabalho na Antártida, encontrei um vibrador. Estava vasculhando a lixeira skua, a caixa com o nome das aves marinhas que nos perseguiam, exigindo comida.

Minha supervisora, Nikki, tinha acabado de me perguntar se eu planejava namorar durante meu contrato de sete meses.

“Namorar? Como assim?”

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“Estamos em desvantagem numérica, dois para uma”, disse ela. “Então as probabilidades são boas, mas não quer dizer que não possa vir coisa meio esquisita”.

Não disse a ela que a esquisita era eu. Em vez disso, fingi cantar no vibrador, que não reconheci imediatamente como tal – era das antigas, com a cabeça bulbosa e um cordão pendurado.

A ideia era divertir Nikki, que soltou sua risada escandalosa e disse com um olhar de nojo: “Cadê as suas luvas?”

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Mortificada, peguei as luvas no bolso e comecei a vasculhar o lixo com mais cuidado.

Poucas semanas antes, eu estava dando aulas para as crianças de trabalhadores agrícolas migrantes em Flathead Lake, no norte de Montana, depois de me formar na Universidade de Montana. Ao pôr do sol, pulava do cais na água azul-turquesa. Toda a minha vida parecia se abrir diante de mim. E eu estava curiosa e animada para conhecê-la.

Tentei fugir, mas algo no seu sorriso de dentes meio tortinhos me deixou confortável. “Sinceramente”, eu disse, “a galera me deixa intimidada”. Foto: Brian Rea/The New York Times
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Mas, quando encontrei um homem que tinha me violentado dois anos antes, as lembranças do acontecimento voltaram à tona, minha confiança desmoronou e corri para o lugar mais distante possível: para a Antártida, o continente mais frio, seco, ventoso e vazio da Terra.

A Antártida nunca foi meu sonho, embora eu fosse a terceira geração da família a chegar lá. Meu avô a visitou em 1965 como parte de sua passagem pelo quebra-gelo Eastwind da Guarda Costeira americana. Minha mãe fez o mesmo, enfrentando pistas de gelo em veículos de passageiros com pneus de quase dois metros de altura. As conexões de minha mãe ajudaram a conseguir uma oferta para ser zeladora na Estação McMurdo da National Science Foundation, onde cheguei em meados de agosto, no final do inverno, que no hemisfério sul significa escuridão constante.

A jornada de uma semana levou 31 horas de voo em quatro aviões, três continentes e dois oceanos. Saí da barriga do avião militar C-17 sob um vento forte que empurrava a temperatura para 40 graus abaixo de zero. Desorientada, cambaleei cegamente antes de perceber uma linha rosa brilhante no horizonte. Achei que era o Oeste, mas aí lembrei que daqui todas as direções são Norte.

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Entre minhas funções estava a organização do centro de lixo de cada prédio, etapa inicial antes que os técnicos de resíduos sólidos recuperassem, paletizassem e despachassem tudo de volta para os Estados Unidos. Os centros de lixo consistiam em oito compartimentos: skua, vidro, alumínio, plástico, papel misto, restos de comida e o particularmente desagradável lixo sanitário.

“O que é ‘não-R’?”, perguntei a Nikki.

“Não reciclável”, disse ela. “Coisas que não se encaixam em lugar nenhum, como aquele vibrador. Simplesmente lixo”.

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Era a lixeira para mim: eu também me sentia como lixo comum que não se encaixava em nenhum lugar. Com apenas 23 anos, tinha sido estuprada duas vezes, primeiro por um desconhecido na Costa Rica que havia batizado minha bebida, depois por um colega de trabalho na saída de uma festa.

Cometi o erro de me culpar nos dois casos e tentar seguir em frente, mas não conseguia me livrar da crença de que não merecia ternura nem respeito. Foi me sentindo assim descartável que me arrastei até a Antártida.

Alguns dias depois da chegada, estava indo almoçar sozinha no meu dormitório quando encontrei Kevin, zelador de primeira viagem que tinha vindo no mesmo voo.

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“Onde você está indo?”, ele disse. “A cozinha é por aqui”.

Tentei fugir, mas algo no seu sorriso de dentes meio tortinhos me deixou confortável. “Sinceramente”, eu disse, “a galera me deixa intimidada”.

“Eu também”, disse ele. “Vamos resolver isso juntos”.

Entre um pedaço de pizza e outro, contei a ele sobre o vibrador.

“Sério?”, ele disse. “Encontrei uma latinha cheia de dentes”.

Logo aprendi que o lixo poderia fornecer coisas de valor junto com as esquisitices. Encontrei um suéter de caxemira ainda com etiqueta e uma grelha George Foreman para fazer quesadillas tarde da noite. Kevin me deu um par de fones de ouvido recuperados para substituir os que eu tinha deixado cair na privada.

Comecei a correr para os centros de reciclagem todas as manhãs para vasculhar as coisas. Depois nós, zeladores, nos amontoávamos no nosso armário de suprimentos e, em meio frascos de alvejante, cera de chão e esfregões industriais, conversávamos sobre a natureza grotesca do nosso trabalho.

Ao contrário dos meus colegas, eu tinha me isolado de toda a aventura e maravilha ao nosso redor, muito sobrecarregada pela dor que estava tentando evitar. Mas não dá para ficar se escondendo o tempo todo numa estação de pesquisa isolada com uma população não maior que a de uma escola secundária. O tempo mudou enquanto eu trabalhava, comia, jogava, tomava banho e dormia ao lado de tantas pessoas desconhecidas e maravilhosas. Meus colegas zeladores pareciam me amar, coisa de que eu obviamente desconfiava: mais cedo ou mais tarde, eles descobririam como eu era indigna do seu amor.

No final de outubro, foi anunciado um concurso de fantasias de Halloween no qual os vencedores ganhariam o que chamamos de boondoggle – uma excursão de dia inteiro, desta vez para ver o viveiro de pinguins em Cape Royds.

Nós, zeladores, decidimos recriar as roupas de Lady Gaga usando materiais reciclados. Eu queria fazer um minivestido com ombros cônicos. Assim que comecei a pensar em como faria isso, Kevin me mostrou um terno branco enorme que havia encontrado na lixeira.

“Eu sei que você sabe costurar,” ele disse. “Você poderia fazer alguma coisa com isso”.

Juntos, fomos para a oficina de artesanato, onde usei uma máquina de costura antiga para transformar as pernas em saia, prender na cintura e modelar as pontas dos ombros. Com algumas listras pintadas horizontalmente e minhas longas tranças marrons enfiadas sob uma peruca loira, me transformei na personificação de Gaga.

Não só fizemos meticulosamente cada fantasia com lixo, mas também criamos coreografias, fizemos um número de dança na festa de Halloween e vencemos. Num dia ameno de 15 graus, o céu tão claro e azul que até doía, nove de nós partimos no velho veículo de transporte Hagglunds para Cape Royds, mal nos importando que perderíamos o cobiçado dia dos cookies da cozinha.

Enquanto atravessávamos o vasto mar congelado, o mundo ao redor me dominava. O branco sem fim convidava ao pavor existencial e, uma vez mais, me lembrei dos acontecimentos que tinham me levado até ali. Ninguém me amou do jeito que eu precisava – e ninguém jamais amaria.

Sentimos o cheiro dos pinguins antes de vê-los, uma mistura de peixe com coisa podre. Havia milhares diante de nós, grasnando e zumbindo em ninhos de pilhas de pedras. Meus colegas se espalharam, em transe, mas fiquei perto de Nikki, importunando-a com perguntas: O que tinha de errado comigo? Será que um dia conseguiria encontrar o amor?

Ela apertou os olhos. “Olhe só onde você está, com todas essas pessoas incríveis”, disse ela. “Cale a boca e aproveite alguma coisa”.

Suas palavras foram um tapa na ara, daqueles que fazem a gente acordar.

“Se você parasse de se lamentar, talvez conseguisse ver o que está bem debaixo do seu nariz”, disse ela, apontando para o lugar onde Kevin estava sentado.

“De jeito nenhum”, eu disse. “Ele é meu amigo”.

“Exatamente”. Ela se levantou, limpou as calças de neve e saiu para explorar.

Kevin se aproximou e ficamos sentados em silêncio, observando os pinguins oferecerem pedrinhas uns aos outros, na esperança de conquistar uma companhia. Depois de alguns minutos, ele tirou dois biscoitos embrulhados em plástico do bolso do peito e me entregou minha manteiga de amendoim favorita.

Algo farfalhou, feito uma pena, na minha caixa torácica: afeto, sim, mas também medo.

As palavras de Nikki continuaram ressoando. Ficou impossível ignorar a generosidade, o entusiasmo e a coragem de Kevin. Então comecei a traçar minha própria mudança. Eu dava muita risada, oferecia um ouvido gentil para os problemas dos outros e era sempre a última a deixar a pista de dança. Depois de meses trabalhando e rindo com os amigos, comecei a gostar de mim de novo.

No Natal, o sol ficou alto o dia todo, girando em espiral sobre nós. Os carpinteiros organizaram a Galeria de Arte Alternativa McMurdo, uma celebração da arte feita com lixo e itens recuperados. Kevin tinha me convidado para ir com ele e eu fui ficando nervosa. Acabando de esfregar os banheiros, tentei entender minha apreensão. Estava com medo de que abrir meu coração só trouxesse mais dor e rejeição.

Depois do jantar, Kevin e eu subimos a colina, ombros batendo enquanto caminhávamos sobre a rocha vulcânica gelada. No pátio da carpintaria, as pessoas saltitavam em equipamentos de playground de tamanho adulto, construídos com restos de madeira. Lá dentro havia paisagens têxteis feitas de roupas descartadas, um telefone com fio programado para fazer música com bipes de botão e uma tecelagem construída com fita VHS.

Em cada artefato revivido, vi minha vida bonita e imperfeita e soube que era digna da mesma ressurreição amorosa.

Sob centenas de pássaros de papel esvoaçantes feitos de correspondência velha, finalmente me rendi. Meu futuro marido e eu nos beijamos no meio do lixo enquanto um grupo de zeladores entrava e dava risada – não de nós, mas conosco – da sobrenatural alegria de tudo./ TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times

THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - No meu primeiro dia de trabalho na Antártida, encontrei um vibrador. Estava vasculhando a lixeira skua, a caixa com o nome das aves marinhas que nos perseguiam, exigindo comida.

Minha supervisora, Nikki, tinha acabado de me perguntar se eu planejava namorar durante meu contrato de sete meses.

“Namorar? Como assim?”

“Estamos em desvantagem numérica, dois para uma”, disse ela. “Então as probabilidades são boas, mas não quer dizer que não possa vir coisa meio esquisita”.

Não disse a ela que a esquisita era eu. Em vez disso, fingi cantar no vibrador, que não reconheci imediatamente como tal – era das antigas, com a cabeça bulbosa e um cordão pendurado.

A ideia era divertir Nikki, que soltou sua risada escandalosa e disse com um olhar de nojo: “Cadê as suas luvas?”

Mortificada, peguei as luvas no bolso e comecei a vasculhar o lixo com mais cuidado.

Poucas semanas antes, eu estava dando aulas para as crianças de trabalhadores agrícolas migrantes em Flathead Lake, no norte de Montana, depois de me formar na Universidade de Montana. Ao pôr do sol, pulava do cais na água azul-turquesa. Toda a minha vida parecia se abrir diante de mim. E eu estava curiosa e animada para conhecê-la.

Tentei fugir, mas algo no seu sorriso de dentes meio tortinhos me deixou confortável. “Sinceramente”, eu disse, “a galera me deixa intimidada”. Foto: Brian Rea/The New York Times

Mas, quando encontrei um homem que tinha me violentado dois anos antes, as lembranças do acontecimento voltaram à tona, minha confiança desmoronou e corri para o lugar mais distante possível: para a Antártida, o continente mais frio, seco, ventoso e vazio da Terra.

A Antártida nunca foi meu sonho, embora eu fosse a terceira geração da família a chegar lá. Meu avô a visitou em 1965 como parte de sua passagem pelo quebra-gelo Eastwind da Guarda Costeira americana. Minha mãe fez o mesmo, enfrentando pistas de gelo em veículos de passageiros com pneus de quase dois metros de altura. As conexões de minha mãe ajudaram a conseguir uma oferta para ser zeladora na Estação McMurdo da National Science Foundation, onde cheguei em meados de agosto, no final do inverno, que no hemisfério sul significa escuridão constante.

A jornada de uma semana levou 31 horas de voo em quatro aviões, três continentes e dois oceanos. Saí da barriga do avião militar C-17 sob um vento forte que empurrava a temperatura para 40 graus abaixo de zero. Desorientada, cambaleei cegamente antes de perceber uma linha rosa brilhante no horizonte. Achei que era o Oeste, mas aí lembrei que daqui todas as direções são Norte.

Entre minhas funções estava a organização do centro de lixo de cada prédio, etapa inicial antes que os técnicos de resíduos sólidos recuperassem, paletizassem e despachassem tudo de volta para os Estados Unidos. Os centros de lixo consistiam em oito compartimentos: skua, vidro, alumínio, plástico, papel misto, restos de comida e o particularmente desagradável lixo sanitário.

“O que é ‘não-R’?”, perguntei a Nikki.

“Não reciclável”, disse ela. “Coisas que não se encaixam em lugar nenhum, como aquele vibrador. Simplesmente lixo”.

Era a lixeira para mim: eu também me sentia como lixo comum que não se encaixava em nenhum lugar. Com apenas 23 anos, tinha sido estuprada duas vezes, primeiro por um desconhecido na Costa Rica que havia batizado minha bebida, depois por um colega de trabalho na saída de uma festa.

Cometi o erro de me culpar nos dois casos e tentar seguir em frente, mas não conseguia me livrar da crença de que não merecia ternura nem respeito. Foi me sentindo assim descartável que me arrastei até a Antártida.

Alguns dias depois da chegada, estava indo almoçar sozinha no meu dormitório quando encontrei Kevin, zelador de primeira viagem que tinha vindo no mesmo voo.

“Onde você está indo?”, ele disse. “A cozinha é por aqui”.

Tentei fugir, mas algo no seu sorriso de dentes meio tortinhos me deixou confortável. “Sinceramente”, eu disse, “a galera me deixa intimidada”.

“Eu também”, disse ele. “Vamos resolver isso juntos”.

Entre um pedaço de pizza e outro, contei a ele sobre o vibrador.

“Sério?”, ele disse. “Encontrei uma latinha cheia de dentes”.

Logo aprendi que o lixo poderia fornecer coisas de valor junto com as esquisitices. Encontrei um suéter de caxemira ainda com etiqueta e uma grelha George Foreman para fazer quesadillas tarde da noite. Kevin me deu um par de fones de ouvido recuperados para substituir os que eu tinha deixado cair na privada.

Comecei a correr para os centros de reciclagem todas as manhãs para vasculhar as coisas. Depois nós, zeladores, nos amontoávamos no nosso armário de suprimentos e, em meio frascos de alvejante, cera de chão e esfregões industriais, conversávamos sobre a natureza grotesca do nosso trabalho.

Ao contrário dos meus colegas, eu tinha me isolado de toda a aventura e maravilha ao nosso redor, muito sobrecarregada pela dor que estava tentando evitar. Mas não dá para ficar se escondendo o tempo todo numa estação de pesquisa isolada com uma população não maior que a de uma escola secundária. O tempo mudou enquanto eu trabalhava, comia, jogava, tomava banho e dormia ao lado de tantas pessoas desconhecidas e maravilhosas. Meus colegas zeladores pareciam me amar, coisa de que eu obviamente desconfiava: mais cedo ou mais tarde, eles descobririam como eu era indigna do seu amor.

No final de outubro, foi anunciado um concurso de fantasias de Halloween no qual os vencedores ganhariam o que chamamos de boondoggle – uma excursão de dia inteiro, desta vez para ver o viveiro de pinguins em Cape Royds.

Nós, zeladores, decidimos recriar as roupas de Lady Gaga usando materiais reciclados. Eu queria fazer um minivestido com ombros cônicos. Assim que comecei a pensar em como faria isso, Kevin me mostrou um terno branco enorme que havia encontrado na lixeira.

“Eu sei que você sabe costurar,” ele disse. “Você poderia fazer alguma coisa com isso”.

Juntos, fomos para a oficina de artesanato, onde usei uma máquina de costura antiga para transformar as pernas em saia, prender na cintura e modelar as pontas dos ombros. Com algumas listras pintadas horizontalmente e minhas longas tranças marrons enfiadas sob uma peruca loira, me transformei na personificação de Gaga.

Não só fizemos meticulosamente cada fantasia com lixo, mas também criamos coreografias, fizemos um número de dança na festa de Halloween e vencemos. Num dia ameno de 15 graus, o céu tão claro e azul que até doía, nove de nós partimos no velho veículo de transporte Hagglunds para Cape Royds, mal nos importando que perderíamos o cobiçado dia dos cookies da cozinha.

Enquanto atravessávamos o vasto mar congelado, o mundo ao redor me dominava. O branco sem fim convidava ao pavor existencial e, uma vez mais, me lembrei dos acontecimentos que tinham me levado até ali. Ninguém me amou do jeito que eu precisava – e ninguém jamais amaria.

Sentimos o cheiro dos pinguins antes de vê-los, uma mistura de peixe com coisa podre. Havia milhares diante de nós, grasnando e zumbindo em ninhos de pilhas de pedras. Meus colegas se espalharam, em transe, mas fiquei perto de Nikki, importunando-a com perguntas: O que tinha de errado comigo? Será que um dia conseguiria encontrar o amor?

Ela apertou os olhos. “Olhe só onde você está, com todas essas pessoas incríveis”, disse ela. “Cale a boca e aproveite alguma coisa”.

Suas palavras foram um tapa na ara, daqueles que fazem a gente acordar.

“Se você parasse de se lamentar, talvez conseguisse ver o que está bem debaixo do seu nariz”, disse ela, apontando para o lugar onde Kevin estava sentado.

“De jeito nenhum”, eu disse. “Ele é meu amigo”.

“Exatamente”. Ela se levantou, limpou as calças de neve e saiu para explorar.

Kevin se aproximou e ficamos sentados em silêncio, observando os pinguins oferecerem pedrinhas uns aos outros, na esperança de conquistar uma companhia. Depois de alguns minutos, ele tirou dois biscoitos embrulhados em plástico do bolso do peito e me entregou minha manteiga de amendoim favorita.

Algo farfalhou, feito uma pena, na minha caixa torácica: afeto, sim, mas também medo.

As palavras de Nikki continuaram ressoando. Ficou impossível ignorar a generosidade, o entusiasmo e a coragem de Kevin. Então comecei a traçar minha própria mudança. Eu dava muita risada, oferecia um ouvido gentil para os problemas dos outros e era sempre a última a deixar a pista de dança. Depois de meses trabalhando e rindo com os amigos, comecei a gostar de mim de novo.

No Natal, o sol ficou alto o dia todo, girando em espiral sobre nós. Os carpinteiros organizaram a Galeria de Arte Alternativa McMurdo, uma celebração da arte feita com lixo e itens recuperados. Kevin tinha me convidado para ir com ele e eu fui ficando nervosa. Acabando de esfregar os banheiros, tentei entender minha apreensão. Estava com medo de que abrir meu coração só trouxesse mais dor e rejeição.

Depois do jantar, Kevin e eu subimos a colina, ombros batendo enquanto caminhávamos sobre a rocha vulcânica gelada. No pátio da carpintaria, as pessoas saltitavam em equipamentos de playground de tamanho adulto, construídos com restos de madeira. Lá dentro havia paisagens têxteis feitas de roupas descartadas, um telefone com fio programado para fazer música com bipes de botão e uma tecelagem construída com fita VHS.

Em cada artefato revivido, vi minha vida bonita e imperfeita e soube que era digna da mesma ressurreição amorosa.

Sob centenas de pássaros de papel esvoaçantes feitos de correspondência velha, finalmente me rendi. Meu futuro marido e eu nos beijamos no meio do lixo enquanto um grupo de zeladores entrava e dava risada – não de nós, mas conosco – da sobrenatural alegria de tudo./ TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times

THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - No meu primeiro dia de trabalho na Antártida, encontrei um vibrador. Estava vasculhando a lixeira skua, a caixa com o nome das aves marinhas que nos perseguiam, exigindo comida.

Minha supervisora, Nikki, tinha acabado de me perguntar se eu planejava namorar durante meu contrato de sete meses.

“Namorar? Como assim?”

“Estamos em desvantagem numérica, dois para uma”, disse ela. “Então as probabilidades são boas, mas não quer dizer que não possa vir coisa meio esquisita”.

Não disse a ela que a esquisita era eu. Em vez disso, fingi cantar no vibrador, que não reconheci imediatamente como tal – era das antigas, com a cabeça bulbosa e um cordão pendurado.

A ideia era divertir Nikki, que soltou sua risada escandalosa e disse com um olhar de nojo: “Cadê as suas luvas?”

Mortificada, peguei as luvas no bolso e comecei a vasculhar o lixo com mais cuidado.

Poucas semanas antes, eu estava dando aulas para as crianças de trabalhadores agrícolas migrantes em Flathead Lake, no norte de Montana, depois de me formar na Universidade de Montana. Ao pôr do sol, pulava do cais na água azul-turquesa. Toda a minha vida parecia se abrir diante de mim. E eu estava curiosa e animada para conhecê-la.

Tentei fugir, mas algo no seu sorriso de dentes meio tortinhos me deixou confortável. “Sinceramente”, eu disse, “a galera me deixa intimidada”. Foto: Brian Rea/The New York Times

Mas, quando encontrei um homem que tinha me violentado dois anos antes, as lembranças do acontecimento voltaram à tona, minha confiança desmoronou e corri para o lugar mais distante possível: para a Antártida, o continente mais frio, seco, ventoso e vazio da Terra.

A Antártida nunca foi meu sonho, embora eu fosse a terceira geração da família a chegar lá. Meu avô a visitou em 1965 como parte de sua passagem pelo quebra-gelo Eastwind da Guarda Costeira americana. Minha mãe fez o mesmo, enfrentando pistas de gelo em veículos de passageiros com pneus de quase dois metros de altura. As conexões de minha mãe ajudaram a conseguir uma oferta para ser zeladora na Estação McMurdo da National Science Foundation, onde cheguei em meados de agosto, no final do inverno, que no hemisfério sul significa escuridão constante.

A jornada de uma semana levou 31 horas de voo em quatro aviões, três continentes e dois oceanos. Saí da barriga do avião militar C-17 sob um vento forte que empurrava a temperatura para 40 graus abaixo de zero. Desorientada, cambaleei cegamente antes de perceber uma linha rosa brilhante no horizonte. Achei que era o Oeste, mas aí lembrei que daqui todas as direções são Norte.

Entre minhas funções estava a organização do centro de lixo de cada prédio, etapa inicial antes que os técnicos de resíduos sólidos recuperassem, paletizassem e despachassem tudo de volta para os Estados Unidos. Os centros de lixo consistiam em oito compartimentos: skua, vidro, alumínio, plástico, papel misto, restos de comida e o particularmente desagradável lixo sanitário.

“O que é ‘não-R’?”, perguntei a Nikki.

“Não reciclável”, disse ela. “Coisas que não se encaixam em lugar nenhum, como aquele vibrador. Simplesmente lixo”.

Era a lixeira para mim: eu também me sentia como lixo comum que não se encaixava em nenhum lugar. Com apenas 23 anos, tinha sido estuprada duas vezes, primeiro por um desconhecido na Costa Rica que havia batizado minha bebida, depois por um colega de trabalho na saída de uma festa.

Cometi o erro de me culpar nos dois casos e tentar seguir em frente, mas não conseguia me livrar da crença de que não merecia ternura nem respeito. Foi me sentindo assim descartável que me arrastei até a Antártida.

Alguns dias depois da chegada, estava indo almoçar sozinha no meu dormitório quando encontrei Kevin, zelador de primeira viagem que tinha vindo no mesmo voo.

“Onde você está indo?”, ele disse. “A cozinha é por aqui”.

Tentei fugir, mas algo no seu sorriso de dentes meio tortinhos me deixou confortável. “Sinceramente”, eu disse, “a galera me deixa intimidada”.

“Eu também”, disse ele. “Vamos resolver isso juntos”.

Entre um pedaço de pizza e outro, contei a ele sobre o vibrador.

“Sério?”, ele disse. “Encontrei uma latinha cheia de dentes”.

Logo aprendi que o lixo poderia fornecer coisas de valor junto com as esquisitices. Encontrei um suéter de caxemira ainda com etiqueta e uma grelha George Foreman para fazer quesadillas tarde da noite. Kevin me deu um par de fones de ouvido recuperados para substituir os que eu tinha deixado cair na privada.

Comecei a correr para os centros de reciclagem todas as manhãs para vasculhar as coisas. Depois nós, zeladores, nos amontoávamos no nosso armário de suprimentos e, em meio frascos de alvejante, cera de chão e esfregões industriais, conversávamos sobre a natureza grotesca do nosso trabalho.

Ao contrário dos meus colegas, eu tinha me isolado de toda a aventura e maravilha ao nosso redor, muito sobrecarregada pela dor que estava tentando evitar. Mas não dá para ficar se escondendo o tempo todo numa estação de pesquisa isolada com uma população não maior que a de uma escola secundária. O tempo mudou enquanto eu trabalhava, comia, jogava, tomava banho e dormia ao lado de tantas pessoas desconhecidas e maravilhosas. Meus colegas zeladores pareciam me amar, coisa de que eu obviamente desconfiava: mais cedo ou mais tarde, eles descobririam como eu era indigna do seu amor.

No final de outubro, foi anunciado um concurso de fantasias de Halloween no qual os vencedores ganhariam o que chamamos de boondoggle – uma excursão de dia inteiro, desta vez para ver o viveiro de pinguins em Cape Royds.

Nós, zeladores, decidimos recriar as roupas de Lady Gaga usando materiais reciclados. Eu queria fazer um minivestido com ombros cônicos. Assim que comecei a pensar em como faria isso, Kevin me mostrou um terno branco enorme que havia encontrado na lixeira.

“Eu sei que você sabe costurar,” ele disse. “Você poderia fazer alguma coisa com isso”.

Juntos, fomos para a oficina de artesanato, onde usei uma máquina de costura antiga para transformar as pernas em saia, prender na cintura e modelar as pontas dos ombros. Com algumas listras pintadas horizontalmente e minhas longas tranças marrons enfiadas sob uma peruca loira, me transformei na personificação de Gaga.

Não só fizemos meticulosamente cada fantasia com lixo, mas também criamos coreografias, fizemos um número de dança na festa de Halloween e vencemos. Num dia ameno de 15 graus, o céu tão claro e azul que até doía, nove de nós partimos no velho veículo de transporte Hagglunds para Cape Royds, mal nos importando que perderíamos o cobiçado dia dos cookies da cozinha.

Enquanto atravessávamos o vasto mar congelado, o mundo ao redor me dominava. O branco sem fim convidava ao pavor existencial e, uma vez mais, me lembrei dos acontecimentos que tinham me levado até ali. Ninguém me amou do jeito que eu precisava – e ninguém jamais amaria.

Sentimos o cheiro dos pinguins antes de vê-los, uma mistura de peixe com coisa podre. Havia milhares diante de nós, grasnando e zumbindo em ninhos de pilhas de pedras. Meus colegas se espalharam, em transe, mas fiquei perto de Nikki, importunando-a com perguntas: O que tinha de errado comigo? Será que um dia conseguiria encontrar o amor?

Ela apertou os olhos. “Olhe só onde você está, com todas essas pessoas incríveis”, disse ela. “Cale a boca e aproveite alguma coisa”.

Suas palavras foram um tapa na ara, daqueles que fazem a gente acordar.

“Se você parasse de se lamentar, talvez conseguisse ver o que está bem debaixo do seu nariz”, disse ela, apontando para o lugar onde Kevin estava sentado.

“De jeito nenhum”, eu disse. “Ele é meu amigo”.

“Exatamente”. Ela se levantou, limpou as calças de neve e saiu para explorar.

Kevin se aproximou e ficamos sentados em silêncio, observando os pinguins oferecerem pedrinhas uns aos outros, na esperança de conquistar uma companhia. Depois de alguns minutos, ele tirou dois biscoitos embrulhados em plástico do bolso do peito e me entregou minha manteiga de amendoim favorita.

Algo farfalhou, feito uma pena, na minha caixa torácica: afeto, sim, mas também medo.

As palavras de Nikki continuaram ressoando. Ficou impossível ignorar a generosidade, o entusiasmo e a coragem de Kevin. Então comecei a traçar minha própria mudança. Eu dava muita risada, oferecia um ouvido gentil para os problemas dos outros e era sempre a última a deixar a pista de dança. Depois de meses trabalhando e rindo com os amigos, comecei a gostar de mim de novo.

No Natal, o sol ficou alto o dia todo, girando em espiral sobre nós. Os carpinteiros organizaram a Galeria de Arte Alternativa McMurdo, uma celebração da arte feita com lixo e itens recuperados. Kevin tinha me convidado para ir com ele e eu fui ficando nervosa. Acabando de esfregar os banheiros, tentei entender minha apreensão. Estava com medo de que abrir meu coração só trouxesse mais dor e rejeição.

Depois do jantar, Kevin e eu subimos a colina, ombros batendo enquanto caminhávamos sobre a rocha vulcânica gelada. No pátio da carpintaria, as pessoas saltitavam em equipamentos de playground de tamanho adulto, construídos com restos de madeira. Lá dentro havia paisagens têxteis feitas de roupas descartadas, um telefone com fio programado para fazer música com bipes de botão e uma tecelagem construída com fita VHS.

Em cada artefato revivido, vi minha vida bonita e imperfeita e soube que era digna da mesma ressurreição amorosa.

Sob centenas de pássaros de papel esvoaçantes feitos de correspondência velha, finalmente me rendi. Meu futuro marido e eu nos beijamos no meio do lixo enquanto um grupo de zeladores entrava e dava risada – não de nós, mas conosco – da sobrenatural alegria de tudo./ TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times

THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - No meu primeiro dia de trabalho na Antártida, encontrei um vibrador. Estava vasculhando a lixeira skua, a caixa com o nome das aves marinhas que nos perseguiam, exigindo comida.

Minha supervisora, Nikki, tinha acabado de me perguntar se eu planejava namorar durante meu contrato de sete meses.

“Namorar? Como assim?”

“Estamos em desvantagem numérica, dois para uma”, disse ela. “Então as probabilidades são boas, mas não quer dizer que não possa vir coisa meio esquisita”.

Não disse a ela que a esquisita era eu. Em vez disso, fingi cantar no vibrador, que não reconheci imediatamente como tal – era das antigas, com a cabeça bulbosa e um cordão pendurado.

A ideia era divertir Nikki, que soltou sua risada escandalosa e disse com um olhar de nojo: “Cadê as suas luvas?”

Mortificada, peguei as luvas no bolso e comecei a vasculhar o lixo com mais cuidado.

Poucas semanas antes, eu estava dando aulas para as crianças de trabalhadores agrícolas migrantes em Flathead Lake, no norte de Montana, depois de me formar na Universidade de Montana. Ao pôr do sol, pulava do cais na água azul-turquesa. Toda a minha vida parecia se abrir diante de mim. E eu estava curiosa e animada para conhecê-la.

Tentei fugir, mas algo no seu sorriso de dentes meio tortinhos me deixou confortável. “Sinceramente”, eu disse, “a galera me deixa intimidada”. Foto: Brian Rea/The New York Times

Mas, quando encontrei um homem que tinha me violentado dois anos antes, as lembranças do acontecimento voltaram à tona, minha confiança desmoronou e corri para o lugar mais distante possível: para a Antártida, o continente mais frio, seco, ventoso e vazio da Terra.

A Antártida nunca foi meu sonho, embora eu fosse a terceira geração da família a chegar lá. Meu avô a visitou em 1965 como parte de sua passagem pelo quebra-gelo Eastwind da Guarda Costeira americana. Minha mãe fez o mesmo, enfrentando pistas de gelo em veículos de passageiros com pneus de quase dois metros de altura. As conexões de minha mãe ajudaram a conseguir uma oferta para ser zeladora na Estação McMurdo da National Science Foundation, onde cheguei em meados de agosto, no final do inverno, que no hemisfério sul significa escuridão constante.

A jornada de uma semana levou 31 horas de voo em quatro aviões, três continentes e dois oceanos. Saí da barriga do avião militar C-17 sob um vento forte que empurrava a temperatura para 40 graus abaixo de zero. Desorientada, cambaleei cegamente antes de perceber uma linha rosa brilhante no horizonte. Achei que era o Oeste, mas aí lembrei que daqui todas as direções são Norte.

Entre minhas funções estava a organização do centro de lixo de cada prédio, etapa inicial antes que os técnicos de resíduos sólidos recuperassem, paletizassem e despachassem tudo de volta para os Estados Unidos. Os centros de lixo consistiam em oito compartimentos: skua, vidro, alumínio, plástico, papel misto, restos de comida e o particularmente desagradável lixo sanitário.

“O que é ‘não-R’?”, perguntei a Nikki.

“Não reciclável”, disse ela. “Coisas que não se encaixam em lugar nenhum, como aquele vibrador. Simplesmente lixo”.

Era a lixeira para mim: eu também me sentia como lixo comum que não se encaixava em nenhum lugar. Com apenas 23 anos, tinha sido estuprada duas vezes, primeiro por um desconhecido na Costa Rica que havia batizado minha bebida, depois por um colega de trabalho na saída de uma festa.

Cometi o erro de me culpar nos dois casos e tentar seguir em frente, mas não conseguia me livrar da crença de que não merecia ternura nem respeito. Foi me sentindo assim descartável que me arrastei até a Antártida.

Alguns dias depois da chegada, estava indo almoçar sozinha no meu dormitório quando encontrei Kevin, zelador de primeira viagem que tinha vindo no mesmo voo.

“Onde você está indo?”, ele disse. “A cozinha é por aqui”.

Tentei fugir, mas algo no seu sorriso de dentes meio tortinhos me deixou confortável. “Sinceramente”, eu disse, “a galera me deixa intimidada”.

“Eu também”, disse ele. “Vamos resolver isso juntos”.

Entre um pedaço de pizza e outro, contei a ele sobre o vibrador.

“Sério?”, ele disse. “Encontrei uma latinha cheia de dentes”.

Logo aprendi que o lixo poderia fornecer coisas de valor junto com as esquisitices. Encontrei um suéter de caxemira ainda com etiqueta e uma grelha George Foreman para fazer quesadillas tarde da noite. Kevin me deu um par de fones de ouvido recuperados para substituir os que eu tinha deixado cair na privada.

Comecei a correr para os centros de reciclagem todas as manhãs para vasculhar as coisas. Depois nós, zeladores, nos amontoávamos no nosso armário de suprimentos e, em meio frascos de alvejante, cera de chão e esfregões industriais, conversávamos sobre a natureza grotesca do nosso trabalho.

Ao contrário dos meus colegas, eu tinha me isolado de toda a aventura e maravilha ao nosso redor, muito sobrecarregada pela dor que estava tentando evitar. Mas não dá para ficar se escondendo o tempo todo numa estação de pesquisa isolada com uma população não maior que a de uma escola secundária. O tempo mudou enquanto eu trabalhava, comia, jogava, tomava banho e dormia ao lado de tantas pessoas desconhecidas e maravilhosas. Meus colegas zeladores pareciam me amar, coisa de que eu obviamente desconfiava: mais cedo ou mais tarde, eles descobririam como eu era indigna do seu amor.

No final de outubro, foi anunciado um concurso de fantasias de Halloween no qual os vencedores ganhariam o que chamamos de boondoggle – uma excursão de dia inteiro, desta vez para ver o viveiro de pinguins em Cape Royds.

Nós, zeladores, decidimos recriar as roupas de Lady Gaga usando materiais reciclados. Eu queria fazer um minivestido com ombros cônicos. Assim que comecei a pensar em como faria isso, Kevin me mostrou um terno branco enorme que havia encontrado na lixeira.

“Eu sei que você sabe costurar,” ele disse. “Você poderia fazer alguma coisa com isso”.

Juntos, fomos para a oficina de artesanato, onde usei uma máquina de costura antiga para transformar as pernas em saia, prender na cintura e modelar as pontas dos ombros. Com algumas listras pintadas horizontalmente e minhas longas tranças marrons enfiadas sob uma peruca loira, me transformei na personificação de Gaga.

Não só fizemos meticulosamente cada fantasia com lixo, mas também criamos coreografias, fizemos um número de dança na festa de Halloween e vencemos. Num dia ameno de 15 graus, o céu tão claro e azul que até doía, nove de nós partimos no velho veículo de transporte Hagglunds para Cape Royds, mal nos importando que perderíamos o cobiçado dia dos cookies da cozinha.

Enquanto atravessávamos o vasto mar congelado, o mundo ao redor me dominava. O branco sem fim convidava ao pavor existencial e, uma vez mais, me lembrei dos acontecimentos que tinham me levado até ali. Ninguém me amou do jeito que eu precisava – e ninguém jamais amaria.

Sentimos o cheiro dos pinguins antes de vê-los, uma mistura de peixe com coisa podre. Havia milhares diante de nós, grasnando e zumbindo em ninhos de pilhas de pedras. Meus colegas se espalharam, em transe, mas fiquei perto de Nikki, importunando-a com perguntas: O que tinha de errado comigo? Será que um dia conseguiria encontrar o amor?

Ela apertou os olhos. “Olhe só onde você está, com todas essas pessoas incríveis”, disse ela. “Cale a boca e aproveite alguma coisa”.

Suas palavras foram um tapa na ara, daqueles que fazem a gente acordar.

“Se você parasse de se lamentar, talvez conseguisse ver o que está bem debaixo do seu nariz”, disse ela, apontando para o lugar onde Kevin estava sentado.

“De jeito nenhum”, eu disse. “Ele é meu amigo”.

“Exatamente”. Ela se levantou, limpou as calças de neve e saiu para explorar.

Kevin se aproximou e ficamos sentados em silêncio, observando os pinguins oferecerem pedrinhas uns aos outros, na esperança de conquistar uma companhia. Depois de alguns minutos, ele tirou dois biscoitos embrulhados em plástico do bolso do peito e me entregou minha manteiga de amendoim favorita.

Algo farfalhou, feito uma pena, na minha caixa torácica: afeto, sim, mas também medo.

As palavras de Nikki continuaram ressoando. Ficou impossível ignorar a generosidade, o entusiasmo e a coragem de Kevin. Então comecei a traçar minha própria mudança. Eu dava muita risada, oferecia um ouvido gentil para os problemas dos outros e era sempre a última a deixar a pista de dança. Depois de meses trabalhando e rindo com os amigos, comecei a gostar de mim de novo.

No Natal, o sol ficou alto o dia todo, girando em espiral sobre nós. Os carpinteiros organizaram a Galeria de Arte Alternativa McMurdo, uma celebração da arte feita com lixo e itens recuperados. Kevin tinha me convidado para ir com ele e eu fui ficando nervosa. Acabando de esfregar os banheiros, tentei entender minha apreensão. Estava com medo de que abrir meu coração só trouxesse mais dor e rejeição.

Depois do jantar, Kevin e eu subimos a colina, ombros batendo enquanto caminhávamos sobre a rocha vulcânica gelada. No pátio da carpintaria, as pessoas saltitavam em equipamentos de playground de tamanho adulto, construídos com restos de madeira. Lá dentro havia paisagens têxteis feitas de roupas descartadas, um telefone com fio programado para fazer música com bipes de botão e uma tecelagem construída com fita VHS.

Em cada artefato revivido, vi minha vida bonita e imperfeita e soube que era digna da mesma ressurreição amorosa.

Sob centenas de pássaros de papel esvoaçantes feitos de correspondência velha, finalmente me rendi. Meu futuro marido e eu nos beijamos no meio do lixo enquanto um grupo de zeladores entrava e dava risada – não de nós, mas conosco – da sobrenatural alegria de tudo./ TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times

THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - No meu primeiro dia de trabalho na Antártida, encontrei um vibrador. Estava vasculhando a lixeira skua, a caixa com o nome das aves marinhas que nos perseguiam, exigindo comida.

Minha supervisora, Nikki, tinha acabado de me perguntar se eu planejava namorar durante meu contrato de sete meses.

“Namorar? Como assim?”

“Estamos em desvantagem numérica, dois para uma”, disse ela. “Então as probabilidades são boas, mas não quer dizer que não possa vir coisa meio esquisita”.

Não disse a ela que a esquisita era eu. Em vez disso, fingi cantar no vibrador, que não reconheci imediatamente como tal – era das antigas, com a cabeça bulbosa e um cordão pendurado.

A ideia era divertir Nikki, que soltou sua risada escandalosa e disse com um olhar de nojo: “Cadê as suas luvas?”

Mortificada, peguei as luvas no bolso e comecei a vasculhar o lixo com mais cuidado.

Poucas semanas antes, eu estava dando aulas para as crianças de trabalhadores agrícolas migrantes em Flathead Lake, no norte de Montana, depois de me formar na Universidade de Montana. Ao pôr do sol, pulava do cais na água azul-turquesa. Toda a minha vida parecia se abrir diante de mim. E eu estava curiosa e animada para conhecê-la.

Tentei fugir, mas algo no seu sorriso de dentes meio tortinhos me deixou confortável. “Sinceramente”, eu disse, “a galera me deixa intimidada”. Foto: Brian Rea/The New York Times

Mas, quando encontrei um homem que tinha me violentado dois anos antes, as lembranças do acontecimento voltaram à tona, minha confiança desmoronou e corri para o lugar mais distante possível: para a Antártida, o continente mais frio, seco, ventoso e vazio da Terra.

A Antártida nunca foi meu sonho, embora eu fosse a terceira geração da família a chegar lá. Meu avô a visitou em 1965 como parte de sua passagem pelo quebra-gelo Eastwind da Guarda Costeira americana. Minha mãe fez o mesmo, enfrentando pistas de gelo em veículos de passageiros com pneus de quase dois metros de altura. As conexões de minha mãe ajudaram a conseguir uma oferta para ser zeladora na Estação McMurdo da National Science Foundation, onde cheguei em meados de agosto, no final do inverno, que no hemisfério sul significa escuridão constante.

A jornada de uma semana levou 31 horas de voo em quatro aviões, três continentes e dois oceanos. Saí da barriga do avião militar C-17 sob um vento forte que empurrava a temperatura para 40 graus abaixo de zero. Desorientada, cambaleei cegamente antes de perceber uma linha rosa brilhante no horizonte. Achei que era o Oeste, mas aí lembrei que daqui todas as direções são Norte.

Entre minhas funções estava a organização do centro de lixo de cada prédio, etapa inicial antes que os técnicos de resíduos sólidos recuperassem, paletizassem e despachassem tudo de volta para os Estados Unidos. Os centros de lixo consistiam em oito compartimentos: skua, vidro, alumínio, plástico, papel misto, restos de comida e o particularmente desagradável lixo sanitário.

“O que é ‘não-R’?”, perguntei a Nikki.

“Não reciclável”, disse ela. “Coisas que não se encaixam em lugar nenhum, como aquele vibrador. Simplesmente lixo”.

Era a lixeira para mim: eu também me sentia como lixo comum que não se encaixava em nenhum lugar. Com apenas 23 anos, tinha sido estuprada duas vezes, primeiro por um desconhecido na Costa Rica que havia batizado minha bebida, depois por um colega de trabalho na saída de uma festa.

Cometi o erro de me culpar nos dois casos e tentar seguir em frente, mas não conseguia me livrar da crença de que não merecia ternura nem respeito. Foi me sentindo assim descartável que me arrastei até a Antártida.

Alguns dias depois da chegada, estava indo almoçar sozinha no meu dormitório quando encontrei Kevin, zelador de primeira viagem que tinha vindo no mesmo voo.

“Onde você está indo?”, ele disse. “A cozinha é por aqui”.

Tentei fugir, mas algo no seu sorriso de dentes meio tortinhos me deixou confortável. “Sinceramente”, eu disse, “a galera me deixa intimidada”.

“Eu também”, disse ele. “Vamos resolver isso juntos”.

Entre um pedaço de pizza e outro, contei a ele sobre o vibrador.

“Sério?”, ele disse. “Encontrei uma latinha cheia de dentes”.

Logo aprendi que o lixo poderia fornecer coisas de valor junto com as esquisitices. Encontrei um suéter de caxemira ainda com etiqueta e uma grelha George Foreman para fazer quesadillas tarde da noite. Kevin me deu um par de fones de ouvido recuperados para substituir os que eu tinha deixado cair na privada.

Comecei a correr para os centros de reciclagem todas as manhãs para vasculhar as coisas. Depois nós, zeladores, nos amontoávamos no nosso armário de suprimentos e, em meio frascos de alvejante, cera de chão e esfregões industriais, conversávamos sobre a natureza grotesca do nosso trabalho.

Ao contrário dos meus colegas, eu tinha me isolado de toda a aventura e maravilha ao nosso redor, muito sobrecarregada pela dor que estava tentando evitar. Mas não dá para ficar se escondendo o tempo todo numa estação de pesquisa isolada com uma população não maior que a de uma escola secundária. O tempo mudou enquanto eu trabalhava, comia, jogava, tomava banho e dormia ao lado de tantas pessoas desconhecidas e maravilhosas. Meus colegas zeladores pareciam me amar, coisa de que eu obviamente desconfiava: mais cedo ou mais tarde, eles descobririam como eu era indigna do seu amor.

No final de outubro, foi anunciado um concurso de fantasias de Halloween no qual os vencedores ganhariam o que chamamos de boondoggle – uma excursão de dia inteiro, desta vez para ver o viveiro de pinguins em Cape Royds.

Nós, zeladores, decidimos recriar as roupas de Lady Gaga usando materiais reciclados. Eu queria fazer um minivestido com ombros cônicos. Assim que comecei a pensar em como faria isso, Kevin me mostrou um terno branco enorme que havia encontrado na lixeira.

“Eu sei que você sabe costurar,” ele disse. “Você poderia fazer alguma coisa com isso”.

Juntos, fomos para a oficina de artesanato, onde usei uma máquina de costura antiga para transformar as pernas em saia, prender na cintura e modelar as pontas dos ombros. Com algumas listras pintadas horizontalmente e minhas longas tranças marrons enfiadas sob uma peruca loira, me transformei na personificação de Gaga.

Não só fizemos meticulosamente cada fantasia com lixo, mas também criamos coreografias, fizemos um número de dança na festa de Halloween e vencemos. Num dia ameno de 15 graus, o céu tão claro e azul que até doía, nove de nós partimos no velho veículo de transporte Hagglunds para Cape Royds, mal nos importando que perderíamos o cobiçado dia dos cookies da cozinha.

Enquanto atravessávamos o vasto mar congelado, o mundo ao redor me dominava. O branco sem fim convidava ao pavor existencial e, uma vez mais, me lembrei dos acontecimentos que tinham me levado até ali. Ninguém me amou do jeito que eu precisava – e ninguém jamais amaria.

Sentimos o cheiro dos pinguins antes de vê-los, uma mistura de peixe com coisa podre. Havia milhares diante de nós, grasnando e zumbindo em ninhos de pilhas de pedras. Meus colegas se espalharam, em transe, mas fiquei perto de Nikki, importunando-a com perguntas: O que tinha de errado comigo? Será que um dia conseguiria encontrar o amor?

Ela apertou os olhos. “Olhe só onde você está, com todas essas pessoas incríveis”, disse ela. “Cale a boca e aproveite alguma coisa”.

Suas palavras foram um tapa na ara, daqueles que fazem a gente acordar.

“Se você parasse de se lamentar, talvez conseguisse ver o que está bem debaixo do seu nariz”, disse ela, apontando para o lugar onde Kevin estava sentado.

“De jeito nenhum”, eu disse. “Ele é meu amigo”.

“Exatamente”. Ela se levantou, limpou as calças de neve e saiu para explorar.

Kevin se aproximou e ficamos sentados em silêncio, observando os pinguins oferecerem pedrinhas uns aos outros, na esperança de conquistar uma companhia. Depois de alguns minutos, ele tirou dois biscoitos embrulhados em plástico do bolso do peito e me entregou minha manteiga de amendoim favorita.

Algo farfalhou, feito uma pena, na minha caixa torácica: afeto, sim, mas também medo.

As palavras de Nikki continuaram ressoando. Ficou impossível ignorar a generosidade, o entusiasmo e a coragem de Kevin. Então comecei a traçar minha própria mudança. Eu dava muita risada, oferecia um ouvido gentil para os problemas dos outros e era sempre a última a deixar a pista de dança. Depois de meses trabalhando e rindo com os amigos, comecei a gostar de mim de novo.

No Natal, o sol ficou alto o dia todo, girando em espiral sobre nós. Os carpinteiros organizaram a Galeria de Arte Alternativa McMurdo, uma celebração da arte feita com lixo e itens recuperados. Kevin tinha me convidado para ir com ele e eu fui ficando nervosa. Acabando de esfregar os banheiros, tentei entender minha apreensão. Estava com medo de que abrir meu coração só trouxesse mais dor e rejeição.

Depois do jantar, Kevin e eu subimos a colina, ombros batendo enquanto caminhávamos sobre a rocha vulcânica gelada. No pátio da carpintaria, as pessoas saltitavam em equipamentos de playground de tamanho adulto, construídos com restos de madeira. Lá dentro havia paisagens têxteis feitas de roupas descartadas, um telefone com fio programado para fazer música com bipes de botão e uma tecelagem construída com fita VHS.

Em cada artefato revivido, vi minha vida bonita e imperfeita e soube que era digna da mesma ressurreição amorosa.

Sob centenas de pássaros de papel esvoaçantes feitos de correspondência velha, finalmente me rendi. Meu futuro marido e eu nos beijamos no meio do lixo enquanto um grupo de zeladores entrava e dava risada – não de nós, mas conosco – da sobrenatural alegria de tudo./ TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

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