Modern Love: Ele entregava o que eu precisava


Como meu entregador de encomendas passou de alguém que me incomodava a um apoio emocional vital

Por Danielle Festino

No primeiro ano do nosso relacionamento, não sabia o seu nome e não apreciava as suas interrupções. Eu ficava incomodada com a batida na minha janela, necessária para chamar a minha atenção, porque o meu apartamento não tinha campainha na porta.

Apesar do meu aborrecimento, eu o apelidei secretamente de Kris, em referência a Kris Kringle - uma referêncial natalina-, porque ele era uma espécie de Papai Noel moderno. Com seu cabelo branco e um ar de vovô, ele me levava presentes e procurava espalhar alegria. Só que o seu uniforme era da cor marrom do UPS, e não o vermelho do Papai Noel, e eu mesma havia encomendado e pago os presentes.

Ilustração de Brian Rea/The New York Times. 
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Nosso relacionamento começara quase dois anos e meio antes, quando eu me mudei para um pequeno apartamento térreo no norte de Boston. Meu namorado e eu não estávamos muito preparados para morar juntos, por isso este foi um passo intermediário, um lugar para dormir quando eu não estava no escritório ou socializando. E estava quase sempre no escritório ou socializando.

Nos raros dias em que eu estava em casa, o homem do UPS vendo o meu carro na entrada, batia até que, relutando, eu ia pegar o meu pacote. Odiava conversas fiadas, mas com ele fiz um esforço, conversava sobre o tempo ou Tom Brady, assuntos nada comprometedores para fazer camaradagem em Boston.

Perguntei ao meu namorado, um tipo um tanto misantropo, se era estranho eu passar tanto tempo com o entregador. Ele disse que era estranho, possivelmente até perigoso e insistiu para que eu ignorasse futuras batidas, o que deveria ser um conselho fácil de seguir. Mas Kris me lembrava do meu pai, que também passava os dias de trabalho sozinho em um caminhão (entregando óleo para calefação nas casas) e adorava bater papo com os clientes, então continuei atendendo à porta.

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Mas isto foi antes. Antes que o meu namorado e eu rompêssemos. Antes que Tom Brady se mudasse para a Flórida. E antes que a covid mudasse tudo, inclusive meus sentimentos em relação a Kris, o entregador.

Presa no meu apartamento-estúdio eu ansiava por uma conversação e uma companhia. Os dias passavam sem um único contato humano. Meu vizinho de cima adoeceu e foi para o hospital. Eu observava as pessoas pela janela entrar furtivamente na igreja fechada para rezar. Todo o meu mundo tornara-se minúsculo, solitário e apocalíptico. E longe de temer a batida de Kris, tornei-me a versão da covid do cachorro de Pavlov, salivando quando a ouvia.

Não exatamente salivando, mas eu ficava esperando as suas visitas e entregas, que eram numerosas. Desde equipamento de ginástica a macacões de amarrar e tingir, utensílios para o fogão, ele trazia a interminável sequência de coisas que eu havia encomendado, e então ficava para alguma conversa cara a cara.

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Com ele de pé na beirada da varanda, mascarado, e eu na minha porta, discutíamos acontecimentos atuais (a volatilidade do mercado do papel higiênico), a cultura pop (ambos adorávamos Baby Yoda) e detalhes sobre as nossas manias durante o lockdown (ele havia começado jardinagem enquanto eu estava aprendendo a tocar flauta doce).

Uma tarde tediosa, ele se demorou numa conversa particularmente longa, dando detalhes sobre os seus novos limoeiros. Depois de me explicar todo o processo da mudança de vasos, ele disse: “Bom, espero que isto tenha ajudado”.

Foi então que me dei conta de que ele queria dizer que as nossas conversas de cinco minutos deveriam ser um cordão de salvamento – e que ele estava talvez fazendo o mesmo para outras pessoas, apesar da sua carga de trabalho maior do que nunca.

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Nos dias em que não havia entregas, eu trabalhava ininterruptamente à escrivaninha que havia colocado de frente para a janela da frente. Entre as sessões de planejamento estratégico no Zoom, eu ficava observando o trânsito lá fora, olhando o seu caminhão marrom entrar na minha rua de mão única.

Apesar das advertências do meu ex, não havia nada que indicasse algo estranho ou mesmo flertes em suas aproximações. Kris falava de suas rotas favoritas nos bairros, ele gostava das ruas ladeadas de árvores, mas detestava morros e era obcecado por Star Wars.

Até fiquei sabendo o seu primeiro nome de verdade, Dave. Ele tinha uma esposa e dois filhos, com os quais estava constantemente preocupado. Em parte terapeuta e em parte anjo da guarda, ele também perguntava sobre a minha saúde mental (“Acaso a está perdendo?”) , meu trabalho (“Quantos Zoom hoje?”) e minhas distrações (“Algum novo hobby”?)

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Num dia ensolarado do início de junho, ele indicou o pacote que ele havia colocado na varanda e disse: “É pesado. É um novo equipamento de ginástica?”)

“Nããão”, respondi. “É somente uma bobagem de uma frigideira.”

A esta altura, ele me conhecia bastante para não menosprezar a resposta. “Por que eu sinto que há uma história aqui?”

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Eu não havia contado para ninguém a embaraçosa verdade das panelas, mas com ele, a história simplesmente surgiu. “Há mais de dez anos”, falei, “minha mãe encontrou um lindo conjunto de utensílios de cozinha à venda na Macy’s. E ela o estava guardando para a minha despedida de solteira, ou da minha irmã, enfim, da primeira que fosse casar. Como isto ainda não tinha acontecido com nenhuma das duas, as panelas estavam no subsolo da casa da minha mãe, zombando de mim todas as vezes que eu descia lá. Então, no mês passado, finalmente eu o levei”.

Minha mãe não tinha me dito para ir pegá-lo, não porque não achava que eu não merecesse, mas porque, fazendo isto, parecia que eu estivesse jogando a toalha para mim e para minha irmã.

“Honestamente, não sei bem por que eu peguei as panelas”, afirmei. “Achava que eu pareceria independente demais, mas eu só me sinto triste”. Olhei para o chão enquanto os meus olhos se enchiam de lágrimas. Piscando para que não saíssem, continuei: “Em todo caso, em vez disso, para uso, comprei uma panela super cara, não tóxica que vi no Instagram, a que você acabou de entregar”.

Dave ficou quieto por um instante como se estivesse resolvendo um complicado problema de matemática. “Tive um sonho na outra noite sobre o fim do mundo”, contou, “mas eu sobrevivi. Eu sei que é uma coisa horrível falar isto, dado o que está acontecendo, mas não era uma coisa triste, porque a minha família também sobreviveu”. Ele teve uma expressão como se não fosse algo tão importante, por trás da máscara. “Fico pensando: Se tudo desaparecesse, com exceção de você, da sua família, da sua casa, aquelas panelas teriam o mesmo significado?”

Balancei a cabeça. “Provavelmente não”.

“Você está exatamente onde deveria estar,” observou. “Acredito nisto: e espero que algum dia você acredite também”.

Em um dia quente de julho, Dave bateu trazendo um pacote, e quando atendi, ele me disse que o UPS estava mudando sua rota. O meu coração deu um pulo enquanto estávamos nos nossos lugares de sempre, ele apoiado ao balaústre e eu na soleira da porta.

Fiquei sem jeito de admitir até que ponto eu passara a depender das suas visitas. Além de alguns encontros fora de casa com amigos e a família, eu estava completamente sozinha. Às vezes até interrompia as minhas reuniões na Zoom quando ele chegava, trocando alegremente ideias e mensagens pelo Slack por um contato com um ser humano real.

“Estou muito ansioso por uma mudança”, ele disse. “Mas vou sentir falta das minhas visitas regulares.”

“Parabéns”, não sabia o que mais dizer. Como agradecer a uma pessoa por salvar a nossa sanidade mental?

Ele rompeu o silêncio com uma típica pergunta de Dave: “Quando viajar se tornar seguro, aonde você irá em primeiro lugar?”

“Para a Itália”, respondi. Era sempre a Itália. Sem saber como dizer adeus a Dave, balbuciei alguma coisa a respeito da aldeia na Puglia onde minha mãe tinha nascido.

“Deve ser bonito conhecer o lugar de onde você vem”, ele falou.

“É. Só desejo que me ajude a imaginar para onde eu vou”.

Ele assentiu com a cabeça, mas entre a sua máscara e os óculos de sol, era difícil saber o que ele estava pensando. “Eu ficava pensando no que fazer da minha vida”, ele disse. “O meu trabalho, este trabalho, parecia tão – pequeno”.

“O que mudou?”

“Nada, a não ser a minha atitude”, ele respondeu. “Eu me dei conta de que estava entregando às pessoas coisas que elas precisavam, coisas que as faziam felizes. Antes mesmo da pandemia, decidi que era importante”.

Não pude ver o seu sorriso através da máscara, mas pude perceber. “Você é tão sábio, Padawan,” falei, “E tão importante”.

Então Dave finalmente baixou a máscara e vi o seu sorriso radioso, depois me ofereceu o cotovelo antes de virar-se para ir embora – toda a minha gratidão e afeto se reduziram a um toque do cotovelo. Eu devia a ele muito mais.

Isto foi há meses. Não falei com o novo sujeito ainda; ele vem e vai como um fantasma. Entregando meus pacotes sem bater na porta.

Ainda tenho saudade do meu amigo. Se eu visse Dave amanhã, contaria que estou aprendendo o tema de Titanic na minha flauta, planejando uma viagem para a Itália com minha irmã, e que acabei de receber a primeira dose da vacina. Perguntaria como ele e a família estão e se o limoeiro deu frutos. Acima de tudo, perguntaria o seu endereço para que, desta vez, eu pudesse entregar alguma coisa para ele – uma lembrança do meu apreço. / TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA

The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times.

No primeiro ano do nosso relacionamento, não sabia o seu nome e não apreciava as suas interrupções. Eu ficava incomodada com a batida na minha janela, necessária para chamar a minha atenção, porque o meu apartamento não tinha campainha na porta.

Apesar do meu aborrecimento, eu o apelidei secretamente de Kris, em referência a Kris Kringle - uma referêncial natalina-, porque ele era uma espécie de Papai Noel moderno. Com seu cabelo branco e um ar de vovô, ele me levava presentes e procurava espalhar alegria. Só que o seu uniforme era da cor marrom do UPS, e não o vermelho do Papai Noel, e eu mesma havia encomendado e pago os presentes.

Ilustração de Brian Rea/The New York Times. 

Nosso relacionamento começara quase dois anos e meio antes, quando eu me mudei para um pequeno apartamento térreo no norte de Boston. Meu namorado e eu não estávamos muito preparados para morar juntos, por isso este foi um passo intermediário, um lugar para dormir quando eu não estava no escritório ou socializando. E estava quase sempre no escritório ou socializando.

Nos raros dias em que eu estava em casa, o homem do UPS vendo o meu carro na entrada, batia até que, relutando, eu ia pegar o meu pacote. Odiava conversas fiadas, mas com ele fiz um esforço, conversava sobre o tempo ou Tom Brady, assuntos nada comprometedores para fazer camaradagem em Boston.

Perguntei ao meu namorado, um tipo um tanto misantropo, se era estranho eu passar tanto tempo com o entregador. Ele disse que era estranho, possivelmente até perigoso e insistiu para que eu ignorasse futuras batidas, o que deveria ser um conselho fácil de seguir. Mas Kris me lembrava do meu pai, que também passava os dias de trabalho sozinho em um caminhão (entregando óleo para calefação nas casas) e adorava bater papo com os clientes, então continuei atendendo à porta.

Mas isto foi antes. Antes que o meu namorado e eu rompêssemos. Antes que Tom Brady se mudasse para a Flórida. E antes que a covid mudasse tudo, inclusive meus sentimentos em relação a Kris, o entregador.

Presa no meu apartamento-estúdio eu ansiava por uma conversação e uma companhia. Os dias passavam sem um único contato humano. Meu vizinho de cima adoeceu e foi para o hospital. Eu observava as pessoas pela janela entrar furtivamente na igreja fechada para rezar. Todo o meu mundo tornara-se minúsculo, solitário e apocalíptico. E longe de temer a batida de Kris, tornei-me a versão da covid do cachorro de Pavlov, salivando quando a ouvia.

Não exatamente salivando, mas eu ficava esperando as suas visitas e entregas, que eram numerosas. Desde equipamento de ginástica a macacões de amarrar e tingir, utensílios para o fogão, ele trazia a interminável sequência de coisas que eu havia encomendado, e então ficava para alguma conversa cara a cara.

Com ele de pé na beirada da varanda, mascarado, e eu na minha porta, discutíamos acontecimentos atuais (a volatilidade do mercado do papel higiênico), a cultura pop (ambos adorávamos Baby Yoda) e detalhes sobre as nossas manias durante o lockdown (ele havia começado jardinagem enquanto eu estava aprendendo a tocar flauta doce).

Uma tarde tediosa, ele se demorou numa conversa particularmente longa, dando detalhes sobre os seus novos limoeiros. Depois de me explicar todo o processo da mudança de vasos, ele disse: “Bom, espero que isto tenha ajudado”.

Foi então que me dei conta de que ele queria dizer que as nossas conversas de cinco minutos deveriam ser um cordão de salvamento – e que ele estava talvez fazendo o mesmo para outras pessoas, apesar da sua carga de trabalho maior do que nunca.

Nos dias em que não havia entregas, eu trabalhava ininterruptamente à escrivaninha que havia colocado de frente para a janela da frente. Entre as sessões de planejamento estratégico no Zoom, eu ficava observando o trânsito lá fora, olhando o seu caminhão marrom entrar na minha rua de mão única.

Apesar das advertências do meu ex, não havia nada que indicasse algo estranho ou mesmo flertes em suas aproximações. Kris falava de suas rotas favoritas nos bairros, ele gostava das ruas ladeadas de árvores, mas detestava morros e era obcecado por Star Wars.

Até fiquei sabendo o seu primeiro nome de verdade, Dave. Ele tinha uma esposa e dois filhos, com os quais estava constantemente preocupado. Em parte terapeuta e em parte anjo da guarda, ele também perguntava sobre a minha saúde mental (“Acaso a está perdendo?”) , meu trabalho (“Quantos Zoom hoje?”) e minhas distrações (“Algum novo hobby”?)

Num dia ensolarado do início de junho, ele indicou o pacote que ele havia colocado na varanda e disse: “É pesado. É um novo equipamento de ginástica?”)

“Nããão”, respondi. “É somente uma bobagem de uma frigideira.”

A esta altura, ele me conhecia bastante para não menosprezar a resposta. “Por que eu sinto que há uma história aqui?”

Eu não havia contado para ninguém a embaraçosa verdade das panelas, mas com ele, a história simplesmente surgiu. “Há mais de dez anos”, falei, “minha mãe encontrou um lindo conjunto de utensílios de cozinha à venda na Macy’s. E ela o estava guardando para a minha despedida de solteira, ou da minha irmã, enfim, da primeira que fosse casar. Como isto ainda não tinha acontecido com nenhuma das duas, as panelas estavam no subsolo da casa da minha mãe, zombando de mim todas as vezes que eu descia lá. Então, no mês passado, finalmente eu o levei”.

Minha mãe não tinha me dito para ir pegá-lo, não porque não achava que eu não merecesse, mas porque, fazendo isto, parecia que eu estivesse jogando a toalha para mim e para minha irmã.

“Honestamente, não sei bem por que eu peguei as panelas”, afirmei. “Achava que eu pareceria independente demais, mas eu só me sinto triste”. Olhei para o chão enquanto os meus olhos se enchiam de lágrimas. Piscando para que não saíssem, continuei: “Em todo caso, em vez disso, para uso, comprei uma panela super cara, não tóxica que vi no Instagram, a que você acabou de entregar”.

Dave ficou quieto por um instante como se estivesse resolvendo um complicado problema de matemática. “Tive um sonho na outra noite sobre o fim do mundo”, contou, “mas eu sobrevivi. Eu sei que é uma coisa horrível falar isto, dado o que está acontecendo, mas não era uma coisa triste, porque a minha família também sobreviveu”. Ele teve uma expressão como se não fosse algo tão importante, por trás da máscara. “Fico pensando: Se tudo desaparecesse, com exceção de você, da sua família, da sua casa, aquelas panelas teriam o mesmo significado?”

Balancei a cabeça. “Provavelmente não”.

“Você está exatamente onde deveria estar,” observou. “Acredito nisto: e espero que algum dia você acredite também”.

Em um dia quente de julho, Dave bateu trazendo um pacote, e quando atendi, ele me disse que o UPS estava mudando sua rota. O meu coração deu um pulo enquanto estávamos nos nossos lugares de sempre, ele apoiado ao balaústre e eu na soleira da porta.

Fiquei sem jeito de admitir até que ponto eu passara a depender das suas visitas. Além de alguns encontros fora de casa com amigos e a família, eu estava completamente sozinha. Às vezes até interrompia as minhas reuniões na Zoom quando ele chegava, trocando alegremente ideias e mensagens pelo Slack por um contato com um ser humano real.

“Estou muito ansioso por uma mudança”, ele disse. “Mas vou sentir falta das minhas visitas regulares.”

“Parabéns”, não sabia o que mais dizer. Como agradecer a uma pessoa por salvar a nossa sanidade mental?

Ele rompeu o silêncio com uma típica pergunta de Dave: “Quando viajar se tornar seguro, aonde você irá em primeiro lugar?”

“Para a Itália”, respondi. Era sempre a Itália. Sem saber como dizer adeus a Dave, balbuciei alguma coisa a respeito da aldeia na Puglia onde minha mãe tinha nascido.

“Deve ser bonito conhecer o lugar de onde você vem”, ele falou.

“É. Só desejo que me ajude a imaginar para onde eu vou”.

Ele assentiu com a cabeça, mas entre a sua máscara e os óculos de sol, era difícil saber o que ele estava pensando. “Eu ficava pensando no que fazer da minha vida”, ele disse. “O meu trabalho, este trabalho, parecia tão – pequeno”.

“O que mudou?”

“Nada, a não ser a minha atitude”, ele respondeu. “Eu me dei conta de que estava entregando às pessoas coisas que elas precisavam, coisas que as faziam felizes. Antes mesmo da pandemia, decidi que era importante”.

Não pude ver o seu sorriso através da máscara, mas pude perceber. “Você é tão sábio, Padawan,” falei, “E tão importante”.

Então Dave finalmente baixou a máscara e vi o seu sorriso radioso, depois me ofereceu o cotovelo antes de virar-se para ir embora – toda a minha gratidão e afeto se reduziram a um toque do cotovelo. Eu devia a ele muito mais.

Isto foi há meses. Não falei com o novo sujeito ainda; ele vem e vai como um fantasma. Entregando meus pacotes sem bater na porta.

Ainda tenho saudade do meu amigo. Se eu visse Dave amanhã, contaria que estou aprendendo o tema de Titanic na minha flauta, planejando uma viagem para a Itália com minha irmã, e que acabei de receber a primeira dose da vacina. Perguntaria como ele e a família estão e se o limoeiro deu frutos. Acima de tudo, perguntaria o seu endereço para que, desta vez, eu pudesse entregar alguma coisa para ele – uma lembrança do meu apreço. / TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA

The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times.

No primeiro ano do nosso relacionamento, não sabia o seu nome e não apreciava as suas interrupções. Eu ficava incomodada com a batida na minha janela, necessária para chamar a minha atenção, porque o meu apartamento não tinha campainha na porta.

Apesar do meu aborrecimento, eu o apelidei secretamente de Kris, em referência a Kris Kringle - uma referêncial natalina-, porque ele era uma espécie de Papai Noel moderno. Com seu cabelo branco e um ar de vovô, ele me levava presentes e procurava espalhar alegria. Só que o seu uniforme era da cor marrom do UPS, e não o vermelho do Papai Noel, e eu mesma havia encomendado e pago os presentes.

Ilustração de Brian Rea/The New York Times. 

Nosso relacionamento começara quase dois anos e meio antes, quando eu me mudei para um pequeno apartamento térreo no norte de Boston. Meu namorado e eu não estávamos muito preparados para morar juntos, por isso este foi um passo intermediário, um lugar para dormir quando eu não estava no escritório ou socializando. E estava quase sempre no escritório ou socializando.

Nos raros dias em que eu estava em casa, o homem do UPS vendo o meu carro na entrada, batia até que, relutando, eu ia pegar o meu pacote. Odiava conversas fiadas, mas com ele fiz um esforço, conversava sobre o tempo ou Tom Brady, assuntos nada comprometedores para fazer camaradagem em Boston.

Perguntei ao meu namorado, um tipo um tanto misantropo, se era estranho eu passar tanto tempo com o entregador. Ele disse que era estranho, possivelmente até perigoso e insistiu para que eu ignorasse futuras batidas, o que deveria ser um conselho fácil de seguir. Mas Kris me lembrava do meu pai, que também passava os dias de trabalho sozinho em um caminhão (entregando óleo para calefação nas casas) e adorava bater papo com os clientes, então continuei atendendo à porta.

Mas isto foi antes. Antes que o meu namorado e eu rompêssemos. Antes que Tom Brady se mudasse para a Flórida. E antes que a covid mudasse tudo, inclusive meus sentimentos em relação a Kris, o entregador.

Presa no meu apartamento-estúdio eu ansiava por uma conversação e uma companhia. Os dias passavam sem um único contato humano. Meu vizinho de cima adoeceu e foi para o hospital. Eu observava as pessoas pela janela entrar furtivamente na igreja fechada para rezar. Todo o meu mundo tornara-se minúsculo, solitário e apocalíptico. E longe de temer a batida de Kris, tornei-me a versão da covid do cachorro de Pavlov, salivando quando a ouvia.

Não exatamente salivando, mas eu ficava esperando as suas visitas e entregas, que eram numerosas. Desde equipamento de ginástica a macacões de amarrar e tingir, utensílios para o fogão, ele trazia a interminável sequência de coisas que eu havia encomendado, e então ficava para alguma conversa cara a cara.

Com ele de pé na beirada da varanda, mascarado, e eu na minha porta, discutíamos acontecimentos atuais (a volatilidade do mercado do papel higiênico), a cultura pop (ambos adorávamos Baby Yoda) e detalhes sobre as nossas manias durante o lockdown (ele havia começado jardinagem enquanto eu estava aprendendo a tocar flauta doce).

Uma tarde tediosa, ele se demorou numa conversa particularmente longa, dando detalhes sobre os seus novos limoeiros. Depois de me explicar todo o processo da mudança de vasos, ele disse: “Bom, espero que isto tenha ajudado”.

Foi então que me dei conta de que ele queria dizer que as nossas conversas de cinco minutos deveriam ser um cordão de salvamento – e que ele estava talvez fazendo o mesmo para outras pessoas, apesar da sua carga de trabalho maior do que nunca.

Nos dias em que não havia entregas, eu trabalhava ininterruptamente à escrivaninha que havia colocado de frente para a janela da frente. Entre as sessões de planejamento estratégico no Zoom, eu ficava observando o trânsito lá fora, olhando o seu caminhão marrom entrar na minha rua de mão única.

Apesar das advertências do meu ex, não havia nada que indicasse algo estranho ou mesmo flertes em suas aproximações. Kris falava de suas rotas favoritas nos bairros, ele gostava das ruas ladeadas de árvores, mas detestava morros e era obcecado por Star Wars.

Até fiquei sabendo o seu primeiro nome de verdade, Dave. Ele tinha uma esposa e dois filhos, com os quais estava constantemente preocupado. Em parte terapeuta e em parte anjo da guarda, ele também perguntava sobre a minha saúde mental (“Acaso a está perdendo?”) , meu trabalho (“Quantos Zoom hoje?”) e minhas distrações (“Algum novo hobby”?)

Num dia ensolarado do início de junho, ele indicou o pacote que ele havia colocado na varanda e disse: “É pesado. É um novo equipamento de ginástica?”)

“Nããão”, respondi. “É somente uma bobagem de uma frigideira.”

A esta altura, ele me conhecia bastante para não menosprezar a resposta. “Por que eu sinto que há uma história aqui?”

Eu não havia contado para ninguém a embaraçosa verdade das panelas, mas com ele, a história simplesmente surgiu. “Há mais de dez anos”, falei, “minha mãe encontrou um lindo conjunto de utensílios de cozinha à venda na Macy’s. E ela o estava guardando para a minha despedida de solteira, ou da minha irmã, enfim, da primeira que fosse casar. Como isto ainda não tinha acontecido com nenhuma das duas, as panelas estavam no subsolo da casa da minha mãe, zombando de mim todas as vezes que eu descia lá. Então, no mês passado, finalmente eu o levei”.

Minha mãe não tinha me dito para ir pegá-lo, não porque não achava que eu não merecesse, mas porque, fazendo isto, parecia que eu estivesse jogando a toalha para mim e para minha irmã.

“Honestamente, não sei bem por que eu peguei as panelas”, afirmei. “Achava que eu pareceria independente demais, mas eu só me sinto triste”. Olhei para o chão enquanto os meus olhos se enchiam de lágrimas. Piscando para que não saíssem, continuei: “Em todo caso, em vez disso, para uso, comprei uma panela super cara, não tóxica que vi no Instagram, a que você acabou de entregar”.

Dave ficou quieto por um instante como se estivesse resolvendo um complicado problema de matemática. “Tive um sonho na outra noite sobre o fim do mundo”, contou, “mas eu sobrevivi. Eu sei que é uma coisa horrível falar isto, dado o que está acontecendo, mas não era uma coisa triste, porque a minha família também sobreviveu”. Ele teve uma expressão como se não fosse algo tão importante, por trás da máscara. “Fico pensando: Se tudo desaparecesse, com exceção de você, da sua família, da sua casa, aquelas panelas teriam o mesmo significado?”

Balancei a cabeça. “Provavelmente não”.

“Você está exatamente onde deveria estar,” observou. “Acredito nisto: e espero que algum dia você acredite também”.

Em um dia quente de julho, Dave bateu trazendo um pacote, e quando atendi, ele me disse que o UPS estava mudando sua rota. O meu coração deu um pulo enquanto estávamos nos nossos lugares de sempre, ele apoiado ao balaústre e eu na soleira da porta.

Fiquei sem jeito de admitir até que ponto eu passara a depender das suas visitas. Além de alguns encontros fora de casa com amigos e a família, eu estava completamente sozinha. Às vezes até interrompia as minhas reuniões na Zoom quando ele chegava, trocando alegremente ideias e mensagens pelo Slack por um contato com um ser humano real.

“Estou muito ansioso por uma mudança”, ele disse. “Mas vou sentir falta das minhas visitas regulares.”

“Parabéns”, não sabia o que mais dizer. Como agradecer a uma pessoa por salvar a nossa sanidade mental?

Ele rompeu o silêncio com uma típica pergunta de Dave: “Quando viajar se tornar seguro, aonde você irá em primeiro lugar?”

“Para a Itália”, respondi. Era sempre a Itália. Sem saber como dizer adeus a Dave, balbuciei alguma coisa a respeito da aldeia na Puglia onde minha mãe tinha nascido.

“Deve ser bonito conhecer o lugar de onde você vem”, ele falou.

“É. Só desejo que me ajude a imaginar para onde eu vou”.

Ele assentiu com a cabeça, mas entre a sua máscara e os óculos de sol, era difícil saber o que ele estava pensando. “Eu ficava pensando no que fazer da minha vida”, ele disse. “O meu trabalho, este trabalho, parecia tão – pequeno”.

“O que mudou?”

“Nada, a não ser a minha atitude”, ele respondeu. “Eu me dei conta de que estava entregando às pessoas coisas que elas precisavam, coisas que as faziam felizes. Antes mesmo da pandemia, decidi que era importante”.

Não pude ver o seu sorriso através da máscara, mas pude perceber. “Você é tão sábio, Padawan,” falei, “E tão importante”.

Então Dave finalmente baixou a máscara e vi o seu sorriso radioso, depois me ofereceu o cotovelo antes de virar-se para ir embora – toda a minha gratidão e afeto se reduziram a um toque do cotovelo. Eu devia a ele muito mais.

Isto foi há meses. Não falei com o novo sujeito ainda; ele vem e vai como um fantasma. Entregando meus pacotes sem bater na porta.

Ainda tenho saudade do meu amigo. Se eu visse Dave amanhã, contaria que estou aprendendo o tema de Titanic na minha flauta, planejando uma viagem para a Itália com minha irmã, e que acabei de receber a primeira dose da vacina. Perguntaria como ele e a família estão e se o limoeiro deu frutos. Acima de tudo, perguntaria o seu endereço para que, desta vez, eu pudesse entregar alguma coisa para ele – uma lembrança do meu apreço. / TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA

The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times.

No primeiro ano do nosso relacionamento, não sabia o seu nome e não apreciava as suas interrupções. Eu ficava incomodada com a batida na minha janela, necessária para chamar a minha atenção, porque o meu apartamento não tinha campainha na porta.

Apesar do meu aborrecimento, eu o apelidei secretamente de Kris, em referência a Kris Kringle - uma referêncial natalina-, porque ele era uma espécie de Papai Noel moderno. Com seu cabelo branco e um ar de vovô, ele me levava presentes e procurava espalhar alegria. Só que o seu uniforme era da cor marrom do UPS, e não o vermelho do Papai Noel, e eu mesma havia encomendado e pago os presentes.

Ilustração de Brian Rea/The New York Times. 

Nosso relacionamento começara quase dois anos e meio antes, quando eu me mudei para um pequeno apartamento térreo no norte de Boston. Meu namorado e eu não estávamos muito preparados para morar juntos, por isso este foi um passo intermediário, um lugar para dormir quando eu não estava no escritório ou socializando. E estava quase sempre no escritório ou socializando.

Nos raros dias em que eu estava em casa, o homem do UPS vendo o meu carro na entrada, batia até que, relutando, eu ia pegar o meu pacote. Odiava conversas fiadas, mas com ele fiz um esforço, conversava sobre o tempo ou Tom Brady, assuntos nada comprometedores para fazer camaradagem em Boston.

Perguntei ao meu namorado, um tipo um tanto misantropo, se era estranho eu passar tanto tempo com o entregador. Ele disse que era estranho, possivelmente até perigoso e insistiu para que eu ignorasse futuras batidas, o que deveria ser um conselho fácil de seguir. Mas Kris me lembrava do meu pai, que também passava os dias de trabalho sozinho em um caminhão (entregando óleo para calefação nas casas) e adorava bater papo com os clientes, então continuei atendendo à porta.

Mas isto foi antes. Antes que o meu namorado e eu rompêssemos. Antes que Tom Brady se mudasse para a Flórida. E antes que a covid mudasse tudo, inclusive meus sentimentos em relação a Kris, o entregador.

Presa no meu apartamento-estúdio eu ansiava por uma conversação e uma companhia. Os dias passavam sem um único contato humano. Meu vizinho de cima adoeceu e foi para o hospital. Eu observava as pessoas pela janela entrar furtivamente na igreja fechada para rezar. Todo o meu mundo tornara-se minúsculo, solitário e apocalíptico. E longe de temer a batida de Kris, tornei-me a versão da covid do cachorro de Pavlov, salivando quando a ouvia.

Não exatamente salivando, mas eu ficava esperando as suas visitas e entregas, que eram numerosas. Desde equipamento de ginástica a macacões de amarrar e tingir, utensílios para o fogão, ele trazia a interminável sequência de coisas que eu havia encomendado, e então ficava para alguma conversa cara a cara.

Com ele de pé na beirada da varanda, mascarado, e eu na minha porta, discutíamos acontecimentos atuais (a volatilidade do mercado do papel higiênico), a cultura pop (ambos adorávamos Baby Yoda) e detalhes sobre as nossas manias durante o lockdown (ele havia começado jardinagem enquanto eu estava aprendendo a tocar flauta doce).

Uma tarde tediosa, ele se demorou numa conversa particularmente longa, dando detalhes sobre os seus novos limoeiros. Depois de me explicar todo o processo da mudança de vasos, ele disse: “Bom, espero que isto tenha ajudado”.

Foi então que me dei conta de que ele queria dizer que as nossas conversas de cinco minutos deveriam ser um cordão de salvamento – e que ele estava talvez fazendo o mesmo para outras pessoas, apesar da sua carga de trabalho maior do que nunca.

Nos dias em que não havia entregas, eu trabalhava ininterruptamente à escrivaninha que havia colocado de frente para a janela da frente. Entre as sessões de planejamento estratégico no Zoom, eu ficava observando o trânsito lá fora, olhando o seu caminhão marrom entrar na minha rua de mão única.

Apesar das advertências do meu ex, não havia nada que indicasse algo estranho ou mesmo flertes em suas aproximações. Kris falava de suas rotas favoritas nos bairros, ele gostava das ruas ladeadas de árvores, mas detestava morros e era obcecado por Star Wars.

Até fiquei sabendo o seu primeiro nome de verdade, Dave. Ele tinha uma esposa e dois filhos, com os quais estava constantemente preocupado. Em parte terapeuta e em parte anjo da guarda, ele também perguntava sobre a minha saúde mental (“Acaso a está perdendo?”) , meu trabalho (“Quantos Zoom hoje?”) e minhas distrações (“Algum novo hobby”?)

Num dia ensolarado do início de junho, ele indicou o pacote que ele havia colocado na varanda e disse: “É pesado. É um novo equipamento de ginástica?”)

“Nããão”, respondi. “É somente uma bobagem de uma frigideira.”

A esta altura, ele me conhecia bastante para não menosprezar a resposta. “Por que eu sinto que há uma história aqui?”

Eu não havia contado para ninguém a embaraçosa verdade das panelas, mas com ele, a história simplesmente surgiu. “Há mais de dez anos”, falei, “minha mãe encontrou um lindo conjunto de utensílios de cozinha à venda na Macy’s. E ela o estava guardando para a minha despedida de solteira, ou da minha irmã, enfim, da primeira que fosse casar. Como isto ainda não tinha acontecido com nenhuma das duas, as panelas estavam no subsolo da casa da minha mãe, zombando de mim todas as vezes que eu descia lá. Então, no mês passado, finalmente eu o levei”.

Minha mãe não tinha me dito para ir pegá-lo, não porque não achava que eu não merecesse, mas porque, fazendo isto, parecia que eu estivesse jogando a toalha para mim e para minha irmã.

“Honestamente, não sei bem por que eu peguei as panelas”, afirmei. “Achava que eu pareceria independente demais, mas eu só me sinto triste”. Olhei para o chão enquanto os meus olhos se enchiam de lágrimas. Piscando para que não saíssem, continuei: “Em todo caso, em vez disso, para uso, comprei uma panela super cara, não tóxica que vi no Instagram, a que você acabou de entregar”.

Dave ficou quieto por um instante como se estivesse resolvendo um complicado problema de matemática. “Tive um sonho na outra noite sobre o fim do mundo”, contou, “mas eu sobrevivi. Eu sei que é uma coisa horrível falar isto, dado o que está acontecendo, mas não era uma coisa triste, porque a minha família também sobreviveu”. Ele teve uma expressão como se não fosse algo tão importante, por trás da máscara. “Fico pensando: Se tudo desaparecesse, com exceção de você, da sua família, da sua casa, aquelas panelas teriam o mesmo significado?”

Balancei a cabeça. “Provavelmente não”.

“Você está exatamente onde deveria estar,” observou. “Acredito nisto: e espero que algum dia você acredite também”.

Em um dia quente de julho, Dave bateu trazendo um pacote, e quando atendi, ele me disse que o UPS estava mudando sua rota. O meu coração deu um pulo enquanto estávamos nos nossos lugares de sempre, ele apoiado ao balaústre e eu na soleira da porta.

Fiquei sem jeito de admitir até que ponto eu passara a depender das suas visitas. Além de alguns encontros fora de casa com amigos e a família, eu estava completamente sozinha. Às vezes até interrompia as minhas reuniões na Zoom quando ele chegava, trocando alegremente ideias e mensagens pelo Slack por um contato com um ser humano real.

“Estou muito ansioso por uma mudança”, ele disse. “Mas vou sentir falta das minhas visitas regulares.”

“Parabéns”, não sabia o que mais dizer. Como agradecer a uma pessoa por salvar a nossa sanidade mental?

Ele rompeu o silêncio com uma típica pergunta de Dave: “Quando viajar se tornar seguro, aonde você irá em primeiro lugar?”

“Para a Itália”, respondi. Era sempre a Itália. Sem saber como dizer adeus a Dave, balbuciei alguma coisa a respeito da aldeia na Puglia onde minha mãe tinha nascido.

“Deve ser bonito conhecer o lugar de onde você vem”, ele falou.

“É. Só desejo que me ajude a imaginar para onde eu vou”.

Ele assentiu com a cabeça, mas entre a sua máscara e os óculos de sol, era difícil saber o que ele estava pensando. “Eu ficava pensando no que fazer da minha vida”, ele disse. “O meu trabalho, este trabalho, parecia tão – pequeno”.

“O que mudou?”

“Nada, a não ser a minha atitude”, ele respondeu. “Eu me dei conta de que estava entregando às pessoas coisas que elas precisavam, coisas que as faziam felizes. Antes mesmo da pandemia, decidi que era importante”.

Não pude ver o seu sorriso através da máscara, mas pude perceber. “Você é tão sábio, Padawan,” falei, “E tão importante”.

Então Dave finalmente baixou a máscara e vi o seu sorriso radioso, depois me ofereceu o cotovelo antes de virar-se para ir embora – toda a minha gratidão e afeto se reduziram a um toque do cotovelo. Eu devia a ele muito mais.

Isto foi há meses. Não falei com o novo sujeito ainda; ele vem e vai como um fantasma. Entregando meus pacotes sem bater na porta.

Ainda tenho saudade do meu amigo. Se eu visse Dave amanhã, contaria que estou aprendendo o tema de Titanic na minha flauta, planejando uma viagem para a Itália com minha irmã, e que acabei de receber a primeira dose da vacina. Perguntaria como ele e a família estão e se o limoeiro deu frutos. Acima de tudo, perguntaria o seu endereço para que, desta vez, eu pudesse entregar alguma coisa para ele – uma lembrança do meu apreço. / TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA

The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times.

No primeiro ano do nosso relacionamento, não sabia o seu nome e não apreciava as suas interrupções. Eu ficava incomodada com a batida na minha janela, necessária para chamar a minha atenção, porque o meu apartamento não tinha campainha na porta.

Apesar do meu aborrecimento, eu o apelidei secretamente de Kris, em referência a Kris Kringle - uma referêncial natalina-, porque ele era uma espécie de Papai Noel moderno. Com seu cabelo branco e um ar de vovô, ele me levava presentes e procurava espalhar alegria. Só que o seu uniforme era da cor marrom do UPS, e não o vermelho do Papai Noel, e eu mesma havia encomendado e pago os presentes.

Ilustração de Brian Rea/The New York Times. 

Nosso relacionamento começara quase dois anos e meio antes, quando eu me mudei para um pequeno apartamento térreo no norte de Boston. Meu namorado e eu não estávamos muito preparados para morar juntos, por isso este foi um passo intermediário, um lugar para dormir quando eu não estava no escritório ou socializando. E estava quase sempre no escritório ou socializando.

Nos raros dias em que eu estava em casa, o homem do UPS vendo o meu carro na entrada, batia até que, relutando, eu ia pegar o meu pacote. Odiava conversas fiadas, mas com ele fiz um esforço, conversava sobre o tempo ou Tom Brady, assuntos nada comprometedores para fazer camaradagem em Boston.

Perguntei ao meu namorado, um tipo um tanto misantropo, se era estranho eu passar tanto tempo com o entregador. Ele disse que era estranho, possivelmente até perigoso e insistiu para que eu ignorasse futuras batidas, o que deveria ser um conselho fácil de seguir. Mas Kris me lembrava do meu pai, que também passava os dias de trabalho sozinho em um caminhão (entregando óleo para calefação nas casas) e adorava bater papo com os clientes, então continuei atendendo à porta.

Mas isto foi antes. Antes que o meu namorado e eu rompêssemos. Antes que Tom Brady se mudasse para a Flórida. E antes que a covid mudasse tudo, inclusive meus sentimentos em relação a Kris, o entregador.

Presa no meu apartamento-estúdio eu ansiava por uma conversação e uma companhia. Os dias passavam sem um único contato humano. Meu vizinho de cima adoeceu e foi para o hospital. Eu observava as pessoas pela janela entrar furtivamente na igreja fechada para rezar. Todo o meu mundo tornara-se minúsculo, solitário e apocalíptico. E longe de temer a batida de Kris, tornei-me a versão da covid do cachorro de Pavlov, salivando quando a ouvia.

Não exatamente salivando, mas eu ficava esperando as suas visitas e entregas, que eram numerosas. Desde equipamento de ginástica a macacões de amarrar e tingir, utensílios para o fogão, ele trazia a interminável sequência de coisas que eu havia encomendado, e então ficava para alguma conversa cara a cara.

Com ele de pé na beirada da varanda, mascarado, e eu na minha porta, discutíamos acontecimentos atuais (a volatilidade do mercado do papel higiênico), a cultura pop (ambos adorávamos Baby Yoda) e detalhes sobre as nossas manias durante o lockdown (ele havia começado jardinagem enquanto eu estava aprendendo a tocar flauta doce).

Uma tarde tediosa, ele se demorou numa conversa particularmente longa, dando detalhes sobre os seus novos limoeiros. Depois de me explicar todo o processo da mudança de vasos, ele disse: “Bom, espero que isto tenha ajudado”.

Foi então que me dei conta de que ele queria dizer que as nossas conversas de cinco minutos deveriam ser um cordão de salvamento – e que ele estava talvez fazendo o mesmo para outras pessoas, apesar da sua carga de trabalho maior do que nunca.

Nos dias em que não havia entregas, eu trabalhava ininterruptamente à escrivaninha que havia colocado de frente para a janela da frente. Entre as sessões de planejamento estratégico no Zoom, eu ficava observando o trânsito lá fora, olhando o seu caminhão marrom entrar na minha rua de mão única.

Apesar das advertências do meu ex, não havia nada que indicasse algo estranho ou mesmo flertes em suas aproximações. Kris falava de suas rotas favoritas nos bairros, ele gostava das ruas ladeadas de árvores, mas detestava morros e era obcecado por Star Wars.

Até fiquei sabendo o seu primeiro nome de verdade, Dave. Ele tinha uma esposa e dois filhos, com os quais estava constantemente preocupado. Em parte terapeuta e em parte anjo da guarda, ele também perguntava sobre a minha saúde mental (“Acaso a está perdendo?”) , meu trabalho (“Quantos Zoom hoje?”) e minhas distrações (“Algum novo hobby”?)

Num dia ensolarado do início de junho, ele indicou o pacote que ele havia colocado na varanda e disse: “É pesado. É um novo equipamento de ginástica?”)

“Nããão”, respondi. “É somente uma bobagem de uma frigideira.”

A esta altura, ele me conhecia bastante para não menosprezar a resposta. “Por que eu sinto que há uma história aqui?”

Eu não havia contado para ninguém a embaraçosa verdade das panelas, mas com ele, a história simplesmente surgiu. “Há mais de dez anos”, falei, “minha mãe encontrou um lindo conjunto de utensílios de cozinha à venda na Macy’s. E ela o estava guardando para a minha despedida de solteira, ou da minha irmã, enfim, da primeira que fosse casar. Como isto ainda não tinha acontecido com nenhuma das duas, as panelas estavam no subsolo da casa da minha mãe, zombando de mim todas as vezes que eu descia lá. Então, no mês passado, finalmente eu o levei”.

Minha mãe não tinha me dito para ir pegá-lo, não porque não achava que eu não merecesse, mas porque, fazendo isto, parecia que eu estivesse jogando a toalha para mim e para minha irmã.

“Honestamente, não sei bem por que eu peguei as panelas”, afirmei. “Achava que eu pareceria independente demais, mas eu só me sinto triste”. Olhei para o chão enquanto os meus olhos se enchiam de lágrimas. Piscando para que não saíssem, continuei: “Em todo caso, em vez disso, para uso, comprei uma panela super cara, não tóxica que vi no Instagram, a que você acabou de entregar”.

Dave ficou quieto por um instante como se estivesse resolvendo um complicado problema de matemática. “Tive um sonho na outra noite sobre o fim do mundo”, contou, “mas eu sobrevivi. Eu sei que é uma coisa horrível falar isto, dado o que está acontecendo, mas não era uma coisa triste, porque a minha família também sobreviveu”. Ele teve uma expressão como se não fosse algo tão importante, por trás da máscara. “Fico pensando: Se tudo desaparecesse, com exceção de você, da sua família, da sua casa, aquelas panelas teriam o mesmo significado?”

Balancei a cabeça. “Provavelmente não”.

“Você está exatamente onde deveria estar,” observou. “Acredito nisto: e espero que algum dia você acredite também”.

Em um dia quente de julho, Dave bateu trazendo um pacote, e quando atendi, ele me disse que o UPS estava mudando sua rota. O meu coração deu um pulo enquanto estávamos nos nossos lugares de sempre, ele apoiado ao balaústre e eu na soleira da porta.

Fiquei sem jeito de admitir até que ponto eu passara a depender das suas visitas. Além de alguns encontros fora de casa com amigos e a família, eu estava completamente sozinha. Às vezes até interrompia as minhas reuniões na Zoom quando ele chegava, trocando alegremente ideias e mensagens pelo Slack por um contato com um ser humano real.

“Estou muito ansioso por uma mudança”, ele disse. “Mas vou sentir falta das minhas visitas regulares.”

“Parabéns”, não sabia o que mais dizer. Como agradecer a uma pessoa por salvar a nossa sanidade mental?

Ele rompeu o silêncio com uma típica pergunta de Dave: “Quando viajar se tornar seguro, aonde você irá em primeiro lugar?”

“Para a Itália”, respondi. Era sempre a Itália. Sem saber como dizer adeus a Dave, balbuciei alguma coisa a respeito da aldeia na Puglia onde minha mãe tinha nascido.

“Deve ser bonito conhecer o lugar de onde você vem”, ele falou.

“É. Só desejo que me ajude a imaginar para onde eu vou”.

Ele assentiu com a cabeça, mas entre a sua máscara e os óculos de sol, era difícil saber o que ele estava pensando. “Eu ficava pensando no que fazer da minha vida”, ele disse. “O meu trabalho, este trabalho, parecia tão – pequeno”.

“O que mudou?”

“Nada, a não ser a minha atitude”, ele respondeu. “Eu me dei conta de que estava entregando às pessoas coisas que elas precisavam, coisas que as faziam felizes. Antes mesmo da pandemia, decidi que era importante”.

Não pude ver o seu sorriso através da máscara, mas pude perceber. “Você é tão sábio, Padawan,” falei, “E tão importante”.

Então Dave finalmente baixou a máscara e vi o seu sorriso radioso, depois me ofereceu o cotovelo antes de virar-se para ir embora – toda a minha gratidão e afeto se reduziram a um toque do cotovelo. Eu devia a ele muito mais.

Isto foi há meses. Não falei com o novo sujeito ainda; ele vem e vai como um fantasma. Entregando meus pacotes sem bater na porta.

Ainda tenho saudade do meu amigo. Se eu visse Dave amanhã, contaria que estou aprendendo o tema de Titanic na minha flauta, planejando uma viagem para a Itália com minha irmã, e que acabei de receber a primeira dose da vacina. Perguntaria como ele e a família estão e se o limoeiro deu frutos. Acima de tudo, perguntaria o seu endereço para que, desta vez, eu pudesse entregar alguma coisa para ele – uma lembrança do meu apreço. / TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA

The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times.

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